sexta-feira, 6 de maio de 2022

Biografias 27. A tecedeira

Paul Wolff, Weaver, 1930s

Enquanto entrelaça os fios, tece-se a si mesma. Olha-se ainda a partir da janela da manhã. No rosto, uma pequena sombra, a súbita consciência de que haverá um crepúsculo, mas logo o ritmo dos dedos abre o espírito à ambiguidade da vida, aos desejos que se escondem sob a serenidade de um olhar concentrado no que faz, ao temor que o futuro arrasta infundindo incertezas, sombreando a luminosidade dos dias com a culpabilidade das trevas. As horas passam e a tecedeira harpeja o tear, onde, no ruído mecânico da indústria, se esconde a velha música das esferas celestes. Casarei, pensa ela, e a vida será outra coisa, mas no seu pensamento ainda não sabe que fios tecerão o pano com que essa vida se há-de vestir. 

quarta-feira, 4 de maio de 2022

O Espírito da Terra (10)

Jean Dieuzaide, Vue aérienne, Montagne Noire, reboisement, 1968

Há em nós, seres humanos, uma alucinação persistente. Cremos que tudo o que existe está à nossa disposição. As velhas florestas estavam aí para que tivéssemos madeira. Exauridas, a terra fica disponível e não hesitamos em reflorestar aquilo que despimos. Estamos convencidos de que as novas florestas substituirão as que destruímos. Não compreendemos, porém, que uma floresta não é o produto do trabalho humano, mas a lenta maturação da natureza, na qual as árvores escolhem o seu lugar, para se abrirem aos céus e mergulharem as raízes na fundura da Terra. Criar autênticas florestas é um trabalho para o qual não nos foi outorgado poder.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Meditação Breve (179) Tempo

Ilse Bing, Poster, Henry VIII, 1934
Olhamos a parede e vemos as pústulas semeadas pelo vírus do tempo. Este faz do corso a sua vida. Pilha as vidas e tudo o que o homem constrói. Empalidece a luz do meio-dia, erode as montanhas mais vigorosas, calcina o frio nas paisagens frias Norte. Reduz a poeira as palavras que os homens deixam aqui e ali.  Não há nada que não caiba na sua boca voraz.

sábado, 30 de abril de 2022

Câmara discreta (9)

Paul Strand, Blind, 1916
A câmara encontra o silêncio do olhar e transporta-o para dentro da eternidade das coisas passageiras. A mulher pensará na classificação que lhe atribuem, sem sentir o peso da chapa de registo, pura obediência à voracidade estatística com que os estados alimentam o seu desejo de conhecimento, dinâmica resignação à sorte que a vida sobre ela derramou. Num outro tempo, pensaria apenas que a deusa Fortuna lhe achara um defeito, talvez uma revolta, de que a cegueira seria a punição. Agora, perante o silêncio que a habita, espera que a misericórdia divina reverbere nos gestos da indulgência humana.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Sete Cartas - 5 Ao anjo de Sardes

Salvador Dali, Sin título (Angel surrealista), 1969

Em Sardes, caminha um anjo de argila e cinza,

preso na melancolia de uma rameira sem cor,

perdido entre o lixo das ruas e o carvão dos dias.

Ergue a cabeça coberta com o limo da ardósia,

a erva estreita das paredes orladas pelo xisto da sombra.

Leva no fundo da alma a porcelana branca

rasgada pela espada pura dos dias de Inverno.

 

Conta os espíritos de Deus e as estrelas do céu.

Conta os fogos da revolta e os incêndios nos campos.

Conta as obras por fazer e as noites por chegar.

Conta os dias de tristeza e os grãos de areia.

 

Em temor, escuta a palavra do silêncio entre o ruído,

a voz coberta de luz no andaime da cegueira.

 

Então, os dias passam sobre as glicínias da aurora,

os arbustos da infância, os sonhos de ambrósia.

Noites azuis na dança dos cedros batidos pelo vento.

 

Serão perfeitos os anos diante do juízo que virá?

O sopro do vento reanima a onda pegajosa da vida,

abre Fevereiro à página branca iluminada pela Lua,

os frutos amadurecidos pela errância do tempo.

 

Ao guardar a terrível palavra na têmpora da noite,

será o anjo um furtivo ladrão, ferirá a areia da praia

com o embrião das horas, o imprevisto de cada dia.

Ano após ano crescerá uma contaminação,

a mancha delgada irradiando em torno do ventre,

os dias passados sob o candeeiro de querosene.

