segunda-feira, 28 de junho de 2010

Poemas do viandante

111. NOITE

um jardim
no silêncio do mar
a noite aberta
pela raiz
algas e mãos
a face lívida
na súbita
ondulação

aí me perco
para te escutar

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Poemas do viandante

110. CÂNTICO

tudo reverbera
fecho os olhos
e vejo-te
no cântico
que ao declinar
o dia traz

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Poemas do viandante

109. TARDE

a tarde sobre
a ravina
pássaros de papel
e sangue
a buganvília
na sombra
da qual
espero

terça-feira, 22 de junho de 2010

Sobre a morte de José Saramago

Nestes dias, aqueles que a morte de José Saramago ocupou, muitas coisas sem nexo foram ditas. Sublinho, no entanto, aquela que assumiu o cúmulo da irrelevância. Disse L'Osservatore Romano que Saramago "foi um homem e um intelectual de nenhuma admissão metafísica, ancorado até ao fim numa confiança arbitrária no materialismo histórico, aliás marxismo." Como é possível dizer uma coisa destas? Em primeiro lugar, porque o materialismo dialéctico e o marxismo não passam de metafísica, de uma dada metafísica materialista, mas ainda e só metafísica. Em segundo lugar e mais importante, porque, tendo em conta aquilo que li de Saramago, só a metafísica o parecia interessar.

Mesmo a blasfémia, se é que Saramago era um autor blasfemo, é um louvor a Deus. Mas a recorrência da temática religiosa nas suas obras, mesmo que sejam pequenas notas de raspão, é um confronto de uma subjectividade com o terrível silêncio de Deus. Em Saramago havia uma pulsão de neo-converso ao contrário. Era como se o escritor fosse uma espécie de Paulo de Tarso, mas aspirasse ser um João Evangelista ou, de outra forma, um daqueles monges do deserto que fazem a história inicial da mística cristã. Perante a impossibilidade, ele assumia-se então como um S. Paulo ainda quando tomava o nome de Saulo.

A obra e a personalidade do escritor são o exemplo de uma luta metafísica, uma luta trágica, e deveriam merecer uma atenção redobrada, em vez da lamentável nota de L'Osservatore Romano. Saramago é um exemplo de como a crença na subjectividade própria impede de escutar Aquele que fala no silêncio e na pobreza do deserto. A ânsia de encontrar Deus, de o fazer manifestar-se, e a ânsia de salvar o ego tolheram em Saramago o caminho, transformaram-no numa luta titânica desvairada e fecharam-no dentro de si e no mundo, sempre um pequeno mundo, por amplo que seja. Há aqui mais do que um simples negador, há aqui um exemplo do destino do Ocidente. E não apenas daqueles que não conseguem silenciar-se, não conseguem silenciar a ânsia e o desejo que povoa o ego empírico, para que possam escutar Quem fala, mas também um exemplo de como aqueles que detêm o depósito da palavra já não a percebem ou não conseguem dá-la a perceber.

Poemas do viandante

108. INCLINAÇÃO

tudo se tornou
mais raso
a água
o fogo
as planícies
pelo sul

inclino a cabeça
e oiço uma voz
branca
no verde
da colina
de onde espreitas

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Poemas do viandante

107. SOMBRA

emudecido
as mãos cobertas
de pústulas
uma noite
de palavras
e sombra

rasto na areia
a saudade
na janela
de onde avisto
o silêncio
que espera