30. SEGREDO
um sussurro
sopra
entre mãos
e um segredo
desprende-se
da terra
em aluvião
terça-feira, 30 de junho de 2009
segunda-feira, 29 de junho de 2009
Luz e trevas
"A luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam." Como poderemos compreender a luz se nos habituámos desde o nascimento às trevas? E todos os passos, por luminosos que pareçam, são ainda um adentrar nas trevas. Mas as trevas não são apenas a ausência de luz, elas são o lugar onde a luz brilha e ao brilhar tão intensamente torna em trevas aquilo onde brilha. Adentrar nas trevas é ainda um caminho para a luz, porventura o único caminho que resta.
sexta-feira, 26 de junho de 2009
Poemas do Viandante (29)
29. A ROSA
deixo a palavra
pedra abandonada
ao vento
e canto-te
antes de a rosa
abrir
desfolhada
deixo a palavra
pedra abandonada
ao vento
e canto-te
antes de a rosa
abrir
desfolhada
sábado, 20 de junho de 2009
Poemas do Viandante (28)
28. SE
se o anjo
fala na noite
e nas trevas
olha o coração
como respirar
o frio do inverno
o terror
duma manhã
de verão
se o anjo
fala na noite
e nas trevas
olha o coração
como respirar
o frio do inverno
o terror
duma manhã
de verão
sexta-feira, 19 de junho de 2009
Criar e ser criado
"O poeta entra em si mesmo para criar. O contemplativo entre em Deus para ser criado." (Th. Merton) Se o caminho para entrar em Deus for o de entrar em si mesmo, então o acto de criar e o de ser criado confundem-se e o artista criador não é mais do que criação, imagem e semelhança daquele que o cria. E aqui podemos surpreender um sentido novo da mimésis grega. A mimésis, a imitação, não residiria essencialmente na criação de uma cópia da realidade natural, mas na imitação do gesto criador. O artista cria à imagem e semelhança do Criador, desse Criador que continuamente me cria. Em arte, nomeadamente em poesia, a mimésis do real empírico é absolutamente secundária relativamente a esse mimésis mais originária, a da identificação do artista com o Deus criador. Sendo assim, todo o acto artístico tem uma dimensão litúrgica na qual o artista imita ritualmente o gesto criador de Deus, O celebra e O cultua. Por isso, não há arte profana. Toda a verdadeira arte pertence ao domínio do sagrado, tenha ou não o artista consciência disso.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
Poemas do Viandante (27)
27. VELHA CANÇÃO
sem medida
quem tudo mede
uma vara
uma sombra
a palavra de gelo
na velha canção
oiço-a crepitar
sem medida
quem tudo mede
uma vara
uma sombra
a palavra de gelo
na velha canção
oiço-a crepitar
terça-feira, 16 de junho de 2009
Poemas do Viandante (26)
26. OIÇO-OS CANTAR
pássaros
no colmo
do telhado
oiço-os cantar
no sono leve
e frio
se adormecem
ao luar
pássaros
no colmo
do telhado
oiço-os cantar
no sono leve
e frio
se adormecem
ao luar
A maior ilusão
A maior ilusão é aquela que reside na confiança de que as coisas são como nós julgamos que são. De um momento para outro, tudo rui e a realidade mostra-se totalmente outra, surpreendente. Como poderemos nós guiar-nos pela ânsia da estabilidade, se mesmo o que temos por mais certo não é senão incerto. Abrir o espírito para a incerteza do mundo e deixar vir essa incerteza no seu ser incerto. Nada esperar, nada desejar, mas aceitar aquilo que for enviado.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
O caminho do amor
Já longe na jornada, o viandante pergunta-se: qual é a tua via? Busca dentro de si, busca perplexo no silêncio da noite, busca o que ele bem sabe desde há muito. A sua via não é do encontro amoroso com o divino. Há no caminho do amor algo que o deixa sempre frio, como se o excesso de sentimento ou de afecto fosse um obstáculo ao próprio caminhar. Vários são os caminhos e cada um só pode percorrer o seu próprio, aquele a que foi chamado.
