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sábado, 12 de abril de 2025

Micronarrativa (74) Indistinção

Gustav Klimt, Schubert ao Piano, 1899
O que move aquelas mulheres? O amor da música ou o desejo do músico? Elas não o sabem, pois o seu ser é incapaz de distinguir o ritmo musical da gramática com que o ele se apresenta ao seu olhar. Conforme, os acordes irrompem, elas fecham os olhos e o que vêem é apenas aquela figura, que não é mais do que o desenrolar do ritmo com que o som vem à existência, paira por instantes e se desvanece no fundo dos seus corações.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Micronarrativa (73) Cansaço

António Costa Pinheiro, Fernando Pessoa - Heterónimo, 1978 (Gulbenkian)

Cansei-me da homonímia, de transportar pela ruas, como quem caminha pelo infinito, o mesmo nome. Ser esse nome a cada hora não é apenas infausto, mas traz uma sonolência que, a partir de certa hora, é impossível resistir. Não criei outros eus, mas dei-me outros nomes, para poder resistir ao sono e ter todas as horas à minha disposição. Se um eu dorme, os outros estão de vigília. A vida é demasiado pobre para quem tem apenas um nome.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Micronarrativa (72) A personagem

John Yardley, A book on the terrace

Sentou-se, cruzou as pernas e abriu o livro. Lia com determinação, como se procurasse alguma coisa que tivesse perdido. O que a envolvia não a desviva do seu propósito, até que, a certa altura, alisou uma das páginas do livro e entrou dentro dela. Não me posso perder, foi aqui que saí, é aqui que tenho de entrar, exclamou.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Micronarrativa (71) Viagem

Querubim Lapa, sem título, 1947

Não tinham destinam, mas caminhavam. A terra queimava-lhes os pés nus. O coração, porém, era um monte de cinzas, o resto de pequenos fogaréus que o tempo ateou e, de imediato, apagou. Não é a ira, nem a alegria ou a resignação que lhes alimenta a viagem, mas o não saber o que os espera. A sabedoria conduz à imobilidade. A ignorância ao nomadismo selvagem, como se fugissem de um inimigo mudo e sem rosto.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Micronarrativa (70) Corrida

Amadeo de Souza-Cardoso, Avant la corrida, 1912 (Gulbenkian)

O espectador olhava os cavalos, mas não via a corrida. Pensava, meditava, perdido na multidão, sobre a natureza das corridas. Umas não têm fim, outras não têm princípio, e havia outras que não tinham meio, pois o princípio e o fim coincidiam tanto no espaço como no tempo. E, quando o mais veloz dos cavalos se aprestava a ganhar o grande-prémio, sentiu uma iluminação: a única corrida autêntica é aquela que não tem princípio nem fim, pois é um eterno correr sem correr. Enquanto a multidão ovacionava o triunfador, ele saiu do hipódromo, pois a sua corrida não pertencia àquele mundo.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Micronarrativa (69) Esboço

Ralph Gibson, The Sketch, 1975

No princípio, era o nada e o nada sonhou-se como uma criança sonha, no início da manhã, erguer-se da cama e caminhar perdido pela vastidão da casa. Nesse horizonte vazio, uma luz de carvão cintilou e um esboço irrompeu, para anunciar a chegada daquele a quem o murmurar de uma voz chamou pelo nome.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Micronarrativa (68) Sombra

Lee Friedlander, New York city, 1966

Absorto, caminha pela cidade. Enfrenta o desconhecido, abre o caminho entre a multidão, evita o turbilhão do tráfego. Não sente o corpo, pois o pensamento está concentrado em si mesmo, no desejo que lhe rumina na alma, na expectativa de chegar a onde o esperam, na esperança de encontrar a sombra que perdeu ao sair de casa.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Micronarrativa (67) Cegos

Júlio Pomar, Cegos de Madrid, 1957-59 (Gulbenkian)

Formam uma irmandade e caminham nas ruas da grande cidade. Une-os a escuridão, o desconhecimento das cores, a impossibilidade de destrinçar luz, sombras e trevas. Move-os a esperança de, presos à sua fraternidade privada da cintilação do mundo, encontrem nas ruas a pedra de ouro que lhes trará a luz mais pura que habita no fundo de cada um.

domingo, 26 de maio de 2024

Micronarrativa (66) Pescadores

Hans Baumgartner, Fischer an der Mosel, 1937

Não, não são os peixes que atraem os pescadores ao rio. Levam o barco para o meio das águas, pegam nas canas de pesca e lançam, presos aos fios, anzóis armadilhados. Querem enganar o tempo e trazê-lo do leito viscoso para a cesta, onde esperam vê-lo contorcer-se e, sem poder recriar as fantasias com que ilude os homens, morrer nos braços vivos da eternidade.

sábado, 27 de abril de 2024

Micronarrativa (65) Um deus na tormenta

Sebastião Salgado, Oil wells firefighter, Greater Burhan, Kuwait, 1991

Um fogo magnético eleva-se do fundo da terra. Atrai com as suas chamas ascensionais os seres celestes, que, espantados, olham a inconstâncias das chamas. Preso na sua solidão, um homem desloca-se, com a lentidão de um deus, para o centro da tormenta. Traz nele a sabedoria do hábito e a inspiração que a hora exige. Está na argúcia das suas mãos o poder de devolver o fogo à caverna de onde o acaso da natureza ou a impotência dos homens o deixou escapar.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Micronarrativa (64) Viagem

