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quarta-feira, 22 de outubro de 2025

A memória do ar (42)

Dr. F. Stuhlmann, Runssóro, 1894
O vento, segundo João, o evangelista, sopra onde quer. Estas palavras são fundamentais para compreender o ar. Invisível, só de dá por ele nos efeitos da sua acção, nas consequências do seu querer. Suporta a vida e abre caminhos que se pensavam fechados. Tem um querer próprio e, dele, os homens apenas têm a memória. Mesmo presente, a relação humana com o ar é sempre pretérita.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

A memória do ar (42)

Dmitri Kessel, Venice, Italy, 1952

Há cidades que, como as plantas, surgem da terra, onde têm as suas raízes e de onde tiram a inspiração que as guia no seu destino. Outras, porém, mais raras, descem dos céus e poisam, ao de leve, cercadas de água, num solo que nunca deixa de lhes ser estranho. São cidades etéreas e o seu elemento é o ar. Dele se alimentam e aguardam a hora que, elevando-se , voltarão em silêncio ao céu.

domingo, 29 de junho de 2025

A memória do ar (41)

Toni Schneiders, Fykesunds bru im Hardanger Fjord, 1959

Sob o ar tinto pela escuridão, esconde-se a garganta devoradora do abismo. O silêncio do infinito paira como uma velha memória recalcada, que, de súbito, emerge na consciência e ali fica a dançar. Um vento frio empurra a massa de ar, enquanto o viajante perdido se abre ao perigo e à promessa de salvação.

sábado, 17 de maio de 2025

A memória do ar (40)

Todd Webb, Broadway at Wall Street, New York, 1959

O ar nocturno despe-se das memórias luminosas e paira sobre as suas presas como uma ave de rapina. Indiferentes ao perigo, homens e mulheres fendem o muro da escuridão, passam absortos sem olhar o próximo que com eles se cruza, entregando-se, não sem um secreto prazer, na tormentosa vertigem das trevas.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

A memória do ar (39)

Charles Lapicque, Lagune Bretonne, 1959
Não há dedos que se cravem no ar, nem mãos que nele peguem e o transportem para outro lado. Fica onde quer, move-se invisível, mas nada nele é errático. Acidentais, são os nossos pensamentos sobre ele, não percebendo que o ir e vir, ora cobrindo a lagoa, ora procurando a floresta, é a sua forma de dançar. E dançar é a imobilidade daqueles cuja natureza é mover-se.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

A memória do ar (38)

Frederick Boissonas, Dans la Montagne, 1905

É da montanha que chega mais viva a memória do ar, a sua tessitura delicada, suspensa do frio que se eleva dos cumes nevados e toca os céus, antes de se misturar nos ventos e varrer o mundo, como se cuidasse de uma galáxia perdida no turbilhão dos universos, que nascem e morrem, enquanto na Terra o vento sopra onde quer.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

A memória do ar (37)

Fernando Calhau, sem título #384, 1980

Estranhas estruturas, nascidas no centro da Terra, irrompem no céu, fendem a muralha de nuvens e entregam-se ao sopro do vento, acumulando memórias do ar, recordações que serão sonhadas ora como novas catedrais onde a vida do alto se manifesta, ora, nos pesadelos mais inquietantes, como velhos espaços concentracionários, onde o espírito se dobra e o coração sangra.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A memória do ar (36)

Pietro Sarto, Bassin Lemanique, 1981 (Gulbenkian)

Rarefeito, o ar é apenas uma memória longínqua, o lírio esquecido na encosta da montanha, a vagem da inocência desprendida da terra. Vindo do vazio, emerge em turbilhão, desconcerta a ordem do mundo, para logo se encerrar nas cavernas rasgadas nos cumes mais altos, onde adormece no silêncio das estrelas mortas.

domingo, 3 de novembro de 2024

A memória do ar (35)

António Areal, Opus n.º 59, 1963 (Gulbenkian)

O ar é como a pele de uma onça enlouquecida ou branco como um lençol estendido ao sol depois de lavado. Na cintilação dos opostos, o ar esconde o seu mistério, um enigma combinado com a resina das memórias e a seda cintilante que cobre os picos nevados das montanhas.

sábado, 28 de setembro de 2024

A memória do ar (34)

E. F. Withmore, Black Brook Notch, 1890

Nas montanhas, diz-se, o ar é mais puro. Talvez essa memória arcaica contenha ainda uma visão fulminante da verdade, a recordação de um tempo em que imensas florestas cobriam as encostas e, como um poderoso filtro, teciam a pureza do ar, daquele que o vento levaria para cobrir as planícies e as primeiras cidades, ainda incipientes na ideia que as fazia nascer.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