 

No Ocidente, uma nuvem de breu cavalga o vento,

as palavras ditas em Sardes, terra de argila e cinza

habitada pelo anjo preso aos meandros das ruas,

cansado dos Invernos que traz na vazio das mãos,

no êxtase da luz, na secreta avidez da rosa de Deus.

 

1993 

terça-feira, 26 de abril de 2022

O sal do silêncio (79)

Imogen Cunningham, Aiko’s hands, 1971
Há em todas as mãos uma inclinação para o gesto e um desejo de silêncio. Trazem na memória dos dedos os sinais que um dia anteciparam as palavras e fizeram da mudez a possibilidade de viver entre a folhagem das florestas e o sal do medo.
 

domingo, 24 de abril de 2022

Haikai urbano (72)

Otto Wunderlich,  Alhambra, Salon de Embajadores (Granada), 1920s
A luz do silêncio
cai sobre o vazio da tarde.
Sombra sobre sombra.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Impressões 96. Transfiguração

Edward Hartwig, Untitled, 1970s

De súbito, o revérbero transfigura a paisagem. Árvores e campos deixam de ser simples árvores e campos, mas uma hierofania nascida do casamento entre a luz e a sombra, a manifestação de uma realidade totalmente outra por dentro da mais trivial das realidades.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

O sal do silêncio (78)

Harold Miller Null, Trulli, ca. 1970
Casas silenciosas inclinam-se lentamente para o centro de si mesmas. Da cal das paredes chegam, em murmúrios quase brancos, vozes que o tempo apagou, sinais fabricados com o coral e a seiva de quem partiu. Quando se entra nelas, sempre haverá uma garrafa de vinho para matar a sede ou uma sombra para o sono derramar sobre o corpo o resplendor do sossego.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Câmara discreta (8)

Bill Brandt, Brynhild Parker, painting a nude model, 1939

O olhar desce do corpo exposto ao corpo desenhado, sem se aperceber que em toda a exposição existe uma linguagem de abandono, o sinal de um esquecimento, o sintoma de uma traição. O esboço a que os dedos se entregam, com a destreza digital de uma errância calculada, é o resultado de uma mão treinada no uso do punhal, na dissecação da carne, na húmida certeza de uma vitória sobre o que, tão desamparado, se abre à lentidão com que os olhos transferem a forma encarnada para a frieza da figura exposta na brancura do papel.

sábado, 16 de abril de 2022

O Espírito da Terra (9)

Otto Scharf, Going home, 1901

A terra é esse silêncio que acolhe os homens no regresso a casa, pois não há outro desejo mais humano do que estar em sua própria casa. Não é um desejo de propriedade, nem um culto de proprietário. É antes a certeza de que qualquer morada é precária e que se deve desfrutar, com zelo sem fim, antes que o tempo a remeta para o pó de onde saiu, sem deixar vestígio, como se nunca tivesse descido ao lugar vacilante da existência.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Sete Cartas - 4 Ao anjo de Tiatira

Salvador Dali, El ángel de Port Lligat, 1952

Sobre a pródiga perfeição dos habitantes de Tiatira,

reina um anjo de cabelos azuis, quebrado pelo fogo

do turíbulo, por veios de mármore, linhas de luz.

Ave na escuridão da cidade, sereia nas águas lustrais

nascidas em côncava fonte, no cárcere do olvido.

 

Sob a sua protecção crescem salgueiros, choupos,

os rios contaminados pelo voo das borboletas,

pássaros tomadas pela ânsia luminosa do Sul,

o deserto onde se ouve o grito dos mortos,

o silêncio sem fim na mudez de orvalho dos vivos.

 

Escrevo as palavras acesas nas chamas de bronze,

na obscuridade derramada no pó da terra,

o trabalho sobre a areia perdida dos oceanos,

o vento escaldante ao arder no centro do coração.

 

Um sopro ressoa na paciente inspiração da carne,

na nudez do amor, no silêncio dos dias de Novembro.

A humidade das lágrimas escorre pelo vazio,

onde a boca sorve o sangue e a seiva das giestas.

 

Olho a campânula suspensa sobre a cabeça e na luz

abre-se na fresta da manhã o cálice do dia que passou.

 

Corrompe-se no esquecimento a palavra trémula.

Seca na boca o lastro da língua, o fogo do logos,

as palavras adulteradas pela traição da gramática.

 

Da sonolência da sombra brotarão sem sentido

os filhos das marés mortas, das vinhas incendiadas

pelo pólen do crepúsculo, pela estrela da aurora

submetida ao cansaço dos corvos da crueldade.

