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sábado, 22 de novembro de 2025

Arqueologias do espírito 36

Benvenuto Benvenuti, Cimiteretto, 1907

Houve um instante em que, no espírito do homem, se associou a disposição do cipreste e o impulso da alma para se elevar, na hora em que esta se desprendia do império da gravidade a que o corpo a submetia. Como um sinal de trânsito, a árvore, na sua beleza discreta, aponta para os céus, indicando o caminho que o espírito, agora entregue a si mesmo, tem de percorrer. O lugar dos mortos tornou-se assim, por efeito de uma imaginação fundada na analogia, a casa silenciosa onde os ciprestes se recolhem em reverência aos homens.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Arqueologias do espírito 35

Eduardo Nery, Escada Mística, 1972 (Gulbenkian)
A primeira vez que a um homem terá ocorrido construir uma escada, ainda que de degraus imperfeitos, não foi, por certo, o momento inicial em que desejou elevar-se acima da terra e vencer a gravidade. O espírito, quando os olhos se erguiam para os céus, há muito desejava elevar-se. A escada foi uma resposta a esse desejo de contrariar a natureza, mas também o símbolo futuro da possibilidade de elevar-se. Elevar o corpo e libertá-lo do constrangimento da matéria. Elevar o espírito para além das preocupações quotidianas. Mais do que um dispositivo arcaico, a escada é a realização de um desejo vindo do fundo do tempo.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Arqueologias do espírito 34

Dante Gabriel Rossetti, Ecce Ancilla Domini, 1850
A descoberta do espírito é, ao mesmo tempo, a descoberta de uma diferença radical entre aquele que é espírito num corpo e o que é puro espírito. A este, uma tradição antiquíssima deu-lhe o nome de senhor; aquele, a mesma tradição colocou-o no lugar de escravo. Não porque o senhor exija a escravatura, mas porque o corpo, com a sua subjugação ao império da necessidade, inclina o espírito encarnado à servidão~: não do senhor, mas de si mesmo, dos seus desejos, dos limites que lhe prescrevem a finitude. Quando o espírito finito se reconhece na sua finitude e se oferece como servo do senhor, nesse momento, começa a sua emancipação e o caminho da liberdade.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Arqueologias do espírito 33

Marc Chagall, O Mito de Orfeu, 1977

Sempre que escavamos, como bons arqueólogos, o solo do espírito, encontramos, camada a camada, o mito. Foi através dele que espírito entrou no mundo e ainda, nos dias de hoje, nos piores momentos da existência do homem, é a ele que recorre para espraiar uma sombra benévola - por vezes, perigosa e malévola - sobre a existência. Essas histórias bizarras - tantas vezes, absurdas - trazem, envoltas em sombras, solidez à vida e promessas para a morte. Mesmo quando o espírito se eleva às regiões mais puras do pensamento, é na terra do mito que as suas raízes penetram, para o alimentar e o reter ligado à vida.

domingo, 27 de abril de 2025

Arqueologias do espírito 32

Herbert Boeckl, Der Wörthersee, 1928

A vibração da cor e a sua multiplicidade e variabilidade sem fim são um indício do nascimento do espírito. A exuberância com que a paisagem se apresenta é o sinal de uma gravidez prestes a chegar ao fim. Então, nasce, na consciência do homem, um murmúrio, como se um vento suave lhe soprasse a face e o chamasse para dentro de si mesmo. Não, aquelas cores não são um fim, apenas a mediação entre aquele que olha a voz que o chama.

segunda-feira, 17 de março de 2025

Arqueologias do espírito 31

Cruzeiro Seixas, O Quarto do Gatuno, 1972 (Gulbenkian)
O espírito nasce de um lento movimento de deserção. Movido pela coragem, abandona uma a uma as coisas onde repousou e tomou como disfarce, a máscara de um baile numa noite de Carnaval. Consciente do turbilhão, exausto pelo rodopiar das coisas no tempo, aparta-se e procura refúgio na solidão. Descobre-se, então, como aquele que é, a única realidade vivaz, o centro silencioso de onde tudo emana, mesmo as máscaras que usa na peregrinação pelos universos que dele nasceram.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Arqueologias do espírito 30

Carlo Carra, Sera sul Lago, 1924 

Sobre as águas adormecidas do lago, o espírito, numa arqueologia sempre inacabada, rememora-se. Procura, na noite dos tempos, as faces com que se manifestou na terra, o primeiro momento em que um coração humano suspeitou da sua presença, o grito expectante que ouviu quando os homens começaram a procurar no invisível a sua face. Ofereceu-se em sonhos, deixou que a sua natureza etérea e imaterial ganhasse contornos e, por momentos, pudesse ser pensada como um ser dotado de solidez. Logo se metamorfoseava e cobria o mundo de perplexidade, pois o seu ser não tem corpo, nem cor, nem som. É apenas um rumor que sopra como uma brisa ou assalta como um vendaval.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Arqueologias do espírito 29

