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sexta-feira, 4 de abril de 2025

A memória do ar (39)

Charles Lapicque, Lagune Bretonne, 1959
Não há dedos que se cravem no ar, nem mãos que nele peguem e o transportem para outro lado. Fica onde quer, move-se invisível, mas nada nele é errático. Acidentais, são os nossos pensamentos sobre ele, não percebendo que o ir e vir, ora cobrindo a lagoa, ora procurando a floresta, é a sua forma de dançar. E dançar é a imobilidade daqueles cuja natureza é mover-se.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

A memória do ar (38)

Frederick Boissonas, Dans la Montagne, 1905

É da montanha que chega mais viva a memória do ar, a sua tessitura delicada, suspensa do frio que se eleva dos cumes nevados e toca os céus, antes de se misturar nos ventos e varrer o mundo, como se cuidasse de uma galáxia perdida no turbilhão dos universos, que nascem e morrem, enquanto na Terra o vento sopra onde quer.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

A memória do ar (37)

Fernando Calhau, sem título #384, 1980

Estranhas estruturas, nascidas no centro da Terra, irrompem no céu, fendem a muralha de nuvens e entregam-se ao sopro do vento, acumulando memórias do ar, recordações que serão sonhadas ora como novas catedrais onde a vida do alto se manifesta, ora, nos pesadelos mais inquietantes, como velhos espaços concentracionários, onde o espírito se dobra e o coração sangra.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A memória do ar (36)

Pietro Sarto, Bassin Lemanique, 1981 (Gulbenkian)

Rarefeito, o ar é apenas uma memória longínqua, o lírio esquecido na encosta da montanha, a vagem da inocência desprendida da terra. Vindo do vazio, emerge em turbilhão, desconcerta a ordem do mundo, para logo se encerrar nas cavernas rasgadas nos cumes mais altos, onde adormece no silêncio das estrelas mortas.

domingo, 3 de novembro de 2024

A memória do ar (35)

António Areal, Opus n.º 59, 1963 (Gulbenkian)

O ar é como a pele de uma onça enlouquecida ou branco como um lençol estendido ao sol depois de lavado. Na cintilação dos opostos, o ar esconde o seu mistério, um enigma combinado com a resina das memórias e a seda cintilante que cobre os picos nevados das montanhas.

sábado, 28 de setembro de 2024

A memória do ar (34)

E. F. Withmore, Black Brook Notch, 1890

Nas montanhas, diz-se, o ar é mais puro. Talvez essa memória arcaica contenha ainda uma visão fulminante da verdade, a recordação de um tempo em que imensas florestas cobriam as encostas e, como um poderoso filtro, teciam a pureza do ar, daquele que o vento levaria para cobrir as planícies e as primeiras cidades, ainda incipientes na ideia que as fazia nascer.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

A memória do ar (33)

Pedro Chorão, sem título, 1977 (Gulbenkian)

O horizonte abre-se para que as memórias aéreas trazidas pelo vento possam espalhar-se pelo mundo, cobrindo de chuva a secura campos, envolvendo de verde a pedra das montanhas, estremecendo as ondas perdidas do mar, flutuando nas águas puras dos rios, cerzindo aldeias desavindas, derramando luz sobre a crueza incendiada das grandes cidades. 

terça-feira, 30 de julho de 2024

A memória do ar (32)

Antoine Chintreuil, The Rain Shower, c. 1868

A chuva é uma anamnese líquida do ar. Desce dos céus e toca a terra com a promessa dos sonhos, o desejo dos frutos e o querer secreto que anima as forças que mantém o universo no caminho esboçado no início dos tempos. A chuva é o ar liquefeito na memória da natureza.

terça-feira, 25 de junho de 2024

A memória do ar (31)

Yale Joel, People and vehicles moving about city shrouded in fog. Paris, 1948
A neblina é a memória viscosa do ar, o resto do seu corpo que, um dia, foi sólido, mais tarde tornou-se líquido, até chegar à indecisão a que se dá o estranho nome de estado gasoso. Por vezes, a verruma da melancolia invade os ares e, se o vento não interfere com a sua vontade inquieta, eles entregam-se ao húmido exercício da reminiscência.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

A memória do ar (30)

Nikolay Dubovskoy, Calm, 1890

Quando, cansado de deambular pela vastidão da Terra, o vento abandona os seus trabalhos, o ar permanece fiel ao desejo imemorial de imobilidade. Tudo se suspende, as águas do rio, a viagem das nuvens, a inquietação da noite, o pulsar da morte na fímbria do coração. 

