domingo, 30 de julho de 2023

A sombra da água (17)

Thomas Joshua Cooper, Cabo de São Vicente (meia-noite), 1994

Produzidas na fábrica do silêncio, as águas da meia-noite vestem-se como viúvas a quem o mar roubou os maridos. Então, murmuram canções desconhecidas que o vento, tocado pela maresia, transporta para terra, como se anunciasse a vinda de um mundo novo nascido do cristal salgado dos oceanos.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Signo sinal 11. Turbilhão

Adelaide Cad’Oro, sem título, 1983 (aqui)

Como num deserto, as areias enovelam-se e batidas pelo vento erguem-se em turbilhão, adquirindo estranhas configurações para sinalizar aquilo que ainda não se vê, mas que o tempo traz consigo já pronto para se manifestar aos olhos de quem saber olhar.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Geometrias de fogo (17)

Vincent van Gogh, Olive Trees with Yellow Sky and Sun, 1889
Os raios solares entram pela terra e adormecem longos meses para, chegada a hora, renascerem como mil frutos das oliveiras que, ao transformarem-se no mais puro dos azeites, alimentarão as pequenas chamas que guiarão os homens na sua peregrinação por campos e cidades ou lhe darão a luz que, na sombra da casa, os abrirá ao mais secreto dos segredos.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Meditação Breve (190) Assuntos domésticos

Max Ernst, El ángel doméstico, 1937

Ter-se-ão zangado os anjos domésticos, agora que desapareceram as fadas do lar, de quem cuidavam e a quem inspiravam os infinitos cuidados que elas, submersas na solidez férrea da sua função, prodigalizavam à casa e aos seus habitantes. Desempregados, esses anjos benevolentes deixaram-se tomar pela cólera e aspiram que a velha ordem seja trazida de volta e com ela as doces fadas com que pessoas desavisadas sonham noite dentro.

sábado, 22 de julho de 2023

Sulcos de Verão 5

Laurence Stephen Lowry, Coming from the Mill, 1930

No desabrigo da cidade,

intermináveis são as tardes

destes dias de calor aceso.

 

Por terra, frutos de Verão

lembram ruínas esquecidas

pela incúria dos homens.

 

Longos silêncios de domingo

são rugas nascidas do tempo,

preces ao Deus abandonado.

 

Julho de 2023

quinta-feira, 20 de julho de 2023

A memória do ar (16)

Dr. S.B. Ward, Winter, 1889
O ar transporta em si a memória de todas as estações. Carrega-a como se sonhasse. Quando é tocado pelas recordações de Inverno, arrefece e corre o mundo, trazendo as águas pluviais que limpam as cidades ou algum nevão que cobre montanhas e planícies com o imaculado véu da brancura.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Signo sinal 10. Uma sombra

James Craig Annan, Der Franciscaner, 1896
O silêncio fundido na solidão torna-se uma sombra a pairar pelo mundo. É um animal de fogo no gelo da terra, é uma floresta de água no caminho do incêndio. Vai e vem como um sinal que indica o caminho ou o signo do advento da Primavera.

domingo, 16 de julho de 2023

A sombra da água (16)

Manuel Cargaleiro, Flores na água, 1960
Falemos de processos, desses mistérios em que uma coisa se transforma numa outra. Ouve-se o borbulhar da água e logo, sobre ela, se vê um manto de sombras que protegem o rodopiar em que, lentamente, as gotas se juntam e se tornam nas mais fulgurantes flores. São rosas, tulipas, orquídeas, malmequeres silvestres que se abrem na humidade que as trouxe à vida.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Sulcos de Verão 4

Kazimir Malevich, River in the forest

O Verão desfraldou bandeiras

sobre a paisagem ressequida,

sobre as águas pardas do rio.

 

Os corpos são sombras ligeiras,

tomados pela calmaria

das tardes que nunca têm fim.

 

Ouve-se o ramalhar das árvores.

Ouve-se um cântico nas margens.

Ouve-se o júbilo de Julho.

 

Julho de 2023

 

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Pintura e haikus (32)

Chaim Soutine, House in the Country - 1934

As casas de campo
são mistérios doutro tempo.
Erma solidão.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

O Espírito da Terra (26)

Daniel O'Neill, Returning Home, 1956

Quem volta ao lar pisa o chão com leveza, para que a terra permaneça silenciosa e, envolta no seu silêncio, deixe que o espírito que a guia conduza quem se fez ao caminho para retornar ao lugar que é seu, como se voltasse ao paraíso de onde fora há muito expulso.

sábado, 8 de julho de 2023

No limiar (7)

Ana Hatherly, O Homem Invisível, 2001

Uma fossa abissal separa o reino do visível do império do invisível. Neste, os seres não são apenas possibilidades, mas realidades destituídas de corpo. Puras inteligências, eles têm também memória e imaginação, mas não das coisas e dos mundo corpóreos. Recordam as aventuras do espírito e imaginam realidades vivas que, aos nossos olhos, parecerão puras abstracções. Quando se cansam dessa existência sem contaminação, saltam sobre o abismo e chegam ao reino da visibilidade. Na viagem, ganham corpo, escondem no mais íntimo de si o império em que viveram e abrem-se ao reino do contágio e da infecção.
 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Sulcos de Verão 3

Maurice Denis, Paradise, 1912

Envolto em fogo de artifício,

também o Verão foi trazido

pela barcaça do destino.

 

Juiz rude, sem piedade,

distribui pela terra frágil

as suas sentenças ardentes.

 

Sonho sombras e solidão,

a vinda de um Outono eterno,

luz do paraíso perdido.

 

Julho de 2023

terça-feira, 4 de julho de 2023

Geometrias de fogo (16)

Willem De Kooning, Fire Island, 1946

Não há ilhas mais imprecisas que as de fogo. Ao arder, queimam os contornos e alargam as fronteiras. Expandem-se em geometrias incertas, submissas à vontade do vento e aos desígnios das labaredas. Crescem num ruído de tormenta e apagam-se num silêncio de cinzas.

domingo, 2 de julho de 2023

O sal do silêncio (101)

Weegee, Sleeping at the Bar, 1939

Quando os sonhos são urgentes, qualquer lugar serve para que, rasgando o ruído com o arado do silêncio, chegue o sono, não aquele que retempera as forças e abre o corpo para a azáfama de cada dia, mas o que abre o espírito ao sal da imaginação.