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quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Ofícios e profissões

Joaquín Mir - Carpintero

O que se perdeu na transição dos antigos ofícios para as modernas profissões? O essencial da perda reside no desaparecimento do espírito ligado ao trabalho. As modernas profissões visam apenas a eficácia externa e não pressupõem nelas nenhuma metamorfose espiritual. Quanto muito, exigem adequação psicológica. Os antigos ofícios, porém, eram verdadeiros programas de transformação espiritual. O afeiçoar da matéria era também um programa de transformação de si mesmo. O que se ganhou em objectos que, a cada instante, se tornam obsoletos, perdeu-se na vida interior de quem os produz.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Vida espiritual (2)

Erik Petersen, Copenhagen, 1940-1945

É surpreendente o que a fotografia tem para nos ensinar sobre a vida espiritual. Como no post de ontem, também aqui é acentuada de forma deliberada uma certa qualidade inerente a qualquer fotografia. O que nos é dado a ver, pela escolha de um ângulo inabitual, é que toda a fotografia é perspectivística. Ora não é apenas o olhar que é perspectivístico. Qualquer actividade espiritual do homem implica sempre esse perspectivismo, essa negação de uma apreensão absoluta e de uma posição absoluta. A vida espiritual começa com a compreensão de que o caminho é singular, deliberadamente singular, e um processo de construção de uma singularidade. Aquela que somos.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

A outra viagem

Gustave le Gray - Le Havre, Bateaux quittant le port (1856)

Deixar o porto, fazer-se ao mar para, depois e após múltiplas escalas, voltar a esse mesmo porto. Assim, como um partir e um retornar mediados pelo viajar, podemos resumir a viagem física dos homens. Será diferente a viagem do espírito? Não será, por exemplo, a peregrinação uma viagem espiritual em tudo idêntica àquela que foi descrita? Sim, mas nem toda a peregrinação ou nem toda a viagem espiritual implica sair de onde se está fisicamente. O essencial da viagem não está em deslocar-se no espaço mas em transformar-se continuamente. A viagem espiritual - essa outra e mais decisiva viagem - é uma metamorfose, onde aquele que se transforma é ao mesmo tempo o porto de onde sai, o caminho que faz e o porto aonde regressa como sendo, ao mesmo tempo, o mesmo e já definitivamente outro.

domingo, 21 de maio de 2017

Pobres e ricos em espírito

Jill Freedman, Richest man in the world, 1970s

Na vida material, aquele que move a generalidade dos seres humanos, a riqueza reside no acumular. Na vida espiritual, pelo contrário, a verdadeira riqueza é pobreza. Reside no abandonar. Abandonar inclusive aquilo de que o espírito se apropriou e toma como propriedade sua. Um espírito que é proprietário, mesmo que seja apenas e só de bens espirituais, é um espírito submetido à lógica do mundo material, às regras do mercado. Só se tornará efectivamente rico quando se despir de tudo isso e se tornar um pobre de espírito, um sem-abrigo que não espera nada e vive para cada instante que a vida lhe concede, .

sexta-feira, 17 de março de 2017

Viagem

Pierre-Albert Marquet - O carro (1904)

Emigrar, partir do lugar onde se nasceu, talvez tenha sido a primeira e mais marcante forma de transcendência encontrada pelos seres humanos. O que está na origem do especificamente humano, se essa especificidade existir, é o impulso para ir mais além. Deixar para trás os limites onde se nasceu, abandonar a condição com que se chegou à vida, descobrir o espírito como o mais além do corpo. A vida é uma viagem não porque esteja balizada entre a concepção e a morte, mas porque é o exercício contínuo do impulso para se transcender.

domingo, 5 de março de 2017

Graffiti

Brassaï - Graffiti, Paris (1944-45)

Há em muitos graffiti que poluem as paredes das nossas cidades uma revelação espiritual que raramente se tem em conta. Não me refiro aos que pretendem transmitir mensagem significativas e socialmente reconhecíveis, mas aos que desejam apenas exprimir, num gesto que derrama tinta sobre uma parede, uma emoção ou um sentimento. Traduzem um mal estar, uma opressão da esfera emotiva pela esfera significativa, uma impossibilidade de conferir sentido quando tudo parece entrar em derrocado. Resta então o grito silencioso jogado numa parede. De certa maneira, há um retrocesso, um recuo do campo da interacção comunicativa para o da mera expressão, mas esses mesmos graffiti mostram que o espírito, também ele, se sente preso nos ardis da semântica e nas regras licenciosas da gramática.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Da casa do espírito