 

O que mantiver a palavra e a cerzir no farol da paixão

ouvirá o canto das esferas celestes na boca do anjo,

no resplendor de um corpo feito de éter e incenso.

Passeará pela sombra da tarde nas avenidas de musgo,

nas ruas de Tiatira tomadas ao exército da loucura.

 

1993

terça-feira, 12 de abril de 2022

Meditação Breve (178) Moda

Horst P. Horst, Fashion model, 1938
Pode-se pensar que a paixão pela moda está ligada à esteticização da indumentária num mundo onde as aparências se tornaram essenciais ou, então, ao culto do corpo, a sua afirmação plena, feita pela oclusão do espírito através do sublinhar, pela roupa, dos traços físicos. No entanto, nos rituais da moda manifesta-se uma outra coisa, a liturgia do efémero e a ascese do passageiro. Nela afirma-se que apenas existe aquilo que passa e, após a cintilação de um instante, se reduz a nada. O brilho ofuscante da moda é uma outra modalidade em que o niilismo que corrói a cultura ocidental se torna ostensivamente patente.

domingo, 10 de abril de 2022

Histórias sem nexo 28. Cro-Magnons

Jacint Salvadó, Abstrait informel, 1967
Crisântemos para Creonte da Croácia, um cromo da c´roa. A Creusa sem creatinina cravou-se na creolina. Cristóvão, o criado, Crispim, o crispado. A Cristina sem crime e a Cristiana sem creme. Com crédito na cripta do croupier, creram-se crucificados na cruel cruz de Cronos. Uns Cro-Magnons, crocitaram o Crátilo e o Crisóstomo.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Haikai urbano (71)

André Kertész, Pont Neuf, Paris, 1931
 Era a ponte nove
e caminhava em silêncio.
Obscuras paixões.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Meditação Breve (177) Corpos

Gjon Mili, Nudes, 1940

Os corpos são, por vezes, flocos de luz. Outras, fundas cisternas onde se depositam águas lustrais. Se despidos, a luz irrompe pela pele. Quando adormecem e penetram no país do sonho, são como náufragos afogados no lago sombrio que os habita.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Impressões 95. A sombra da nudez

Frantisek Drtikol, Nude with shadow, 1930s
A força do hábito traz-nos para dentro da cegueira. Fascinados pela nudez, para a qual os olhos se sentem sempre e de imediato impelidos, não vemos nela a sombra que é, a projecção do que, nela se manifestando, está muito para além do corpo desvelado, como uma velha cicatriz desoculta uma dor há muito esquecida.

sábado, 2 de abril de 2022

Sete Cartas - 3 Ao anjo de Pérgamo

Jackson Pollock, The White Angel, 1946

Sobre as praças de Pérgamo reina um anjo.

A voz engendrada na auréola azul das estrelas

ilumina a gangrena na cegueira dos homens.

Com o punhal da errância traça a fronteira

entre o vigor da vigília e o cansaço do silêncio.

 

Nas ruas da cidade guardam ainda entre mãos

as letras de meu nome, sílabas verdes do vento,

o alfa, o ómega, o mundo retido na palavra,

candelabro incendiado na sombra da noite,

labareda de luz a ondular ao ritmo da respiração.

 

Pedras nascidas do tempo, roladas com demora,

flocos de cinza onde inscrevo o meu nome

entre símbolos da aurora e sinais de escuridão.

Falésias fulguram bordadas pela caligrafia

com que traço o voo da ave, o bramir da dor.

 

Descrêem na palavra perdida em minha boca.

Quando o vento tempestuoso sopra de ocidente

lançam os joelhos por terra, erguem as mãos

na desolada sintaxe dos dias de angústia,

na perpétua morfologia do grito e da mágoa.

 

Eu sou o vento que sopra onde quer, diz-lhes.

Em todo o lugar animo as ervas ralas do chão,

uno o Norte ao Sul, confundo Leste Oeste,

sou a ave sem poiso, pássaro que não dorme,

a música das esferas celestes na rua da razão.

 

Diante do fogo fogem maculados pelo medo.

Entregam o corpo ao escárnio, ao abrigo do sangue.

A espada da minha boca cortará o feno pela raiz

e nas faces inscreverá letra sobre letra a delicada

mancha solar, a lâmpada na clausura da noite.

 

Sou a água do rio a correr para o santuário da foz.

Quem a navegar comerá a maçã da solidão.

Na jornada, receberá a pedra branca da linguagem,

o sangue derramado nas campânulas da aurora.

Palavra do anjo esquecido nas ruas de Pérgamo.

