domingo, 1 de fevereiro de 2015

Poemas do Viandante (495)

Albert Rafols Casamada - Gran espacio claro (1977)

495. componho um madrigal

componho um madrigal
na noite de inverno

e deixo as águas correr
no leito do rio

como se uma luz descesse
no vagar eterno

com que os teus olhos desvelam
um campo baldio

sábado, 31 de janeiro de 2015

O ardor silencioso

Tal-Coat - Do ardor (1972)

Não é a impassibilidade dos estóicos que o viandante busca, tão pouco é o entusiasmo dos exaltados aquilo a que aspira. Na viagem, procura o ardor silencioso que move o coração e que, preso ao segredo que o habita, ilumina o mundo.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Criador de formas

Frantisek Kupka - A forma do azul (1931)

Muitas são as formas que se deparam ao viandante no caminho que faz. Num primeiro tempo, fica fascinado com a multiplicidade que o mundo exterior lhe apresenta. Num segundo tempo, cresce nele a dúvida sobre a origem daquelas formas. Seriam mesmo formas exteriores? Por fim, avançado na idade, o viandante descobre que tudo o que vê é a projecção daquele que vê. O bem e o mal, o branco e o azul, o sólido e o líquido, todas as formas têm a forma do seu olhar, da pureza ou da imundície que lhe habita o espírito. O viandante é um criador de formas, que o afastam ou o aproximam do que não tem tem forma.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Na escura noite

Sol LeWitt - A dark square on a light square and vice versa (1982)

All that understanding can grasp, all that desire can desire, that is not God. Where understanding and desire end, there is darkness, and there God shines. (Meister Eckhart, Sermon Eighty)

Suspender o pensamento e o desejo, suspender a razão e a vontade. Como será possível tal coisa? Não dependemos, na nossa vida, do entendimento e da faculdade de desejar? Não será a escuridão - aquilo que resulta da suspensão do pensamento e do desejo - o que mais tememos? Não será essa escuridão a própria morte? Sim, essa escuridão é a morte, não a morte biológica, mas aquela que elimina as ilusões do nosso entendimento e os devaneios do desejo. Só dela podemos ressuscitar, quando, na escura noite, a Luz brilhar.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Poemas do Viandante (494)

Caspar David Friedrich - Porto à noite (1818)

494. as vozes que se ouvem

as vozes que se ouvem
na queda do dia

as palavras rasuradas
que então me dizes

são símbolos que se abrem
no fulgor da noite

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Sobre a arte

Willian M. Harnett - Music and Literature (1878)

Em Hegel a arte - a arte dos gregos - ainda era vista como uma manifestação sensível do Absoluto. Nos dias de hoje, na sociedade de mercado, a arte é um bem económico e julgada socialmente pelo seu valor no comércio, independentemente da crença de cada um sobre o valor e os serviços que a arte possui e presta. Para o artista, contudo, a arte é a sua viagem no caminho do espírito, a resposta que dá à voz que o chamou, Não é uma manifestação sensível do Absoluto, mas o mapa que alguém traça da sua viagem ao encontro desse Absoluto.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O mistério da noite

Alphonse Osbert - O mistério da noite (1897)

As sociedades modernas dividiram a noite segundo uma tripla possibilidade. A noite como o tempo de descanso, como o tempo da diversão e como o tempo de trabalho. Esta tripla consideração do tempo nocturno tem por função matar o mistério da noite, impedir que ele simbolize para o homem alguma coisa de essencial. O mistério da noite reside na possibilidade que nela a luz se manifesta com mais intensidade. O mistério da noite é o da vitória luz sobre as trevas.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Divergência e convergência.

Jackson Pollock - Convergence (1952)

É hábito considerar o pensamento divergente como sintoma de criatividade. Toda a divergência é, antes do mais, um afastamento, uma separação do instituído, daquilo que o mundo e o senso comum aprovam como aceitável. Afastamento esse que é, ao mesmo tempo, uma convergência com o inesperado, o inusitado, com a voz única que do fundo do ser chama por aqueles que ousam divergir do mundo.

sábado, 24 de janeiro de 2015

De porto em porto

Paul Signac - Port of La Rochelle (1921)

O porto simboliza um momento especial da viagem. Marca a chegada a um certo patamar de compreensão e de luz. Ao mesmo tempo indica uma nova necessidade de partir, de entrar no não conhecido e no não luminoso. A tranquilidade de chegar a bom termo indica sempre a ânsia de procurar uma nova luz.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Haikai do Viandante (219)