Lajos Kassák - IV. Aristocratas e Castelos (1920)

Os castelos perderam sentido e com eles também o perderam as aristocracias. Um certo espírito está sempre ligado a um certo tipo de habitação. Quando a casa perde o sentido morre também o espírito que a habitava e lhe dava vida. Mas o espírito não é imortal? Não está ele para além do corpo e da morte? Não e sim. Sempre que o espírito encontra albergue numa certa moradia limita-se e torna-se mortal. O tempo e a história dar-lhe-ão o fim que já está inscrito na sua limitação. O espírito imortal , esse não tem onde habitar, não procura morada nem lugar de repouso. Como o vento, ele corre pela terra. Ora está no deserto, ora sopra do cume das montanhas. Vagabundo, sem eira nem beira, miserável e sem casa onde habitar, esse é o espírito imortal.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

O desejo de voar

Tal-Coat - Vuelo (1973)

O desejo de voar que habita os homens não se deve a uma propensão para imitar as aves mas a uma ânsia de libertação. Libertar-se das limitações do corpo e do império da gravidade. Voar é então um devaneio da razão sobre as condições da nossa humanidade. No entanto, este sonho de se libertar da prisão imposta pela densidade da carne é apenas o prelúdio de uma compreensão do homem como espírito. No voo a espécie humana simboliza a graça do espírito, a graça de um mover-se que a eleva acima da condição terrestre e a abre para o incomensurabilidade da condição celestial.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Exterior e interior

Alejandro Mesonero - Exterior - Interior

Uma das armadilhas da vida do espírito reside na oposição entre exterior e interior. Uma longa tradição, composta de múltiplos matizes, vê a vida espiritual como pura interioridade, como tendo a sua génese e o seu território na vida subjectiva. O exterior é sentido como uma ameaça a esse paraíso de onde brotaria a criatividade e a espiritualidade humanas. Exterior e interior, contudo, definem-se um pela relação com o outro, o que em vez de os tornar opostos mostra-os como complementares. Não há vida do espírito sem esse imenso território exterior onde o espírito se configura. Não há mundo sem um espírito que lhe dê figura e, pela sua actividade, sentido. O espírito não é outra coisa senão aquilo que supera a diferença entre o exterior e o interior e, estando neles, está aquém e além deles.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Meditação breve - 8. Muros

Philip Guston - Ancient Wall (1976)

O corpo e o medo que o habita erguem muros. O espírito, na ânsia de um horizonte cada vez mais amplo, tem por missão destruí-los. Onde se ergue um muro é ainda o animal que que fala.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

Uma das categorias centrais da vida espiritual é a de fim do mundo. Não se trata, porém, de um reconhecimento de que o mundo terá um fim, mas da própria finitude dos mundos humanos. Cada mundo humano é o produto da vida espiritual, de uma certa compreensão que o espírito tem de si mesmo. Esse mundo terá a sua forma de vida, as suas instituições, os seus costumes e a sua forma de pensar. O apocalipse que revela o fim do mundo significa que a vida espiritual já não se reconhece nesse mundo de vida e em tudo onde ela tomou forma. O espírito prepara-se então para morrer, para renascer num outro mundo, com novas instituições, modos de vida, formas de pensar e de se realizar. A categoria do fim do mundo torna patente a natureza metamórfica da vida espiritual, cristalizando-se nessa categoria o momento libertador de uma forma caduca, a morte desta, e um novo nascimento no espaço e no tempo.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Do burlesco

Thomas Hart Benton - Burlesque (1922)

O burlesco e o grotesco que esteticamente lhe está ligado são visões críticas da distorção da própria vida espiritual. Muito facilmente os homens tomam a vida do espírito - nos múltiplos domínios que a constituem - como uma afirmação de si e da sua vaidade. Esta incongruência entre aquilo que anseia a libertação das restritas fronteiras do pequeno ego e o seu aprisionamento por este mesmo ego torna-se risível. O burlesco tem então o poder, através do exagero caricatural, de tornar patente, aos olhos de todos, o quão grotescos podem ser os homens.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O combate decisivo

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

O maior, mais decisivo e enigmático dos combates não é aquele que opõe os homens entre si ou o que os opõe à natureza. Esses combates por duros e mortais que sejam são superficiais, não porque não sejam dolorosos mas porque resultam de uma visão superficial da vida. O verdadeiro combate é aquele que opõe o espírito a si mesmo, essa noite escura onde se confronta com a ilusão que nasce do desejo, que nasce do seu próprio desejo de verdade e de clarividência.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Da queda