Ernst Haas, Utah, 1952

A imagem extática de uma natureza que espera, uma paisagem delicada onde os mais terríveis segredos se escondem, para que o silêncio os guarde e não os deixe cair, como um trovão retumbante, sobre quem passa. Esse fundo sem fundo aguarda-te e tu, perdido na névoa da ignorância, precipitas-te para ele, arrastando tudo atrás de ti, como se esse mundo silvestre fosse o lar onde a esperança te aguarda.

domingo, 25 de setembro de 2022

Micronarrativa (63) Jogadores

Otto Scharf, Kartenspieler, 1905

Apesar das moedas na mesa, os jogadores de cartas não jogam para obter ganhos. Seria, pensam, ignóbil fazer do lucro uma motivação para passar aquelas horas. Um duplo objectivo os move. Esconder o seu pensamento e desocultar o dos parceiros. Quando a sessão acaba, sentem-se felizes. São como as crianças que acabam de jogar às escondidas. Quando se vão embora, sabem que retornarão no próximo dia.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Micronarrativa (62) Gigantes

Paula Rego, O Gigante de Minsky, 1958

Ainda hoje se acredita, explicam-me, que havia, naqueles tempos, gigantes, cujo prazer maior era destroçar seres humanos. Acontecimentos tão antigos nunca são registados com o rigor a que estamos habituados, pensei. Talvez não houvesse qualquer gigante, contrapus em voz alta. Uma conjectura, uma mera conjectura, mas será sensata ou verosímil? A verdade, oiço, é que não faltam provas de seres humanos destroçados. Algum gigante há-de ter feito esses trabalhos. Encolhi os ombros e sorri.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Micronarrativa (61) Subir e descer

JCM, Black & White Dreams. Lugo, 2007
Subia lentamente os poucos degraus que levam ao primeiro patamar. Depois, parava e olhava para o segundo lance de escadas, mas rapidamente descia o que tinha subido. Chegado ao ponto de partida, olhava para cima. Tornava a subir, sem pressa, como se estivesse exausto, até ao primeiro patamar. Chegado aí, tornava a parar e a contemplar o segundo lance de escadas. O que via impelia-o mais uma vez para uma rápida descida. Quando lhe perguntaram por que razão gastava a vida nesse subir e descer, respondeu: porque sou homem e a vida de um homem não é mais do que uma série de pequenas ascensões e pequenas descidas.

sábado, 14 de maio de 2022

Micronarrativa (60) Iluminação

David Hamilton, Cabourg beach, France, 1970s

Mãe e filho caminham em direcção ao mar. Persegue-os o sonho dos dias de Verão, o ir e vir das águas sobre a areia, a esperança de encontrar alguém conhecido de há muito para que aquela hora ganhe um sentido descoberto na troca de palavras e na cumplicidade dos anos. Quando se sentarem a perscrutar o enigma do oceano, o sol tocar-lhes-á os corpos e em cada um deles haverá um sentimento de felicidade, como se uma iluminação lhes rasgasse o coração.
 

quinta-feira, 17 de março de 2022

Micronarrativa (59) Dança

Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye performing a “pas de bourree”, 1947

Sempre sentira dificuldade em estar de acordo consigo. Sobre qualquer assunto, enquanto os outros tenham uma opinião firme, ela tinha muitas e nenhuma delas era marcada pela força da convicção. Essa contínua e inexplicável guerra que a atravessa poderia tê-la exaurido e conduzido a uma morte prematura. Salvou-a a dança. Enquanto girava sobre si, os seus múltiplos corpos desligavam-se e reconciliavam-se com as suas próprias almas. Quando parava, todos se uniam num único corpo e numa única alma. Então, ela sabia quem era.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Micronarrativa (58) Do exílio

Autor desconhecido, Women carrying water, Volendam Holland, 1920s 

Mais tarde, ao ver a fotografia, a criança, então já mulher madura, terá pensado como eram seguros os tempos em que nada parecia mudar. Aquelas mulheres, todas da sua família, faziam o que muitas outras antes delas também o fizeram, com os mesmos gestos, as mesmas palavras, as mesmas dores. Ela, porém, exilara-se desse mundo. Na sua nova pátria, nada é como outrora, nem aquilo que é se mantém por muito tempo. Depois, olhou longamente para a figura da mulher da frente e chorou.

domingo, 14 de novembro de 2021

Micronarrativa (57) A mulher dupla

Ilse Bing, Self reflection, 1947
Solteira, cansou-se da solidão. Arquitectou diversas soluções. Das menos ousadas, às mais radicais. Achou as primeiras frouxas, as segundas hiperbólicas. Foi então que lhe ocorreu a solução. Saiu de casa, ganhou distância suficiente, apontou a máquina à janela do quarto. Disparou. Captou si uma dupla imagem, uma em cada vidro. A partir daquele momento, nunca mais estaria só. Se ficasse solteira, seriam duas. Se casasse, o marido seria bígamo, mas isso já não lhe importava.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Micronarrativa (56) O homem do progresso

Elliott Erwitt, Paris, 1989
Certas pessoas são, para a humanidade, autênticos benfeitores e verdadeiros faróis que lhe iluminam o caminho. Ele era um homem voltado para futuro, mesmo quando vestia como se estivesse no passado. Ocupava-o o progresso. Como dizia sempre, há levar as coisas em frente. Ao andar pelas ruas só conhecia um passo, o passo de gigante.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Micronarrativa (55) O simulacro

Eugene Robert Richee, Carole Lombard, ca. 1937
A voz veio de dentro do espelho. Nunca me habituo ao simulacro da minha imagem. Como é possível que eu, tão cristalina e imortal, possa emanar um ser de carne que pretende emular-me a glória, mas que nunca terá a minha eternidade?