 

1993

 

quinta-feira, 31 de março de 2022

O sal do silêncio (77)

Edward Hartwig, Blossoming apple tree, from the Spring series

Na Primavera, o silêncio é a casa onde floresce a velha macieira. Entra por ele, como se fora um palácio, e espera que a memória da seiva, pontuada pelo sal dos anos, se transmute em flor, anunciação da dádiva, presença ausente do fruto. 

terça-feira, 29 de março de 2022

Haikai urbano (70)

William Henry Fox Talbot, Old Waterloo Bridge, London, ca. 1846
Murmúrios das águas
ao passar p'la velha ponte.
Um rio em silêncio.

domingo, 27 de março de 2022

Câmara discreta (7)

Frank Eugene Smith,  Slumbering maidens, c1900

Discreta, a câmara foca as raparigas, apanha-as adormecidas, exaustas, cansadas de dançar, ou de um jogo de sociedade, ou das inúmeras confidências que têm sempre de partilhar entre si. Terão falado das expectativas, do alvoroço do amor, o que a vida lhes há-de trazer. Agora dormem, amparadas umas nas outras. O fotógrafo esconde-lhes os sonhos, os delicados segredos que, ao dormir, atormentam a consciência, imagens, imprecisas e insidiosas, vindas do fundo dos corpos, do princípio dos tempos.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Biografias 26. A sonhadora

Imogen Cunningham, The Dream, 1910
Vivia na delicada fronteira que separa o dia da noite, num território poroso, habitado pelas mais extraordinárias espécies animais, abrigo de delicadas plantas, de floração lenta e prolongada, nunca entrevistas noutros lugares. Ali firmara a sua casa. Havia quem afirmasse que construíra sobre areias movediças, mas ela ignorava opiniões alheias. O sonho era a sua vida. Não o sonho  dos visionários que pretendem enxertar os seus devaneios no mundo, mas o sonho puro, que é vivido apenas durante o sono. Tudo ali era mais real. Com o passar dos anos, a sonhadora começou a desprezar os estados de vigília, até que os aboliu. A sua vida era agora toda ela um sonho.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Sete Cartas - 2 Ao anjo de Esmirna

Max Ernst, El ángel doméstic, 1937

Ao anjo que sobrevoa os céus de Esmirna,

em suas asas, de frágeis filamentos,

cresce uma cobertura de ambrósia,

o fruto amadurecido pelo sal de Outono.


Cintila-te no vigor da voz o poder da palavra

daquele que fala no murmúrio do silêncio

e tece com mãos de ráfia dedos de ametista

a seda esquiva do arquipélago do tempo.

 

No entrelaçado fio das horas desenhou

uma serpente suspensa sobre as ínsulas

perdidas na caverna do esquecimento,

nimbadas pela pétrea palidez do passado.

 

Fala por aquele que permanece

na inquietação das chuvas de Dezembro

sentado no vácuo da terra crua

preso ao bulício dos homens magoados

 

bêbados pelo álcool do crepúsculo,

pela cal a arder nas paredes nuas

da casa onde sentados escutam as aves

nas sílabas sopradas pela sirene do vento.

 

Conheço de vós as obras, as mãos queimadas

pelo coral roubado à inocência do mundo,

o coração desatinado pelo dédalo do desejo,

os sonhos regados pelo vinho da vitória.

 

Que um esgar de dor vos prenda o rosto,

o roube à erva e ao verde da Primavera.

Que a cinza das palavras desça sobre as cabeças

para vos arrebatar do vendaval da vergonha.

 

O pássaro côncavo voa nos céus de Esmirna,

esconde no feltro das asas o cristal da morte,

o casulo onde a larva da escuridão

se abre na crisálida da noite, a ninfa por chegar.


1993

segunda-feira, 21 de março de 2022

Impressões 94. Sobreposições e entrelaçamentos

Frederick Sommer, Venus, Jupiter and Mars, 1949
A realidade - ou aquilo a que damos esse nome - estará longe de ser unívoca. Será composta por múltiplas camadas que ora se sobrepõem, ora se entrelaçam, num jogo que provoca nos homens as mais discordantes impressões. Por vezes, pergunta-se o que será real. Talvez a resposta deva ser que tudo é real, incluindo ilusões, fantasias e quimeras. São reais as sereias e os antigos deuses. Vivem nas nossas impressões, as que dão conta das múltiplas camadas sobrepostas e as que manifestam os infinitos entrelaçamentos.

sábado, 19 de março de 2022

Câmara discreta (6)