domingo, 14 de junho de 2009
Poemas do Viandante (25)
25. VENTO
sopra o vento
na ramagem
do quintal
um corpo
um anjo
a luz
que se apaga
se passa o umbral
sopra o vento
na ramagem
do quintal
um corpo
um anjo
a luz
que se apaga
se passa o umbral
sábado, 13 de junho de 2009
Viagem
Ser viandante é apenas estar em viagem, mas a viagem é infinita, não tem princípio nem fim. Um dia, surpreendemo-nos na viagem, mas ainda não percebemos que estamos a viajar, pois não sabemos de onde viemos nem para onde vamos. Temos a ilusória esperança de encontrar uma meta para onde caminhar. Mas enquanto caminhamos e caminhamos, enquanto nos vamos perdendo no caminho e, filhos pródigos, retornamos ao viajar, começamos a pensar que nada há para além do viajar. Talvez haja ainda, nesse momento, a necessidade de uma trégua, a busca de uma finalidade, a ânsia de um fim. Isso, porém, é a voz da nostalgia dos verdes anos. Com o tempo descobre-se que é uma doença benigna, com o passar dos dias e dos anos acabará por passar. Por fim, revela-se no viajar a essência do viandante. Nessa luz, ele sabe que não se dirige para lado nenhum, pois não há qualquer lado onde ir, descobre que ir ou permanecer são exactamente a mesma coisa, são ainda e só a viagem.
sexta-feira, 12 de junho de 2009
Poemas do Viandante (24)
24. FOGO
fogo
penumbra
desta mão
nome
tão veloz
dói
se toca
a ausência
foge de nós
fogo
penumbra
desta mão
nome
tão veloz
dói
se toca
a ausência
foge de nós
quinta-feira, 11 de junho de 2009
O Corpo de Deus
Dia de Corpo de Deus, dia de afirmação da presença substancial do corpo e do sangue de Cristo na hóstia consagrada. Mas o que de mais fundo agora podemos pressentir, para lá do mistério eucarístico, é a sagração do corpo. Estranha visão esta. Não será o cristianismo a religião adversa do corpo e da carne? Mas como pensar então no corpo de Deus? Como estabelecer a conexão entre Deus e corpo? O corpo de Cristo simboliza o carácter divino do próprio corpo. E o corpo não é apenas corporalidade reduzida à mera extensão, reduzida a uma geometria tri-dimensional. O corpo e o sangue enviam-nos para a ideia de carne, de corpo vivo, mas também aqui não estamos perante uma dimensão puramente biológica. O corpo é mais do que um elemento físico e biológico, o corpo humano, com tudo o que contém, é um mistério e um caminho que leva o homem para além daquilo que é meramente humano, ou, dito de outra forma, sendo humano é, por isso mesmo, sobre-humano.
quarta-feira, 10 de junho de 2009
Poemas do Viandante (23)
23. imponderável
imponderável
imponderável
sopro do
vento
um rasto de
água
na porta da casa
na porta da casa
um grito uma
mão
a voz do tormento
segunda-feira, 8 de junho de 2009
Poemas do Viandante (22)
22. venha o que vier
venha o que vier
e o pobre o coração
treme corre desagua
nas areias do mar
treme corre desagua
nas areias do mar
na luz do dia
na sombra da lua
virá o que vier
sábado, 6 de junho de 2009
Meditação e arte
Diz Merton: "Aprendamos a meditar no papel. O desenho e a escrita são formas de meditação." Como compreender a palavra do cisterciense? Talvez percebendo que na meditação como na arte não é o sujeito que é o centro e o autor, mas que qualquer coisa se revela nesse seu meditar ou criar, e aquilo que se revela aí é o verdadeiro autor. O sujeito não passará então de um mediador onde aquele ou aquilo que se deve revelar se revelará. Por isso, a meditação e a arte exigem o desapego e o apagamento do sujeito.
quinta-feira, 4 de junho de 2009
Poemas do Viandante (21)
21. a sombra
a sombra
desvanece-se
a sombra
desvanece-se
uma casa
uma promessa
uma promessa
a mão que se
estende
mal amanhece
A morada do cansaço
Escrevo agora da morada do cansaço. É uma casa turva de onde o olhar sai com dificuldade, mas é nela que nasce uma súbita volúpia, como se a quebra física fosse uma porta para uma estranha dimensão metafísica. Exausto o viandante quer descansar, mas é aí que vem a hora de retomar caminho. Caminhemos por entre a astenia e escutemos o que se canta nas novas paisagens que, abertas na morada do cansaço, chegam.
segunda-feira, 1 de junho de 2009
Poemas do Viandante (20)
20. corações
corações
barcos irrevogáveis
abrem no mar
esteiras de cristal
símbolos segredos
um leve sinal
corações
barcos irrevogáveis
abrem no mar
esteiras de cristal
símbolos segredos
um leve sinal
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