Ferdinand Olivier, Procession of Pilgrims in the Forest, 1814 

Talvez o espírito tenha descido sobre os homens na sombra da floresta. Ali, aquele animal desprotegido encontrava abrigo e, por instantes, podia esquecer o medo terrível que o envolvia. Sob os ramos do arvoredo, escutava a passagem do vento pelas folhas e descobria os raios luminosos que fendiam a copa das árvores para reverberarem na erva húmida. Por vezes, os homens encontravam-se na clareira e deixavam que a luz os banhasse, mas logo o perigo de estarem expostos os fazia voltar para a sombra, onde se sentavam e narravam longamente as aventuras que tinham vivido ou que inventavam naquela hora. Ao contar, ao inventar, uma propriedade nova nascia dentro de cada um e arrancava-o à pura animalidade de onde tinha vindo. Era o espírito que descia sobre ele e o tornava num outro ser.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Arqueologias do espírito 28

Benvenuto Benvenuti, Cipresse e colombe, 1914

Terá sido decisivo o encontro que colocou os seres humanos perante os ciprestes. Mais que outras árvores, em que a linha que une a terra ao céu se dispersa em ramagens perdidas no caminho, nos ciprestes tudo se conjuga para que o olhar não se afaste do alvo que deve desejar. Não admira que, em certos lugares, o cipreste se tenha tornado árvore de cemitério. Não porque haja nela alguma coisa de fúnebre, mas porque simboliza esse velho desejo humano de elevação muito para lá do território que o corpo, por lhe pertencer, não poderá deixar. Ciprestes são símbolos que indicam o caminho. 

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Arqueologias do espírito 27

Caspar David Friedrich, Puerto de Noche, 1818
Mais que o dia, a noite terá descido até ao fundo insondável do inconsciente humano. O terror do que se tornou desconhecido, a presença da morte mesmo ao lado, a noite não era o lugar do sossego onde o corpo se desligava da vigília para se entregar ao prazer do sonho. Quando a luz acabava, vinha a angústia trazida pela incerteza que invadira o mundo, substituindo a exaltação derramada pelo Sol. Foi assim que a pura noite se tornou em trevas e, no fundo de cada um, continua a projectar o terrível com que durante milénios se revestiu, lembrando-nos que a claridade é sempre efémera. 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Arqueologias do espírito 26

Émile-René Ménard, La Nube, 1896

Pelas nuvens chega-se a uma das mais arcaicas experiências de ocultação e de desocultação. Escondem o Sol e roubam aos homens a luz que os ilumina e permite a prevenção dos perigos. Ao serem levadas pelo vento, o retorno da luz torna-se uma epifania. Se escurecem e se combatem, os olhos ficam presos ao grande espectáculo, mas os corações temem a tempestade, a transformação em caos de uma ordem construída com dor e esforço. Se delas cai uma chuva plácida, a esperança desenha-se nos rostos, e das bocas solta-se uma acção de graças, como se ainda houvesse lugar para um amanhã.

domingo, 27 de junho de 2021

Arqueologias do espírito 25

Alfons Mucha, El Abismo, 1897-1899
Antes de a queda se ter constituído como um topos, topos negativo e ameaçador, da vida do espírito, ter-se-á insinuado um outro e poderoso arquétipo, o do abismo. A experiência dos precipícios, dos buracos de onde não se regressa, dos despenhadeiros e das profundidades insondáveis, tudo isso se concentrou na figura do abismo. Do abismo físico transbordou para o abismo da alma e do espírito e tornou-se, como todos os símbolos, ambivalente. Repele o homem com o medo da queda e atrai ao esconder o insondável. Toda a queda no abismo é marcada pelo temor e pelo desejo de ali cair.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Arqueologias do espírito 24

Francisco Metrass, Pastores Guardando o Rebanho, Sec. XIX

Não será das mais arcaicas imagens, aquela que junta numa unidade o pastor e o seu rebanho. A pastorícia, na economia do desenvolvimento da espécie humana, é um acontecimento recente, demasiado recente. No entanto, a sua força é de tal ordem que se tornou metáfora e símbolo com que os homens pensam a relação de uma comunidade com os que têm a função de a dirigir e conduzir salva ao aprisco. No rebanho, simboliza-se a unidade do conjunto dos homens e também a sua necessidade de possuir um condutor. O pastor cedo emergiu como o símbolo daquele que tem por dever conduzir os homens. O bom pastor.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Arqueologias do espírito 23

