sexta-feira, 30 de abril de 2021

O sal do silêncio (59)

Francesca Woodman, Untitled, Providence, Rhode Island, 1975
Primeiro chega o abandono, depois a realidade vai perdendo aquilo que a liga, as peças saem dos encaixes, anuncia-se a dissolução de tudo o que foi, até que reste apenas o silêncio e o sal que, desprendendo-se dele, salga com leveza a memória, para que ela se afaste do insuportável e seja recordação cada vez mais longínqua, cada vez mais feliz.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

A Sarça Ardente - 79

António Carneiro, sem título, 1915

A claridade vem, viaja
sobre o bosque.
Pássaro de luz,
fuga ao abismo
da noite.

O coração saúda-a.
Graça derramada
para iluminar
de súbito
a sombra da Terra.

Abril de 2021

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Haikai do Viandante (409)

Emérico Nunes, Neve sobre o cais (Paris), 1909

Sobre o cais, a neve.
Olhos param deslumbrados,
esperam sinais.

sábado, 24 de abril de 2021

Histórias sem nexo 25. Urgências, usurpações e usucapião

Júlio dos Reis Pereira, Tarde de Festa, 1925
Urgência, um urso sem humor urina nas urtigas. Úrsula e Urraca urgiam em Unhais e um urubu uivava na Urqueira. Hum! Hum! Ululam os últimos Huguenotes. Humildade, humildade, Ursulina. Humaniza-te. Na hulheira, Humberto usurpa a hulha. Usucapião, usucapião, urrou utópico o Hugo. Uau, ufanou-se a Umbelina.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Biografias 17. Um pai aos olhos do filho

 Wolfgang Suschitzky, Trafalgar Square, London, 1953
Um pai cresce nos olhos do filho. Como um mágico, tira da cartola invisível os pombos visíveis. O filho deixa-se tomar pelo espanto dos animais a voltear por cima deles e pensa que ninguém no mundo a não ser o pai conseguiria tal façanha. O pai alimenta-se do olhar do filho.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Meditação Breve (157) Encarnação

Ernst Haas, Herbert Von Karajan, Salzburg, 1978

Por vezes, embora nem sempre isso aconteça, a arte exige que o artista se desaposse de si. A entrega deverá ser de tal ordem que a pessoa desaparece de si mesma, para que o espírito que se manifesta na arte encarne e se torne realidade pura. Talvez a grande arte não seja outra coisa senão um exercício de encarnação.

sábado, 17 de abril de 2021

A Sarça Ardente - 78

Ianthe Ruthven, Giant Lilly Pads, Kew, 1996
O segredo dos dias de estiagem
sonha sonâmbulo
nos meus passos pela alvorada.

Murmura-me no coração
voa-me nos olhos
adormece-me na noite.

Sou o meu segredo,
enigma herdado
ao entrar no alvor do mundo.

Abril de 2021

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Meditação Breve (156) Metáforas práticas

René Burri, French artist Yves Klein directing a model in body art painting. 1961

Metaforizar, seguindo a intuição de Aristóteles, é aproximar coisas que pertencem a realidades diferentes. Camões, num célebre soneto, aproximou fogo e amor. É esta aproximação regida pela a analogia - entre essas realidades haveria, apesar da diferença, uma certa semelhança - que o século XX vai levar até ao paroxismo. O modelo nu desce do pedestal e o seu corpo não serve já para ser copiado, mas como utensílio da própria pintura. O corpo transita de instrumento da visão para instrumento da acção. É a semelhança instrumental que permite o exercício metafórico - uma metáfora prática - de pintar não o corpo, mas com o corpo. Não produzir uma imagem, mas deixar um vestígio.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Diálogos morais 60. Uma questão prática

Bert Hardy, A young woman talks to a boyfriend after her evening’s work as a cinema usherette, c. 1954
- Muito trabalho?
- Não, hoje havia poucos espectadores.
- Um mau filme.
- Oh não, apenas uma noite má na bilheteira.
- Isso é pior que um mau filme.
- Não, não é. Um mau filme suja a alma.
- Uma idealista, é o que és.
- Serei.
- A vida não se faz de idealidades.
- Não? Também sei ser uma mulher prática.
- Sabes?
- Sei. O mais prático é ires dormir para tua casa. 
- Como?
- Sem mim.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Micronarrativa (52) Pátria do silêncio

Rui Filipe, Fuencarral , 1953

Há lugares onde acontecem as coisas mais estranhas. Lentamente, quem neles vive vai moderando a vontade de falar, a voz perde o timbre e o ritmo e, por fim, emudece. Então, os contornos do corpo começam a dissolver-se, a figura dilui-se e a pessoa torna-se invisível. Na pátria do silêncio, todos os que a habitam são invisíveis.

sábado, 10 de abril de 2021

Impressões 79. Figuras insones

José Dominguez Alvarez, Casario e figuras de um sonho

Figuras insones e ao mesmo tempo perdidas dentro de um sonho erguem-se no silêncio da praça. Se caminham, fazem-no lentamente, como se o tempo se retraísse na sua marcha. Se param, olham para lado nenhum. Das suas bocas não nascem palavras. Dos seus olhos, não vem qualquer brilho. Reúnem-se e depois separam-se, sem que nenhuma perceba a razão de uma e de outra coisa. Todas pensam estar rodeada de fantasmas. Tremem, se um pássaro poisa no ramo nu das árvores.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

A Sarça Ardente - 77

Eduardo Nery, Estrutura Ambígua, 1969
Descem pela fímbria
dos dedos,
trazem metáforas
de âmbar e fogo.
Sombras e silêncios
de uma paixão
nascida na névoa
da memória,
no fogo da sarça ao arder.

Março de 2021

domingo, 4 de abril de 2021

Meditação Breve (155) Constelações

Kazimir Malevich. Red Cavalry, 1928-32

O mundo compõe-se de linhas e manchas, de estratos onde aquilo a que se chama realidade se esconde, para ser encontrada, milénios depois, por arqueólogos dedicados. Do heteróclito que surge perante a visão, os olhos arqueológicos vão, a pouco e pouco, introduzindo separações arbitrárias, desenhando figuras como as que se descobrem no céu e a que dá o nome de constelações. Aquilo a que, apaixonadamente, chamamos realidade, ou seres individuais ou colectivos tem a verdade de uma constelação.

sábado, 3 de abril de 2021

O sal do silêncio (58)

Eugene Robert Richee, Louise Brooks, 1928
Do alçapão da noite chega a vida. Onde tudo era trevas e silêncio, de súbito emerge um rosto, umas mãos e tudo aquilo que não tendo importância para ser o sal da vida. Não é, mas mesmo as aparência são já um sinal de emancipação da negra escuridão.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Arqueologias do espírito 24

Francisco Metrass, Pastores Guardando o Rebanho, Sec. XIX

Não será das mais arcaicas imagens, aquela que junta numa unidade o pastor e o seu rebanho. A pastorícia, na economia do desenvolvimento da espécie humana, é um acontecimento recente, demasiado recente. No entanto, a sua força é de tal ordem que se tornou metáfora e símbolo com que os homens pensam a relação de uma comunidade com os que têm a função de a dirigir e conduzir salva ao aprisco. No rebanho, simboliza-se a unidade do conjunto dos homens e também a sua necessidade de possuir um condutor. O pastor cedo emergiu como o símbolo daquele que tem por dever conduzir os homens. O bom pastor.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Haikai urbano (67)

Nikias Skapinakis, Quintais de Lisboa, 1956
Quintais de Lisboa,
sombras vindas do passado,
imagens que ecoam.