domingo, 27 de fevereiro de 2022

Haikai do Viandante (423)

Harry Callahan, Sunlight on Water, 1943

Se o Sol mergulha
incandescente nas águas,
a luz faz-se sombra.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Micronarrativa (58) Do exílio

Autor desconhecido, Women carrying water, Volendam Holland, 1920s 

Mais tarde, ao ver a fotografia, a criança, então já mulher madura, terá pensado como eram seguros os tempos em que nada parecia mudar. Aquelas mulheres, todas da sua família, faziam o que muitas outras antes delas também o fizeram, com os mesmos gestos, as mesmas palavras, as mesmas dores. Ela, porém, exilara-se desse mundo. Na sua nova pátria, nada é como outrora, nem aquilo que é se mantém por muito tempo. Depois, olhou longamente para a figura da mulher da frente e chorou.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Impressões 92. Luz na floresta

Leonard Missone, Sunlight in a forest, 1929

Os raios de sol  penetram no silêncio da floresta, invadem árvores e arbustos, tornam resplandecente o verde das folhas, abrem o coração do observador ao canto dos pássaros, à incerteza de quem já não sabe distinguir entre luz e sombra, entre a matéria viva e a luz fulgurante. 

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Câmara discreta (4)

Leonard Misonne, Old people, old houses, 1930s

As cicatrizes trouxe-as o tempo, brechas nas paredes das casas, telhas cansadas pelo passar das águas e dos anos, rasgões a anunciar os vidros gastos pelos olhares que deixaram passar. Naquela rua de outrora, habitam pessoas que já não vivem no agora. Inclinam-se em silêncio, enquanto cismam no passar das horas, nas sombras que deixam no empedrado do chão, na vida que a câmara não consegue prender no zimbório da eternidade.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Meditação Breve (175) Crepúsculo

Samuel H. Gottscho, Midtown Manhattan & Empire State building at Dusk, 1930s

A luz fulgurante que anima as grandes metrópoles, essa fantasia tecida pela técnica e que nos faz querer que a noite jamais chegará, não é outra coisa senão o sinal de um tempo crepuscular. Assinala a época em que, tomados por uma longa hesitação entre luz e trevas, os homens se preparam para entrar no grande império da noite.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

O sal do silêncio (74)

Otto Wunderlich, Sierra de Gredos (Tipos), España, 1920s
Há um silêncio que cai sobre os homens, envolvendo-os na sua teia, quebrando-se se o ruído rompe o círculo encantado de onde a sonoridade foi excluída. Depois, há um outro silêncio, aquele que, com o passar passar dos anos, se faz por dentro de cada um, até que as palavras são suspensas e tudo seja dito com a mudez estampada no salitre do rosto.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A Sarça Ardente - 100

Edvard Munch, Alameda con copos de nieve, 1906
Sobre a alameda
da memória
arde um fogo
feito de silêncio,
a sarça trazida
do deserto
para incendiar
as águas do rio,
as pedras da montanha,
o coração preso
às neves de Inverno.

Fevereiro de 2022

 

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Impressões 91. Realidade

Harry Callahan, Eleanor, Chicago, 1952

A massa extravagante da realidade só a muito custo parece estar dotado de contornos, essas finas fronteiras que têm o condão de separar os seres uns dos outros, como se entre eles existisse um frio abismo. Depois, tudo se confunde, as coisas perdem as suas margens e contaminam-se, como se se abrissem umas às outras em busca da unidade originária de onde o tempo as retirou.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Haikai do Viandante (422)

Benvenuto Benvenuti, Tramonto pauroso, 1825-30

Sobre o arvoredo
o céu transborda de chamas.
Noites de pavor.



quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Câmara discreta (3)

Leonard Missone, By the Watermill, c. 1900

A melancolia de olhar para a outra margem, como se o corpo fosse habitado pelo mais terrível dos desejos, o de estar precisamente no lugar onde não se está. Então, o tempo suspende-se, coagula e a fluidez das águas torna-se pedra e gelo, a anunciação da eternidade. Nesse instante que a câmara surpreendeu, a vida elevou-se sobre si mesma e estendeu uma ponte que liga a margem do passado à margem do futuro.

 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Meditação Breve (174) O trabalho do tempo

Aaron Siskind, Rome 5, 1967

A pedra erodida é uma marca da passagem do tempo. É também uma lição dos efeitos deste. Apagamento dos contornos, simplificação da figura no seu esboço, redução de cada coisa ao magma da pura indiferenciação. O tempo é o mais feroz agente igualitário. Apaga os vestígios de tudo o que se quer proeminente e transforma em poeira o que, por uns momentos, ganhou individualidade.