Yasuo Kuniyoshi, Refugees, 1939

Uma das experiências espirituais mais arcaicas será a do refúgio. Como muitas outras, também esta começou na concretude do corpo. O perigo que sobre ele descia fez com que a humanidade aprendesse a refugiar-se, a circunscrever-se num espaço de tranquilidade. A repetição da experiência levou-a não apenas a procurar o lar num locus amoenus, onde o espírito se poderia desenvolver, mas ainda a fazer da vida espiritual o autêntico refúgio. Todo aquele que a ela se entrega é um refugiado. Foge de um locus horrendus e procura a vida autêntica nessa abertura do espírito para além do mundo. 

quarta-feira, 17 de março de 2021

Arqueologias do espírito 22

Kerekes Gábor, Apple, 1991
Dádiva espontânea da natureza, os frutos ter-se-ão inscrito tão fundo no espírito dos homens, que estes não hesitaram em fazer de um deles o símbolo da sua expulsão do paraíso e da queda na vida mundana. De certa maneira, a maçã arrastou os homens na sua viagem para terra. Retirou-os dessa existência fora do espaço e do tempo e fê-los aterrar num corpo sujeito à duração. Da contemplação da viagem da maçã desde os ramos incessíveis até à terra dura, o espírito descobriu um modo para explicar porque se encontro presa na cela do corpo e na caverna do mundo.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Arqueologias do espírito 21

Ferdinand Hodler, Los Alpes de Vaud vistos desde los Rochers-de-Naye, 1917

Nunca saberemos o estremecimento que percorreu o corpo do primeiro homem que viu as montanhas nascidas da terra elevarem-se e fundirem-se nos céus. Essa ignorância, porém, é compensada pelas reverberações sem fim desse acontecimento. Como uma pedra que cai nas águas imóveis de um lago e provoca uma ondulação que parece não acabar, também esse primeiro avistamento não deixou de criar ondas que se vão alargando, envolvendo cada novo tempo e fazendo com que os homens continuem a estremecer ao verem as mais sagradas núpcias, as que unem Céu e Terra.

terça-feira, 2 de março de 2021

Arqueologias do espírito 20

Lee Miller, The veiled Eiffel Tower, Winter 1944-45
Neblina, névoa, nevoeiro, nebuloso, nuvem. A sequência de aliterações permite descer ao fundo da gruta. Ali a consciência guarda os arquétipos com que abre o espaço para que o significado assombroso das coisas se manifeste. Muito mais funda do que a consciência clara está a zona da penumbra. Se visitada em sonhos ou numa vigília absorta, descobre-se o caminho para o mistério. Então, os passos afundam-se na neve fria e o viajante vai afastando as mil cortinas que estão no fundo de si. A neblina, a névoa, o nevoeiro, o nebuloso, a nuvem e descobre-se na clareira aberta do enigma.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Arqueologias do espírito 19

Eugène Atget, Eclipse, 1911

Antes de ser a ocultação de um astro, o eclipse foi sinal enviado pelos astros. Abriu no coração dos homens o caminho que leva das coisas manifestas às ocultas. Se algo que se conhece, ainda que seja por um conhecimento distante, embora tecido na convivência dos dias, pode esconder-se, então é provável que muitas sejam as coisas encobertas aos olhos humanos. Uma demanda sem fim começou então. Não em busca do que se vê, mas do invisível, daquilo que, continuamente, é objecto e sujeito de um eterno eclipse.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Arqueologias do espírito 18

Johann Anton Castell, Lago di Como, 1841
Foi fora de si que o homem descobriu a serenidade. Envolvido no turbilhão da natureza, temeroso dos perigos que o assaltavam, não havia no coração humano um lugar para a plácida tranquilidade. Tudo nele era fogo e inquietação. Encontrou a serenidade no dia em que, tomado pelo eterno desassossego, estancou o olhar nas águas paradas do grande lago. Nelas reflectia-se o céu, e ele abriu os olhos de espanto. Esqueceu o perigo e desejou que todo o seu ser fosse um enorme e sereno lago, onde nada encapelasse as águas.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 17

Gioacchino La Pira, Veduta di Capri al chiaro di luna

As águas retêm o murmúrio e deixam que o grande manto do silêncio cubra o mundo. Então, a Lua desce do seu pedestal etéreo e aproxima-se da Terra. A sua luz funde-se no silêncio. Quem, escondido e incógnito, observa o mistério não sabe se está perante um silêncio luminoso ou uma luz silenciosa, apenas abre o coração para que seja tocado pelo que acontece e os sinais desçam no seu ser, o revolvam e inscrevam nele o poder de caminhar sobre as águas e de discernir aquilo que é daquilo que não é e nunca será.