Mostrar mensagens com a etiqueta A sombra da água. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta A sombra da água. Mostrar todas as mensagens

domingo, 7 de abril de 2024

A sombra da água (29)

W. Eugene Smith, Iwo Jima, 1945

Também pela água chega, como uma milícia, a sombra da morte. Traz com ela uma lua de coral para alumiar os que entregam a alma à floresta do silêncio e deixam o corpo abandonado sobre as areias, onde poisarão bandos de gaivotas e anjos confundidos pelo calor da batalha.

terça-feira, 26 de março de 2024

A sombra da água (28)

Arthur R. Dresser, Die Klippen von Corbière im Sturm, 1891

Também da água se deve dizer que possui, no seu íntimo, a virtude da audácia. Não é fúria ou raiva, tão pouco um exercício de cólera que move as águas tempestuosas, mas a pura coragem de enfrentar a dureza das rochas, o destemor de querer abrir um caminho naquele lugar onde caminho algum parece possível.

domingo, 3 de março de 2024

A sombra da água (27)

Fernando Calhau, sem título #441, 1980 (Gulbenkian)

A água é uma sombra projectada sobre a superfície da Terra. Avança fremente pelos canais desenhados por um arquitecto preso ao flúor da alucinação, rasga as velhas rochas para descobrir um caminho nunca pensado, cobre os abismos para que os mortais possam descansar os seus olhos sem temer a dor da queda.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

A sombra da água (26)

Piotr Mondrian, Farm with Trees and Water, 1906

É uma água sem o sal da viagem, sem a sombra das noites. Irrompe pura na Terra ou cai solícita dos céus. Nela, não há navios, nem os pescadores procuram a harmonia dos peixes. De noite, murmura canções tecidas com o fio do silêncio; de dia, deixa que da sua boca se evapore um hálito de rosas.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A sombra da água (25)

Ricardo da Cruz-Filipe, Mar n.º 1, 1983 (Gulbenkian)

Sento-me a ver o mar. Oiço o cântico das ondas, prescruto-lhes o ritmo, escando, no silêncio da praia, cada verso que traz e leva, como uma sombra de seda, a água salgada. Em transe, observo o oceano desdobrando-se, tomado pela inquietação que se abre no ventre da manhã rasgada pelos dardos do Sol.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

A sombra da água (24)

François Boucher, The Waterfalls of Tivoli, 1730

As águas caem como sombras inquietas sobre a terra. Tomadas pela ânsia, precipitam-se do alto da montanha. Anima-as um desejo de fogo, um chamamento vindo de longe. Querem ser rio para deslizar pelo leito escavado na rocha e encontrar na imensidão secreta do oceano o lar de onde partiram.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

A sombra da água (23)

Carl Rottmann, Santorini (Thira), c. 1843

Olha as águas e a luz fulminante cega-me, como se no fundo germinassem monstros luminosos ou fantasmas iridescentes, como se um enigma subisse à superfície e se entregasse a uma incansável cintilação. Fecho, então, os olhos e toda a luz aquática reflui para o centro sombrio do meu corpo. 

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

A sombra da água (22)

Karl Schmidt-Rottluff, Lua sobre a costa, 1956

Uma solidão construída com a minúcia das coisas vagarosas abre-se nas águas que se acolhem na fantasia da costa. Ilumina-a uma lua feita de promessas vagas e juras eternas. Então, a água move-se e rompe a linha do horizonte, onde o dia e a noite se tocam, e o céu e a terra se confundem.

sábado, 14 de outubro de 2023

A sombra da água (21)

Paul Signac, Venice, Grand Canal, 1904

Os canais abrem-se lentamente para que a água deslize, fecunde a terra e proteja a cidade dos grandes calores e do desvario da severidade dos tempos. Os barcos são cavalos de silêncio. Passam como se fossem chamados de um outro mundo, de uma outra terra feita de sombras, sal e silêncio.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A sombra da água (20)

Andreas Achenbach, Storm at Sea off the Norwegian Coast, 1837

Espuma de tempestade, ondas de revolta, o império da água mostra as suas garras, impenitente e impiedoso. Ensurdecido com o seu grito, não escuta o ruir dos rochedos nem as orações dos homens. Vai e vem, como se toda a paz fosse um perjúrio, como se toda a tranquilidade, uma traição.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

A sombra da água (19)

