segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

O Espírito da Terra (24)

Albert Renger-Patzsch, Heidesheim (Sandaue), 1940s

Sob a erva a terra esconde-se, para que nela a vida, como um segredo, possa germinar. Tudo o que nasce vem do silêncio da terra, de uma lenta urdidura, para que a novidade chegue envolta no véu transparente da surpresa. Os dias passam como anéis deslumbrantes de mármore, que se recolhem em dedos afilados, enquanto, no solo, cresce o odor daquilo que, ainda sem nome, virá.

sábado, 28 de janeiro de 2023

A Luz de Inverno 6

Leonard Misonne, Winter, Gilly Belgium, 1935

Na terra, homens caminham

no murmúrio das geadas,

buscam os primeiros frutos


para oferecer aos pássaros

filhos do fogo e do vento,

às vozes frias de Dezembro.


Eu sigo as sombras do céu

e canto a luz do Inverno.

Sou uma estrela errante.


Janeiro de 2023


quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Meditação Breve (188) O tempo

Elliott Erwitt, Paris, 1989

Pode-se imaginar que a causa final que levou à invenção da fotografia tenha sido a de congelar para a eternidade um momento, do qual se expulsa o movimento e com ele o tempo. Depois, há fotografias em que o movimento se liberta e o tempo retoma o seu velho poder. O vento não deixará de fustigar os guarda-chuvas, o homem não parará o seu movimento em direcção aos lábios da mulher, o bailarino continuará a dar os passos que o mantêm entre o céu e a terra, como se a eternidade não fosse mais do que um tempo sem fim.

domingo, 22 de janeiro de 2023

Geometrias de fogo (6)

Marc Chagall, War, 1964-66

São os piores dias aqueles em que fogo cai do céu ao som das botas cardadas. As labaredas pesam como rochas gigantescas e esmagam a terra e o que nela se move. Ao longe, vê-se a cintilação e um enorme fulgor, mas o espectador sabe que não são línguas de fogo a descer sobre o cenáculo, mas o lumaréu vindo do inferno que os homens trazem dentro de si.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A Luz de Inverno 5

Ramón Casas Carbó, Invierno, 1893

Uma chuva ardente cai

sobre a sombra da tarde,

sobre o vazio das ruas.


O frio floresce nos corpos,

prende-os dentro de casa,

simula-lhes solidões.


No crepitar da lareira,

o homem escuta a voz

das aves da Primavera.


Janeiro de 2023

 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Micronarrativa (64) Viagem

Ernst Haas, Utah, 1952

A imagem extática de uma natureza que espera, uma paisagem delicada onde os mais terríveis segredos se escondem, para que o silêncio os guarde e não os deixe cair, como um trovão retumbante, sobre quem passa. Esse fundo sem fundo aguarda-te e tu, perdido na névoa da ignorância, precipitas-te para ele, arrastando tudo atrás de ti, como se esse mundo silvestre fosse o lar onde a esperança te aguarda.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A sombra da água (6)

Edward Steichen, Late Afternoon - Venice, 1907

A noite desce sobre o rumor das águas, é uma sombra vinda de um mundo sem nome. A luz ainda resiste como se tivesse nela a força para suster a escuridão. A vida, porém, passa indiferente como se a vertigem que a habita a impedisse de olhar aquilo que nela se desenrola. 

sábado, 14 de janeiro de 2023

O sal do silêncio (94)

Rudolph Eickemeyr Jr., In the Valley of the Beaverkill, 1890
Era o lugar onde homens chegados à transparência poderiam encontrar abrigo. Ali não haveria quem lançasse atrás deles os cães da perseguição e os lobos do desdém. Uma atmosfera pura cobria a terra e o vento ou o cântico dos pássaros de Verão eram ainda uma memória do silêncio, onde, perdidos no cristal da existência, encontravam o peso do seu corpo.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

A Luz de Inverno 4

Gustave Loiseau, The Eure River in Winter, 1903
Longas e frias são as noites
que o Inverno transporta

no segredo da memória.


Se chega a aurora, tudo

se cobre com o verniz

mudo da melancolia.


Pássaros poisam nos ramos

despidos da solidão

e cantam velhas canções.


Janeiro de 2023

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

A memória do ar (6)

André Kertész, Washington square at night, New York city, 1954
A noite rarefaz-se numa atmosfera de melancolia. Um vento suave corre entre ramos despidos, açoita com bonomia quem se atreve a enfrentar a solidão, escava em silêncio um buraco no lençol nocturno, para que o dia, com a sua luz de âmbar, venha numa aurora deslumbrante, como uma noiva que chega ao altar.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Pintura e haikus (28)

António Sena - Deep, 1975

De azul em azul
o mar no céu se confunde.
 Trémulo horizonte.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Geometrias de fogo (5)

Paul Klee, Fire Wind, 1923
Se o esquecimento se debruça e cobre as planícies do coração, se os rios se escondem da cintilação da luz, se os cabelos das mulheres perdem a fulguração dos crepúsculos do Verão, então um vento de fogo cobre a Terra, inventando novas figuras onde a luz reverbera, para aquecer os corações gélidos, atear as águas que em tumulto procuram a foz, incendiar na ondulação do amor os cabelos das mulheres.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

A Luz de Inverno 3

Boris Kustodiev, Winter, 1916

O Inverno traz silêncios

na sombra fria das árvores,

no rumor azul da tarde,


Os ramos despedaçados

deixam cair folhas secas

sobre a terra nua do Sul.


O teu corpo ilumina-se,

se as minhas mãos vazias

dançam na noite das tuas. 


Janeiro de 2023


 

domingo, 1 de janeiro de 2023

A sombra da água (5)

Otto Scharf, sem título, 1895

São águas tão tristes as que correm devagar, como se abrissem o caminho contra obstáculos desmedidos e carregassem com elas o peso de cada sombra. Enquanto rumam levadas pelo fluxo do tempo recebem em depósito a gravidade das imagens que o mundo sob o céu fabrica para que cheguem, como um enigma vindo do passado, à solidão do oceano.