sábado, 13 de abril de 2024

A memória do ar (29)

Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian)

Os campos que se abrem ao peso do ar florescem em Primaveras tardias, onde a memória do passado se constrói na lentidão com que o tempo, embalado pelas brisas matinais, se apodera da terra e perscruta aquilo que o ar esconde na opacidade da sua pura transparência.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

A memória do ar (28)

Inês Cannas, s/título (PIQ 6), 2000 (Gulbenkian

Atmosferas tomadas pela corrupção trazida pelo tempo cercam de verde e oblívio o vigor ancestral das montanhas. Onde havia o apaziguamento dos olhos humanos, há, agora, um mundo de perturbação envolto pelo ar sulfuroso dos dias de cólera e pela alucinação de quem pensa sobre o devir daquilo que é tocado pela mão dos homens.

sexta-feira, 22 de março de 2024

A memória do ar (27)

William Henry Jackson, Yucatan, 1889

O vento transporta a memória do ar, uma memória feita das coisas que toca, das árvores e dos arbustos, dos animais e das montanhas, dos rios e dos homens, dos artefactos e dos objectos naturais. É uma memória, se entregue ao próprio ar, imóvel. Permanece em pura quietude, até que o vento a transporta, cada vez mais longe, até que ela se dissolva ou se resguarde naqueles lugares de eterna quietação.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A memória do ar (26)

Maria Helena Vieira da Silva, L'air du vent, 1966 (Gulbenkian)

Voar, eis o vício do vento. Deslocar-se sobre os segredos dos homens, para os envolver no tremendo da ventania, no terrível do vendaval. Por vezes, o ar toma o nome de ciclone, corre apressado numa fúria desmedida, desloca-se em turbilhão, como se fosse habitado por uma raiva despida de razões, como se tivesse cansado de segredos e de homens.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A memória do ar (25)

Sérvulo Esmeraldo, Vibrations, 1963 (Gulbenkian)

O ar divide-se em camadas. Se o vento o anima, então cada uma começa a vibrar e ondas sonoras propagam-se sobre a Terra, umas violentas, outras dóceis, outras ainda saturadas de harmonia e equilíbrio. Os homens pensam então escutar a música das esferas celestes, mas é apenas uma canção da Terra vinda da púrpura ébria da atmosfera.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A memória do ar (24)

Cândido Costa Pinto, sem título, 1945 (Gulbenkian)

Para lá do cosmos imaginado, resta um mundo aéreo, fabricado por correntes de ar presas à luz de cada dia. É um mundo oculto na sua transparência, onde germina a disposição para o voo e o medo da queda. Existe, se deixarmos a imaginação cavalgar os prados da consciência. Desaparece, se sujeitamos os grandes espaço à gramática das pequenas coisas. 

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

A memória do ar (23)

Chas. A. Hellmuth, Broadway, N. Y., 1920-25 (Photoseed)
 
Pessoas caminham como estátuas enlouquecidas pela desmedida da cidade. Vão presas ao talento aéreo da sua loucura. São pássaros inflamados pelo desejo de voar, mas faltam-lhes as asas. Quando o ar irrompe no seu caminho, trazido pela força rolante do vento, elas olham os céus e apenas vêem sombras. Os seus corpos são de pedra e nem a vontade mais pura as consegue erguer  ao éter dos céus.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A memória do ar (22)

Carl Philipp Fohr, Cloud Study, c. 1816/17

A transumância das nuvens pinta de cinza e negro os grandes espaços onde o ar circula como uma sombra transparente e silenciosa. São um rebanho sem pastor nem cão de guarda. Vão, mas mas a memória lembrar-lhes-á o retorno, na hora aprazada, ao lugar de onde partiram para observarem, das aéreas alturas, vales e planícies ou as inquietantes montanhas.

sábado, 18 de novembro de 2023

A memória do ar (21)

Thomas Cole, A tornado, 1835

O invisível ar faz-se vento e vendaval, coluna que se ergue ciclónica e arrasta consigo o sinal da destruição e o símbolo do terror. Os animais escondem-se em abrigos frágeis, as árvores, porém, entregam o seu corpo à carícia devastadora do deus irado.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

A memória do ar (20)

Felix Vallotton, Landscape in the Jura Mountains near Romanel, 1900

O ar puro das montanhas repousa sobre o solo incerto. É uma promessa para o viandante perdido ou para os pastores cansados de guiar os rebanhos no Inverno. Na sua transparência, vêem-se os desejos que tocam o coração dos homens e os anseios que lhes fervilham no peito.