sábado, 30 de abril de 2022

Câmara discreta (9)

Paul Strand, Blind, 1916
A câmara encontra o silêncio do olhar e transporta-o para dentro da eternidade das coisas passageiras. A mulher pensará na classificação que lhe atribuem, sem sentir o peso da chapa de registo, pura obediência à voracidade estatística com que os estados alimentam o seu desejo de conhecimento, dinâmica resignação à sorte que a vida sobre ela derramou. Num outro tempo, pensaria apenas que a deusa Fortuna lhe achara um defeito, talvez uma revolta, de que a cegueira seria a punição. Agora, perante o silêncio que a habita, espera que a misericórdia divina reverbere nos gestos da indulgência humana.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Sete Cartas - 5 Ao anjo de Sardes

Salvador Dali, Sin título (Angel surrealista), 1969

Em Sardes, caminha um anjo de argila e cinza,

preso na melancolia de uma rameira sem cor,

perdido entre o lixo das ruas e o carvão dos dias.

Ergue a cabeça coberta com o limo da ardósia,

a erva estreita das paredes orladas pelo xisto da sombra.

Leva no fundo da alma a porcelana branca

rasgada pela espada pura dos dias de Inverno.

 

Conta os espíritos de Deus e as estrelas do céu.

Conta os fogos da revolta e os incêndios nos campos.

Conta as obras por fazer e as noites por chegar.

Conta os dias de tristeza e os grãos de areia.

 

Em temor, escuta a palavra do silêncio entre o ruído,

a voz coberta de luz no andaime da cegueira.

 

Então, os dias passam sobre as glicínias da aurora,

os arbustos da infância, os sonhos de ambrósia.

Noites azuis na dança dos cedros batidos pelo vento.

 

Serão perfeitos os anos diante do juízo que virá?

O sopro do vento reanima a onda pegajosa da vida,

abre Fevereiro à página branca iluminada pela Lua,

os frutos amadurecidos pela errância do tempo.

 

Ao guardar a terrível palavra na têmpora da noite,

será o anjo um furtivo ladrão, ferirá a areia da praia

com o embrião das horas, o imprevisto de cada dia.

Ano após ano crescerá uma contaminação,

a mancha delgada irradiando em torno do ventre,

os dias passados sob o candeeiro de querosene.

 

No Ocidente, uma nuvem de breu cavalga o vento,

as palavras ditas em Sardes, terra de argila e cinza

habitada pelo anjo preso aos meandros das ruas,

cansado dos Invernos que traz na vazio das mãos,

no êxtase da luz, na secreta avidez da rosa de Deus.

 

1993 

terça-feira, 26 de abril de 2022

O sal do silêncio (79)

Imogen Cunningham, Aiko’s hands, 1971
Há em todas as mãos uma inclinação para o gesto e um desejo de silêncio. Trazem na memória dos dedos os sinais que um dia anteciparam as palavras e fizeram da mudez a possibilidade de viver entre a folhagem das florestas e o sal do medo.
 

domingo, 24 de abril de 2022

Haikai urbano (72)

Otto Wunderlich,  Alhambra, Salon de Embajadores (Granada), 1920s
A luz do silêncio
cai sobre o vazio da tarde.
Sombra sobre sombra.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Impressões 96. Transfiguração

Edward Hartwig, Untitled, 1970s

De súbito, o revérbero transfigura a paisagem. Árvores e campos deixam de ser simples árvores e campos, mas uma hierofania nascida do casamento entre a luz e a sombra, a manifestação de uma realidade totalmente outra por dentro da mais trivial das realidades.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

O sal do silêncio (78)

Harold Miller Null, Trulli, ca. 1970
Casas silenciosas inclinam-se lentamente para o centro de si mesmas. Da cal das paredes chegam, em murmúrios quase brancos, vozes que o tempo apagou, sinais fabricados com o coral e a seiva de quem partiu. Quando se entra nelas, sempre haverá uma garrafa de vinho para matar a sede ou uma sombra para o sono derramar sobre o corpo o resplendor do sossego.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Câmara discreta (8)

Bill Brandt, Brynhild Parker, painting a nude model, 1939

O olhar desce do corpo exposto ao corpo desenhado, sem se aperceber que em toda a exposição existe uma linguagem de abandono, o sinal de um esquecimento, o sintoma de uma traição. O esboço a que os dedos se entregam, com a destreza digital de uma errância calculada, é o resultado de uma mão treinada no uso do punhal, na dissecação da carne, na húmida certeza de uma vitória sobre o que, tão desamparado, se abre à lentidão com que os olhos transferem a forma encarnada para a frieza da figura exposta na brancura do papel.

sábado, 16 de abril de 2022

O Espírito da Terra (9)

Otto Scharf, Going home, 1901

A terra é esse silêncio que acolhe os homens no regresso a casa, pois não há outro desejo mais humano do que estar em sua própria casa. Não é um desejo de propriedade, nem um culto de proprietário. É antes a certeza de que qualquer morada é precária e que se deve desfrutar, com zelo sem fim, antes que o tempo a remeta para o pó de onde saiu, sem deixar vestígio, como se nunca tivesse descido ao lugar vacilante da existência.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Sete Cartas - 4 Ao anjo de Tiatira

Salvador Dali, El ángel de Port Lligat, 1952

Sobre a pródiga perfeição dos habitantes de Tiatira,

reina um anjo de cabelos azuis, quebrado pelo fogo

do turíbulo, por veios de mármore, linhas de luz.

Ave na escuridão da cidade, sereia nas águas lustrais

nascidas em côncava fonte, no cárcere do olvido.