Piet Mondrian, Farm with trees and water, 1906

Água de ambrósia envolta no âmbar do acaso. Assim, arrastado pelo ritmos da assonância, pensou o poeta a essência obscura da vida, pois nesta tudo é um fluir ora delicado, ora tempestuoso, como se fosse a sombra de um cedro no Verão ou o cio primaveril de um animal divino.

sábado, 19 de agosto de 2023

A sombra da água (18)

Jacob van Ruisdael, Wooded Landscape with Waterfall and Approaching Storm, c. 1655 [Städel Museum, Frankfurt am Main]

Toda a água contém em si, como uma sombra nascida no princípio do tempo, uma inclinação para a tempestade. Umas vezes, o tempestuoso reside na própria água. Noutras, são elas que o chamam, para que, negro e ameaçador, traga cerzida na desordem a anunciação de uma nova ordem.
 

domingo, 30 de julho de 2023

A sombra da água (17)

Thomas Joshua Cooper, Cabo de São Vicente (meia-noite), 1994

Produzidas na fábrica do silêncio, as águas da meia-noite vestem-se como viúvas a quem o mar roubou os maridos. Então, murmuram canções desconhecidas que o vento, tocado pela maresia, transporta para terra, como se anunciasse a vinda de um mundo novo nascido do cristal salgado dos oceanos.

domingo, 16 de julho de 2023

A sombra da água (16)

Manuel Cargaleiro, Flores na água, 1960
Falemos de processos, desses mistérios em que uma coisa se transforma numa outra. Ouve-se o borbulhar da água e logo, sobre ela, se vê um manto de sombras que protegem o rodopiar em que, lentamente, as gotas se juntam e se tornam nas mais fulgurantes flores. São rosas, tulipas, orquídeas, malmequeres silvestres que se abrem na humidade que as trouxe à vida.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A sombra da água (15)

Charles Job, Evening Calm, 1905

As águas chegam a terra e abrem-se numa herança inesperada, tocam-na com os seus dedos feitos de um lume tão lento como os dias da infância, acariciam-na com mãos de seda, rasgando-lhe sulcos por onde desliza a sombra das horas de melancolia.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

A sombra da água (14)

Henri Edmond Delacroix Cross, La Dogana, 1903

As águas são propícias a grandes amores e a terríveis crueldades. Existem como uma sombra entre a solidez da terra e a imponderabilidade do ar. Agitam-se, se o vento as toca ou o oceano cintila ao longe. Adormecem, se um sonho as chama para lhes contar os segredos que nelas se escondem.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

A sombra da água (13)

Amedeo Modigliani, Sun Reflected on Water, 1905

O ardor da água, essa pele porosa e lustral onde o fogo encontra a sua imagem, cintila perante a ameaça da sombra ou dos dias negros, de onde a luz foi retirada, reverbera contra a escuridão, alumia-se na inocência de tudo aquilo que passa e perde ao passar a mácula original do movimento.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

A sombra da água (12)

João Queiroz, sem título, 1999 (aqui)

Nenhuma atenção ou perspicácia permite distinguir entre água e sombra, unidas pela fluidez que as traz à existência e as dota das mais puras propriedades daquilo que é efémero. Só uma sabedoria infusa teria o poder de suspeitar a delicada fronteira onde a água se dissolve na sua sombra, onde a sombra se liquefaz para correr para o mar.

sexta-feira, 31 de março de 2023

A sombra da água (11)

Imagem obtida com IA da CANVA

Uma sombra secreta habita no interior das águas. Penumbra revoltosa a dançar sob o império do vento. Se a luz a ilumina, a rebelião multiplica-se em imagens sem fim, onde o branco se desdobra em mil matizes de azul e verde. Se a luz se esconde, então só as trevas se acolhem no rugir ondeado das águas.

quarta-feira, 15 de março de 2023

A sombra da água (10)

Imagem obtida com IA da CANVA

Antiquíssimos rios rasgaram a terra. Na infância silvestre de todos os começos, as águas selvagens derrubaram obstáculos, aplanaram leitos, esculpiram com cinzel de diamante as margens. Então o arvoredo cresceu e as sombras, se eram dias de sol, mergulharam na tepidez da corrente. Agora, passada a idade madura, tornaram-se planícies cintilantes, onde os olhos mergulham para, na contemplação do fluir do tempo, encontrarem o repouso de cada dia.