166. A CATEDRAL
a límpida catedral
seda e água
lugar de erva
musgo e fogo
anjo que toca
ao quebrar da noite
os ombros
- meus teus -
estremecidos
pelo fervilhar do frio
da pedra cai
terça-feira, 29 de março de 2011
quinta-feira, 24 de março de 2011
Poemas do Viandante
165. ESTA TERRA
a cinza
em que esta terra
se desdenha
a água
descolorida onde
se afoga
as palavras gastas
– nelas se esquece
de deus ou da vergonha
ou da hora aprazada
o anjo a trará
despido de luz
para incendiar esta terra
de penas e assombro
a cinza
em que esta terra
se desdenha
a água
descolorida onde
se afoga
as palavras gastas
– nelas se esquece
de deus ou da vergonha
ou da hora aprazada
o anjo a trará
despido de luz
para incendiar esta terra
de penas e assombro
sábado, 12 de março de 2011
Uma oportunidade
Leitura de Liquid Modernity, de Zygmunt Bauman, uma obra de 2000. Uma acurada visão sociológica das profundas transformações que a modernidade está a sofrer nos últimos decénios. Uma ideia central. O processo de liquefacção das instituições sociais, facto inerente à própria modernidade, intensificou-se e mudou de qualidade. Contrariamente à modernidade inicial, que liquefazia as instituições do Ancien Régime para as substituir por outras melhores e mais sólidas, o actual processo, que se abate sobre as pessoas como um destino inexorável, pretende maximizar a destruição dos laços sociais, deixando os indivíduos entregues às suas próprias forças ou, melhor, às suas próprias fragilidades. A obra percorre o impacto do processo em cinco campos: 1. Emancipação; 2. Individualidade; 3. Tempo/Espaço; 4. Trabalho; 5. Comunidade. Evidencia os processos de liquefacção das estruturas sociais e o seu impacto na vida dos indivíduos e comunidades. Mas a obra, que continua passados onze anos absolutamente pertinente, é um bom ponto de partida para pensar uma outra coisa que não as sociabilidades e as individualidades. Ela mostra, inadvertidamente e sem se interessar pelo problema ou sequer referi-lo, como o mundo social e as vidas individuais se tornam ainda menos permeáveis ao Espírito do que em tempos anteriores, os da modernidade pesada, segundo a designação do autor. Isso não significa que, aqui e ali, não possam emergir comunidades explosivas em torno da religião. Mas essas comunidades terão mais a ver com o medo e a insegurança, com o ressentimento social, do que com uma preocupação com o Espírito e a experiência espiritual. No entanto, a atomização a que as sociedades ocidentais estão a ser sujeitas, o corte que cada indivíduo está a ser obrigado a fazer com as estruturas sociais de suporte, pode ter um efeito inesperado. Se na larga maioria esse corte pode conduzir ao desespero e a situações do foro patológico, social ou psiquiátrico, em alguns, uma clara minoria, pode ser ocasião para confronto com o sentido último da existência e uma abertura para a espiritualidade e para Deus. Se o cristianismo, nomeadamente o catolicismo, não deve desatender a larga maioria que sofre os efeitos da liquefacção das instituições sociais, seria curial que olhasse com atenção, que nunca será excessiva, para esse pequeno grupo de espirituais em potência. Não que sejam mais importantes que os outros, mas a constituição de uma elite espiritual - uma elite que bebeu o cálice das ilusões sociais até fim e que, como na parábola do filho pródigo, retorna à casa do Pai - pode ser importante não apenas para manter viva a experiência espiritual sobre a Terra, em particular no mundo Ocidental, mas para dar, com o seu exemplo silencioso, um sentido verdadeiro à vida do Homem no mundo.
quinta-feira, 3 de março de 2011
Poemas do Viandante
164 . ESQUECIMENTO
de todas essas coisas
esqueci o nome
os lugares
a cor que ofereciam
pela manhã
ficaram fragmentos
a memória à espreita
na soleira da porta
o nome de deus
se a noite vinha
coberta de clarões
de todas essas coisas
esqueci o nome
os lugares
a cor que ofereciam
pela manhã
ficaram fragmentos
a memória à espreita
na soleira da porta
o nome de deus
se a noite vinha
coberta de clarões
Do ruído e do silêncio
Continuação da leitura do diário de Thomas Merton. Escreve sobre o ruído mecânico. Não comenta a natureza desse ruído, apenas aponta a sua presença, o seu crescimento no universo onde vive. Um ruído de máquinas. Enquanto leio, lá fora, o ruído não cessa. Os carros que passam, uma máquina talvez no jardim de uma escola, as pessoas que emitam os carros e são agora máquinas que resfolegam, apitam, fremem e no fremir ouve-se o bater desamparado das células. Alguns de nós anseiam pelo silêncio, por essa dádiva que é suspender a mecanicidade ruidosa do mundo. Mas isto não passa de uma ilusão. A tarefa tornou-se absolutamente mais complexa e exige de nós aquilo que dificilmente poderemos dar. O fundamental não é encontrar uma pátria do silêncio ao lado das várias nações ruidosas. Essa pátria já não existe, foi tomada de assalto e colonizada por hordas turbulentas. O exercício fundamental é aprender a instalar-se no silêncio que habita o ruído. Este, o ruído, possui uma natureza negativa. Nega o silêncio, mas essa negação é a esperança, talvez a única, para quem precise de se instalar no infinito silêncio onde algo o espera. Essa negação é um nada e é neste nada que teremos de aprender a fazer a nossa casa, e a descobri-lo como o único silêncio possível nos dias de hoje. Escutar no ruído tremendo que nos envolve o silêncio que ele mascara, e, mais do que tudo isso, encontrar o silêncio dentro do ruído que nos habita e que, demasiadas vezes, nós somos.
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