 

Sob a sua protecção crescem salgueiros, choupos,

os rios contaminados pelo voo das borboletas,

pássaros tomadas pela ânsia luminosa do Sul,

o deserto onde se ouve o grito dos mortos,

o silêncio sem fim na mudez de orvalho dos vivos.

 

Escrevo as palavras acesas nas chamas de bronze,

na obscuridade derramada no pó da terra,

o trabalho sobre a areia perdida dos oceanos,

o vento escaldante ao arder no centro do coração.

 

Um sopro ressoa na paciente inspiração da carne,

na nudez do amor, no silêncio dos dias de Novembro.

A humidade das lágrimas escorre pelo vazio,

onde a boca sorve o sangue e a seiva das giestas.

 

Olho a campânula suspensa sobre a cabeça e na luz

abre-se na fresta da manhã o cálice do dia que passou.

 

Corrompe-se no esquecimento a palavra trémula.

Seca na boca o lastro da língua, o fogo do logos,

as palavras adulteradas pela traição da gramática.

 

Da sonolência da sombra brotarão sem sentido

os filhos das marés mortas, das vinhas incendiadas

pelo pólen do crepúsculo, pela estrela da aurora

submetida ao cansaço dos corvos da crueldade.

 

O que mantiver a palavra e a cerzir no farol da paixão

ouvirá o canto das esferas celestes na boca do anjo,

no resplendor de um corpo feito de éter e incenso.

Passeará pela sombra da tarde nas avenidas de musgo,

nas ruas de Tiatira tomadas ao exército da loucura.

 

1993

terça-feira, 12 de abril de 2022

Meditação Breve (178) Moda

Horst P. Horst, Fashion model, 1938
Pode-se pensar que a paixão pela moda está ligada à esteticização da indumentária num mundo onde as aparências se tornaram essenciais ou, então, ao culto do corpo, a sua afirmação plena, feita pela oclusão do espírito através do sublinhar, pela roupa, dos traços físicos. No entanto, nos rituais da moda manifesta-se uma outra coisa, a liturgia do efémero e a ascese do passageiro. Nela afirma-se que apenas existe aquilo que passa e, após a cintilação de um instante, se reduz a nada. O brilho ofuscante da moda é uma outra modalidade em que o niilismo que corrói a cultura ocidental se torna ostensivamente patente.

domingo, 10 de abril de 2022

Histórias sem nexo 28. Cro-Magnons

Jacint Salvadó, Abstrait informel, 1967
Crisântemos para Creonte da Croácia, um cromo da c´roa. A Creusa sem creatinina cravou-se na creolina. Cristóvão, o criado, Crispim, o crispado. A Cristina sem crime e a Cristiana sem creme. Com crédito na cripta do croupier, creram-se crucificados na cruel cruz de Cronos. Uns Cro-Magnons, crocitaram o Crátilo e o Crisóstomo.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Haikai urbano (71)

André Kertész, Pont Neuf, Paris, 1931
 Era a ponte nove
e caminhava em silêncio.
Obscuras paixões.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Meditação Breve (177) Corpos

Gjon Mili, Nudes, 1940

Os corpos são, por vezes, flocos de luz. Outras, fundas cisternas onde se depositam águas lustrais. Se despidos, a luz irrompe pela pele. Quando adormecem e penetram no país do sonho, são como náufragos afogados no lago sombrio que os habita.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Impressões 95. A sombra da nudez

Frantisek Drtikol, Nude with shadow, 1930s
A força do hábito traz-nos para dentro da cegueira. Fascinados pela nudez, para a qual os olhos se sentem sempre e de imediato impelidos, não vemos nela a sombra que é, a projecção do que, nela se manifestando, está muito para além do corpo desvelado, como uma velha cicatriz desoculta uma dor há muito esquecida.

sábado, 2 de abril de 2022

Sete Cartas - 3 Ao anjo de Pérgamo

Jackson Pollock, The White Angel, 1946

Sobre as praças de Pérgamo reina um anjo.

A voz engendrada na auréola azul das estrelas

ilumina a gangrena na cegueira dos homens.

Com o punhal da errância traça a fronteira

entre o vigor da vigília e o cansaço do silêncio.

 

Nas ruas da cidade guardam ainda entre mãos

as letras de meu nome, sílabas verdes do vento,

o alfa, o ómega, o mundo retido na palavra,

candelabro incendiado na sombra da noite,

labareda de luz a ondular ao ritmo da respiração.

 

Pedras nascidas do tempo, roladas com demora,

flocos de cinza onde inscrevo o meu nome

entre símbolos da aurora e sinais de escuridão.

Falésias fulguram bordadas pela caligrafia

com que traço o voo da ave, o bramir da dor.

 

Descrêem na palavra perdida em minha boca.

Quando o vento tempestuoso sopra de ocidente

lançam os joelhos por terra, erguem as mãos

na desolada sintaxe dos dias de angústia,

na perpétua morfologia do grito e da mágoa.

 

Eu sou o vento que sopra onde quer, diz-lhes.

Em todo o lugar animo as ervas ralas do chão,

uno o Norte ao Sul, confundo Leste Oeste,

sou a ave sem poiso, pássaro que não dorme,

a música das esferas celestes na rua da razão.

 

Diante do fogo fogem maculados pelo medo.

Entregam o corpo ao escárnio, ao abrigo do sangue.

A espada da minha boca cortará o feno pela raiz

e nas faces inscreverá letra sobre letra a delicada

mancha solar, a lâmpada na clausura da noite.

 

Sou a água do rio a correr para o santuário da foz.

Quem a navegar comerá a maçã da solidão.

Na jornada, receberá a pedra branca da linguagem,

o sangue derramado nas campânulas da aurora.

Palavra do anjo esquecido nas ruas de Pérgamo.

 

1993