A memória do ar (33)

Pedro Chorão, sem título, 1977 (Gulbenkian)

O horizonte abre-se para que as memórias aéreas trazidas pelo vento possam espalhar-se pelo mundo, cobrindo de chuva a secura campos, envolvendo de verde a pedra das montanhas, estremecendo as ondas perdidas do mar, flutuando nas águas puras dos rios, cerzindo aldeias desavindas, derramando luz sobre a crueza incendiada das grandes cidades. 

terça-feira, 30 de julho de 2024

A memória do ar (32)

Antoine Chintreuil, The Rain Shower, c. 1868

A chuva é uma anamnese líquida do ar. Desce dos céus e toca a terra com a promessa dos sonhos, o desejo dos frutos e o querer secreto que anima as forças que mantém o universo no caminho esboçado no início dos tempos. A chuva é o ar liquefeito na memória da natureza.

terça-feira, 25 de junho de 2024

A memória do ar (31)

Yale Joel, People and vehicles moving about city shrouded in fog. Paris, 1948
A neblina é a memória viscosa do ar, o resto do seu corpo que, um dia, foi sólido, mais tarde tornou-se líquido, até chegar à indecisão a que se dá o estranho nome de estado gasoso. Por vezes, a verruma da melancolia invade os ares e, se o vento não interfere com a sua vontade inquieta, eles entregam-se ao húmido exercício da reminiscência.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

A memória do ar (30)

Nikolay Dubovskoy, Calm, 1890

Quando, cansado de deambular pela vastidão da Terra, o vento abandona os seus trabalhos, o ar permanece fiel ao desejo imemorial de imobilidade. Tudo se suspende, as águas do rio, a viagem das nuvens, a inquietação da noite, o pulsar da morte na fímbria do coração. 

sábado, 13 de abril de 2024

A memória do ar (29)

Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian)

Os campos que se abrem ao peso do ar florescem em Primaveras tardias, onde a memória do passado se constrói na lentidão com que o tempo, embalado pelas brisas matinais, se apodera da terra e perscruta aquilo que o ar esconde na opacidade da sua pura transparência.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

A memória do ar (28)

Inês Cannas, s/título (PIQ 6), 2000 (Gulbenkian

Atmosferas tomadas pela corrupção trazida pelo tempo cercam de verde e oblívio o vigor ancestral das montanhas. Onde havia o apaziguamento dos olhos humanos, há, agora, um mundo de perturbação envolto pelo ar sulfuroso dos dias de cólera e pela alucinação de quem pensa sobre o devir daquilo que é tocado pela mão dos homens.

sexta-feira, 22 de março de 2024

A memória do ar (27)

William Henry Jackson, Yucatan, 1889

O vento transporta a memória do ar, uma memória feita das coisas que toca, das árvores e dos arbustos, dos animais e das montanhas, dos rios e dos homens, dos artefactos e dos objectos naturais. É uma memória, se entregue ao próprio ar, imóvel. Permanece em pura quietude, até que o vento a transporta, cada vez mais longe, até que ela se dissolva ou se resguarde naqueles lugares de eterna quietação.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A memória do ar (26)

Maria Helena Vieira da Silva, L'air du vent, 1966 (Gulbenkian)

Voar, eis o vício do vento. Deslocar-se sobre os segredos dos homens, para os envolver no tremendo da ventania, no terrível do vendaval. Por vezes, o ar toma o nome de ciclone, corre apressado numa fúria desmedida, desloca-se em turbilhão, como se fosse habitado por uma raiva despida de razões, como se tivesse cansado de segredos e de homens.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A memória do ar (25)

Sérvulo Esmeraldo, Vibrations, 1963 (Gulbenkian)

O ar divide-se em camadas. Se o vento o anima, então cada uma começa a vibrar e ondas sonoras propagam-se sobre a Terra, umas violentas, outras dóceis, outras ainda saturadas de harmonia e equilíbrio. Os homens pensam então escutar a música das esferas celestes, mas é apenas uma canção da Terra vinda da púrpura ébria da atmosfera.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A memória do ar (24)

Cândido Costa Pinto, sem título, 1945 (Gulbenkian)

Para lá do cosmos imaginado, resta um mundo aéreo, fabricado por correntes de ar presas à luz de cada dia. É um mundo oculto na sua transparência, onde germina a disposição para o voo e o medo da queda. Existe, se deixarmos a imaginação cavalgar os prados da consciência. Desaparece, se sujeitamos os grandes espaço à gramática das pequenas coisas.