Ana Peters - A Queda (1996-97)

A tradição judaica, uma das tradições constitutivas do homem ocidental, coloca como princípio de hominização - não entendida, claro, na perspectiva científica - o mito da queda. O homem tal como o conhecemos é o resultado de uma degradação originária simbolizada, mas não descrita, na perda de Adão e Eva. É este mito que ecoa nas diversas manifestações da vida do espírito - da arte à filosofia passando pela religião -, dando-lhe um horizonte. O mito não conta apenas uma história simbólica sobre a nossa existência degradada e degradante. Traça também uma finalidade, um horizonte de toda a vida, a restauração da condição prévia à queda. O mito da queda é menos a justificação da nossa maldade, embora também o seja, do que a recordação do sentido que o homem deve dar à sua existência.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Das trevas

Albert Gleizes - O centro negro (1925)

Há duas espécies de trevas na vida do espírito. A primeira espécie é objectiva. Resulta da ausência absoluta de luz. São as trevas exteriores. A segunda é subjectiva. A luz é de tal maneira intensa que o espírito fica cego. São as trevas interiores. Às primeiras resta sempre a expectativa de que um foco de luz as ilumine. Às segundas há que aceitá-las e aprender a navegar na escuridão.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Tempestade

László Péri - Der Strum (1923)

No caminho do viandante, a tempestade é um elemento central. Na tempestade dissolve-se a ordem estabelecida. Os hábitos, cristalizações de onde o espírito se ausentou, são desfeitos perante o inusitado do tempestuoso. Mais leve, o espírito reabre-se para o inédito de cada momento, salvo pelo troar da tempestade.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Acções de resgate

Pedro Calapez - Submerso (2001)

As múltiplas e diversificadas formas que toma a vida espiritual, da arte à religião ou à filosofia, têm um aspecto comum. A condição do espírito é de estar submerso, oculto pelas águas. Cada aventura espiritual é um exercício de o trazer à luz e de o resgatar da sua alienação na natureza. Um romance, um quadro, a prática dos místicos ou a especulação dos filósofos são, na verdade, acções de resgate e de libertação.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Da vida dos sonhos

David Lynch - A Bug Dreams of Heaven (1992)

Há a ilusão que o sonho é o veículo de uma comunicação entre o sonhador e uma qualquer realidade de natureza espiritual que reside num além. A ilusão nasce, em primeiro lugar, da cisão que leva a pensar na existência de um aquém e de um além. Em segundo lugar, da ocultação - embora as diversas escolas psicanalíticas tenham chamado a atenção para o equívoco - de que, no sonho, o espírito comunica consigo mesmo. Sendo como o vento, ele sopra onde quer. Fala do passado e fala do futuro, mas fá-lo sempre porque quer falar do presente, desse puro acontecer aqui e agora e no qual se manifesta toda a eternidade. 

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, 
mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; 
assim é todo aquele que é nascido do Espírito. (João 3:8)

Não por acaso, o vento - ou o sopro - é tomado como símbolo da vida espiritual. João diz-nos que nada sabemos daqueles que nascem do espírito. Não sabemos nem a sua origem nem o seu destino. Estão subtraídos à dinâmica da história, como se estivessem acima e para além dela. O vento como símbolo do espírito e da vida espiritual diz-nos ainda outra coisa. O vento suave pode refrescar e tornar a existência aprazível, mas o vendaval tem o poder de destruir. É um equívoco olhar para a vida espiritual como um mero exercício de consolação. Ela é também, e muitas  vezes, a violência que destrói os edifícios anquilosados onde tomou forma e que já não contêm a sua infinita ânsia de liberdade.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Armar espantalhos

Arturo Souto Feijoo - Espantallo (1934)

Nunca os processos de educação dos seres humanos preparam estes para a liberdade espiritual. Essa liberdade, pela sua vastidão e pela sua profundidade, quando suspeitada, é sentida como um perigo. O espírito tem medo de si próprio, sente-se como uma ameaça para a ingénua tranquilidade em que foi educado. Como o agricultor que vê as suas colheitas ameaçadas pela liberdade das aves, o espírito entretém-se a armar espantalhos para se defender de si mesmo e evitar o confronto com o terrível que a sua liberdade traz.