Guido Rey, A Quiet Corner, c. 1900

Olhamos e compreendemos de imediato que também o tempo se pode suspender, afastar de si a ânsia que o faz correr para se despenhar no fundo abismo do futuro. A contemplação do gesto com que as mãos bordam a brancura do pano, os movimentos do corpo que acompanham o cumprimento da tarefa, o olhar cuidadoso que se retira do mundo para a peça que se tem nas mãos, tudo isso está já fora do barco da temporalidade, ou, para ser mais preciso, ainda não caiu da eternidade no rumorejo do tempo, que, por longos instantes, se encontrará suspenso.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Micronarrativa (59) Dança

Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye performing a “pas de bourree”, 1947

Sempre sentira dificuldade em estar de acordo consigo. Sobre qualquer assunto, enquanto os outros tenham uma opinião firme, ela tinha muitas e nenhuma delas era marcada pela força da convicção. Essa contínua e inexplicável guerra que a atravessa poderia tê-la exaurido e conduzido a uma morte prematura. Salvou-a a dança. Enquanto girava sobre si, os seus múltiplos corpos desligavam-se e reconciliavam-se com as suas próprias almas. Quando parava, todos se uniam num único corpo e numa única alma. Então, ela sabia quem era.

terça-feira, 15 de março de 2022

O sal do silêncio (76)

Otto Wunderlich, Casas Asturianas, 1920s

Há casas, velhas casas, salgadas pelo sal do tempo, pelo deslizar contínuo dos dias, dos trabalhos trazidos pelo passar das estações, pelo dedilhar do rosário dos anos. Nasceram entre a exuberância da alegria e a sonoridade da festa. Depois, os telhados escureceram, as paredes perderam a cal, e os homens entregaram-se ao desvario dos sonhos, até que o silêncio a tudo devorou.

domingo, 13 de março de 2022

Sete Cartas - 1 Ao anjo de Éfeso

Salvador Dali, Angel, 1950

Palavras dirigidas ao anjo dos efésios,

ao que vela dia noite sobre os ombros dos homens

e na sombra da árvore inscreve um incêndio:

fogo de palha, combustão de luz,

a labareda tecida com o feroz fio do esquecimento.

 

Anjo de asas recurvas e braço erguido

refrigério das praias banhadas pelo mar da memória.

 

Eu sou Aquele que em sua dextra ergue as sete estrelas

e nos céus componho uma constelação.

De noite, os homens olham-na

e na geometria do olhar suspeitam

a linha do horizonte, a luz estelar da minha face.

 

Escutam-me os passos perdidos

entre o azul da Terra e a alucinação do âmbar.

 

Olho do fundo do coração e vejo o mundo crescer,

a formiga lavra a poeira das tardes, as noites azotadas,

os dias feridos pelos tambores da morte.

Trabalhaste a dor insinuada na pele,

cresceste em cidades de mármore e escuridão.

 

Como um insecto poisado na carnação do fruto

abraçaste o nome tão breve que trazes em ti.

 

Dentro do peito abriu-se um muro, uma paisagem

toldada pelo nevoeiro. Embaciado, entregaste o fulgor 

à transfiguração da tarde e nela construíste casa de colmo,

morada sombria de silêncio na rua da verdade,

o castelo de muralhas incendiadas pelo lume da guerra.

 

Envelheces e a cor dos dias de festa

perde-se na areia desmaiada sob o sol da solidão.

               

Abre o peito à minúcia do gesto,

deixa correr como um rio o orvalho e o sangue.

Ao arderem, as ruas entregam a úlcera das casas

ao martelo de mármore, à carne salgada,

às asas recurvas do anjo dos efésios.

 

Um sulco de seiva na penumbra do pólen,

a abelha deliba o fogo no cálice da vida.


1993


sexta-feira, 11 de março de 2022

Haikai urbano (69)

Greg Girard, Yokosuka, Japan, 1976
 Eis a noite aberta
pela espada luminosa
da escuridão.

quarta-feira, 9 de março de 2022

O Espírito da Terra (8)

Francis Frith, Twickenham Thames, 1890s

Um rio, as margens tomadas pelo verde das ervas, os campos, o escasso casario. Ali a vida decorria sem pressa, ao ritmo das estações e dos trabalhos agrícolas. Havia pássaros e, por vezes, os campos tornavam-se prados onde os animais se demoravam gratos pelo alimento transbordante, ignorantes do destino. Nas tardes de calor, sob a sombra das árvores, havia homens segurando canas de pesca, indiferentes aos peixes, ao casario, concentrados num sonho feito de aromas de terra e água, de flores na Primavera.