Godofredo Ortega Muñoz - Aguirri Pirineos (1926)

sob a neve
a pedra fria e dura
nela a vida cresce

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A sedução do entretenimento

Gustavo - Circo turístico (1975)

O risco maior para quem recebeu a dádiva da vida é fazer dela uma viagem turística ao circo, tornar a sua existência numa relação distraída e superficial com a vida, o mundo e os outros. A sedução do entretenimento não é apenas o resultado da acção eficiente da indústria cultural. Ela é um perigo que espreita os mais elevados e insuspeitos domínios espirituais, uma forma de fazer da vida do espírito um passatempo de um eu exausto e fechado sobre si.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Poemas do Viandante (493)

Kazimir Malevich - House with a Fence (1910-11)

493. o silencioso segredo

o silencioso segredo
desses lábios

murmura uma canção
aos meus ouvidos

e eu oiço-te no silêncio
da minha casa

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O desejo do além

Paul Ackerman - L'au-delà est désirable

A crítica popular à crença no além esquece o facto desse além ser o objecto que move o desejo. Ao desejar qualquer coisa o homem põe diante de si, como objecto desejável, algo que está para além dele, uma transcendência. O além é o sinal da nossa impossibilidade de coincidirmos com o aqui e o agora factuais, com as condições que a existência terrena nos propõe. O além chama-nos e move-nos pela sua natureza desejável e que tem o poder de desencadear o desejo. Seria um equívoco encerrarmos o além num mero devaneio da imaginação, numa ilusão de óptica movida pelo medo.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Ardente obscuridade

Juan José Aquerreta - Ardente oscuridad (1991)

A noite escura e o amor ardente. Estes são os sinais de avanço na viagem. Que sinais anunciam ao viandante o progresso no caminho que é o seu? Quanto mais escura for a noite, quanto menor for a luz do mundo, e quanto mais ardente for o amor, então o viandante pode suspeitar que não se desviou do caminho.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Um lugar de solidão

Albano Vitturi - Gli eremiti di Faida (1934)

A nossa sociedade é fértil em contradições. Nenhuma outra terá exterminado com tanta determinação a possibilidade dos homens encontrarem um lugar de solidão, um eremitério onde se possam confrontar consigo e com a vida. Mas nenhuma outra terá precisado tanto que homens e mulheres se encontrem perante si próprios, se confrontem com a vida, tenham um lugar de solidão e abandono.

sábado, 17 de janeiro de 2015

A grande batalha

Yves Klein - La Grande Bataille (1961)

Tudo seria mais pacífico se, desde muito novos, os seres humanos aprendessem a travar a grande batalha. E contra quem travariam eles essa batalha? Contra as suas próprias ilusões, contra as crenças que os levam à convicção de que são deuses e que possuem uma vontade um poder absolutos. Não haverá batalha mais difícil de vencer do que aquela onde desafiamos as nossas ilusões. Elas resistem, enganam-nos, seduzem-nos. Desviam-nos sempre daquela voz que, no deserto, clama por nós.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Poemas do Viandante (492)

Ken Howard - Palazzo Michiel, Venice, January (1998)

492. os dias furtivos de janeiro

os dias furtivos de janeiro
avançam na escuridão

sem que um nome os leve
para dentro da noite

sem que um desejo os abra
dentro do coração

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Aqui e agora

Esteban Vicente - Aqui (1993)

Aqui e agora. A viagem espiritual é uma luta contra o estranhamento, contra aquilo que tomou o nome de alienação. Este estranhamento não é outra coisa senão o negar da presença, do estar plenamente atento ao aqui e ao agora do acontecer.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

À espera da serenidade

Ángel Mateo Charris - Abstracto II (1999)

A viagem tem o seu tempo de sábia placidez. O viandante senta-se na sua frágil embarcação e sente a calmaria do mar. Não é ainda a tempestade, aquela que se segue à bonança, que espera, mas a serenidade que a contemplação lhe pode trazer. Espera que uma revelação lhe permita continuar o seu caminho.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O nascimento da melancolia

Giorgio Chirico - Melancholy of a Beautiful Day (1913)

Esses dias belos, cuja beleza nos fascina e prende à aparência, são fonte de uma estranha melancolia. Não pela sua beleza efémera nem pela improdutividade que muitas vezes os acompanha. A melancolia nasce do fascínio com que eles desviam o espírito do seu caminho. Perdido na aparência, o espírito esquece a realidade, aquela que chama por ele e que ele aspira atingir. A melancolia nasce do esquecimento, mas de um esquecimento assombrado pela luz da reminiscência.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Haikai do Viandante (218)

Harald Sohlberg - Night (1904)

quando a noite desce
sobre a secura dos montes
tudo estremece

domingo, 11 de janeiro de 2015

Cuidar o jardim

Raoul Dufy - O jardim abandonado (1913)

De um ponto de vista racional, pode-se sempre pensar que a ideia do paraíso, do jardim do Éden, foi construída à imagem e semelhança dos jardins que homem teria já inventado para seu deleite na terra. A imaginação, porém, pode, com o poder arquetípico que a constitui, dizer o contrário. Todos os jardins humanos são uma cópia ou uma reminiscência do paraíso, dessa experiência originária que habita o fundo da espécie humana. Ao dizer isto, a imaginação está ainda a dizer outra coisa. Tendo o homem sido expulso, o jardim foi abandonado. E esta ideia traz uma injunção para cada homem sobre a terra. A vida, no seu significado último, não deveria ser outra coisa do que a viagem de retorno. O jardim precisa de ser cuidado.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Dentro do bosque

Ernst Ludwig Kirchner - Na orla do bosque (1920)

A vida dos homens decorre para além do bosque, no espaço civilizado sujeito às regras da sociabilidade humana. A vida espiritual, porém, implica um deixar a orla e adentrar-se no bosque, abandonando a sociedade e a civilização. Isso não significa a adopção de um estilo de vida incivilizado ou uma conduta insociável. Significa apenas que a vida do espírito se desenrola fora dos hábitos e das rotinas, no território onde, a cada momento, surge o inesperado que apela para o não pensado e o não dito.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Perder o norte

André Masson - Os pontos cardeais (1924)

Os pontos cardeais indicam-nos os sentidos fundamentais que podemos tomar na exploração do território. São um dispositivo de orientação na materialidade física do mundo. A viagem espiritual, porém, começa quando se abandona a segurança da orientação. No caminho para aquilo que chama o viandante, a rosa dos ventos ou a bússola não são dispositivos de ajuda. São entraves. A viagem começa quando os abandonamos e nos abrimos à solicitação trazida pelo acontecer. Há que perder o norte.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Uma nova inocência

Mère Geneviève Gallois - Adam et Eve chassés du paradis (1926)

Na narrativa de Adão e Eva, a expulsão do paraíso é vista como um castigo, um acontecimento negativo, algo que sucedeu devido à queda, à perda ingénua da inocência. Esta é, contudo, apenas uma parte da história. A expulsão do paraíso é o começo da viagem, a dolorosa procura de uma nova inocência, uma inocência que, abandonada a ingenuidade, se sabe e se quer inocente.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Poemas do Viandante (491)

Remedios Varo - Frío (1948)

491. os frios de janeiro erguem-se

os frios de janeiro erguem-se
sobre a terra

traçam ruas de gelo nos campos
abandonados

e semeiam a morte nos corações
baldios

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A música

Henri Matisse - La Musique (1939)

De todas as artes, a música será aquela cuja natureza espiritual é mais decisiva. Na música já se abandonou a forma e a figura presentes nas artes plásticas, já se deixou para trás o discurso composto por unidades discretas, as palavras, que segmentam a realidade. Na música há o mais puro fluir, como ela fosse o primeiro eco da voz de Deus, o primeiro revestimento que o Logos divino toma para se revelar aos homens. A música é o cume da montanha ao qual todo o viandante aspira a chegar para, de lá, lançar a vista para o além.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A estrela da tarde

William Turner - A estrela vespertina (c. 1830)

No regime existencial que pertence ao homem não há luz que não contenha em si um traço de escuridão, não há trevas que não sejam pontuadas pela luz. Não está dentro das condições de possibilidade do homem suportar o absoluto, seja o da luz ou o das trevas. Quando o sol se põe e as trevas ameaçam tomar conta do mundo, o brilho da estrela da tarde recorda-nos que, para nós, as trevas não são absolutas nem eternas. A luz é ainda um princípio de esperança que, nos momentos mais negros, guia a viagem espiritual do homem.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Haikai do Viandante (217)

George Iness - Winter, Close of Day (1866)

dia de inverno
o sol resplandece na água
e tudo se cala

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O frio invernoso

George Wesley Bellows - A Morning Snow - Hudson River (1910)

Nos ciclos da vida espiritual não é importante apenas a sua natureza cíclica, o facto de uma estação antecipar já a próxima, como se a vida fosse uma deriva em espiral. Em cada estação - como nas estações da via crucis - há que permanecer na natureza que a constitui e abrir-se à experiência a que ela convoca. Também o frio invernoso faz parte do caminho do viandante, nessa aproximação infinita à voz que o chama.