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sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O combate decisivo

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

O maior, mais decisivo e enigmático dos combates não é aquele que opõe os homens entre si ou o que os opõe à natureza. Esses combates por duros e mortais que sejam são superficiais, não porque não sejam dolorosos mas porque resultam de uma visão superficial da vida. O verdadeiro combate é aquele que opõe o espírito a si mesmo, essa noite escura onde se confronta com a ilusão que nasce do desejo, que nasce do seu próprio desejo de verdade e de clarividência.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Metamorfoses

James Whistler - Nocturne: Blue and Silver-Cremorne Lights (1872)

Há uma verdade à luz do dia e uma outra à luz da noite. Não são apenas as coisas que sofrem metamorfoses, que se transformam naquilo que não são. Também a verdade é itinerante, tomando sempre novas figuras. Os homens são tentados a contrariar os seus sentidos, em crer numa imutabilidade eterna da verdade. Esta, porém, sofre de uma inquietação estrutural e nunca se reconhece a não ser nesse acto de se metamorfosear.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Perante a paisagem

Max Beckmann - Small italian landscape (1938)

O turista colecciona paisagens para elaborar um álbum de sensações de prazer que o consumo do mundo lhe dá. É uma relação de poder fundada no registo de sensações. O viandante apaga-se na paisagem para que o espírito do lugar se manifeste, e assim dois espíritos se unam e a verdade se revele.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Do ocaso e da aurora

Jaime Burguillos - Ocaso (1976)

Quando desce a noite, descobrimos a verdade do dia. No ocaso encerra-se a luz. Cercada pela noite, porém, a luz não se desvanece. Respira lentamente e prepara, nas trevas mais densas, o raiar de uma outra e mais decisiva aurora. A viagem continua.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Um traço de luz

JCM - Origem da Vida (2014)

Um traço de luz irrompe nas trevas e, lentamente, dissemina-se na planície da noite. Onde tudo parece ausência, lentos grãos de vida brotam da escuridão. Sementes carregadas de esperança anunciam a via, a verdade e a vida.

domingo, 8 de junho de 2014

Se a tempestade se aproxima

Léonard Misonne - A Storm Arrives

Há violentas tempestades que, vindas da revolução dos elementos, se abatem sobre o Viandante. Essas, porém, são tempestades benignas. Terríveis são as que nascem no coração do homem. Partem do centro vital, espalham-se por cada recanto do ser, abalando todos os interstícios. Quando se aproximam, o melhor é o Viandante esperá-las em silêncio. Deixar que esse silêncio revele o terrível que se aproxima, para que a verdade então se manifeste.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Na terra devastada

Man Ray - Waste Land (1929)

Não fugir. Insistir, permanecer na terra devastada, deixar que ela traga até nós as primeira palavras, que abra a bolsa onde guarda os segredos e nos deixe espreitar. Ali, onde a terra foi devastada e abandonada pelos homens, também é lugar de viagem. Melhor, é sítio de peregrinação e de espera. Espera que a terra fale e a verdade, abençoada pelo silêncio, se revela.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Depende da perspectiva

Rodney Smith - Skyline, New York (1992)

Sobre as coisas humanas não há verdade possível de partilhar entre o homens. Aquilo que cada um vê depende do lugar de onde olha e do sítio para que olha. Este perspectivismo não afecta apenas a verdade. Afecta também a viagem que cabe a cada um fazer. Nenhum peregrino faz a peregrinação feita por outro, nenhum viandante faz a viagem realizada por terceiros. Tudo depende daquilo que se é e da forma como se escuta a voz que o impele ao caminho. Também a viagem depende da perspectiva.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A verdade de si

Caspar David Friedrich - Homem e mulher contemplando a Lua (1820)

Na contemplação de um objecto, não é a verdade do objecto contemplado que se revela, mas a do próprio contemplador. Não que os objectos ou o mundo sejam um espelho, mas o facto de alguém escolher este ou aquele objecto para contemplação é uma autêntica epifania daquilo que é. Revelo a minha verdade nos objectos que escolho para olhar e na forma como o meu olhar paira sobre eles. 

sábado, 7 de dezembro de 2013

A floresta e a verdade

Gustav Klimt - Beech forest (1902)

Há dias em que, na viagem, nos afastamos dos caminhos abertos na paisagem. Abandonamos a tranquilidade das rotas conhecidas e entramos na floresta. Esses são os momentos onde a verdade se abre para nós. O que significa isso? Onde estará a verdade? A verdade revela-se na via que, em plena floresta, traçamos. É nestes momentos, afastados do mundo conhecido, que a vida se revela inteiramente nos caminhos que traçamos. A floresta é o lugar onde habita a verdade.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Um lugar de epifania

Rita Rutkowski - Campo da Verdade (1961)

Nunca se deverá confundir a verdade como adequação das nossas palavras aos factos e a verdade como revelação. O campo da verdade não é o sítio onde alguém profere a verdade. O campo da verdade é o lugar onde a verdade se revela. Onde tem o ser humano o seu campo da verdade? A vida é o campo onde a verdade se manifesta e se manifesta não por palavras mas naquilo que revelamos ao viver. A vida de cada um é sempre, saiba-o ele ou não, um lugar contínuo de epifania. A manifestação daquilo que ele é e do destino que o chama.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Da alma decepcionada

Ferdinand Hodler - Alma decepcionada (1891)

A decepção, qualquer que ela seja, é sempre o sinal e a prova de uma ilusão. Se o mundo, o outro ou mesmo o próprio eu são motivos de decepção, isso significa que uma fantasia se apoderou de nós e perverteu a avaliação. Na base dessa perversão está sempre a maquinação da vontade egoísta que, desejando apoderar-se da realidade e sentindo-se impotente para tal, tece uma ficção que confirme o seu desejo. Quando a realidade fala, a trama rompe-se e o espírito vê-se confrontado com a decepção. Esta impõe, então, uma escolha: fazer-se de vítima, de alma decepcionada, ou aceitar o caminho da pobreza de espírito, que não é outra coisa senão o contínuo exercício da humildade perante a realidade e a verdade.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Verdade e existência

Jules Joseph Lefebvre - A Verdade (1870)

Na tradição intelectual do Ocidente, a verdade é vista ora como revelação daquilo que está oculto - essa é a perspectiva platónica que tem frutuosa aplicação na literatura, nomeadamente na literatura policial - e a verdade como adequação à realidade das representações que o homem produz, por exemplo, na ciência. Um dos momentos mais surpreendentes dos textos evangélicos é aquele em que Cristo afirma que é a Verdade, a Via e a Vida. A questão da verdade é deslocada do elemento intelectual para uma perspectiva mais global. Poder-se-á dizer que, com o Cristianismo, a verdade se combina com a vida e com o modo como a vivemos. Há uns anos atrás, dir-se-ia que a verdade tem um sentido existencial. A verdade não é assim o resultado de uma estratégia cognitiva ou a resultante da justeza das nossas imagens do real, mas uma forma de caminhar na vida que mobiliza não apenas o intelecto mas todo o ser do homem. A verdade não é uma representação mas uma presença que, por ser verdadeira, se torna realidade.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Dos limites da fantasia

Alexandre de Riquer - Fantasia

O discurso do senso comum, muitas vezes dinamizado por uma certa divulgação pseudo-científica, tem valorizado, para além do domínio artístico, a dimensão da fantasia. Desde a importância da fantasia na vida sexual até à sua mobilização no âmbito da publicidade e da técnica de vendas, passando pelos múltiplos usos quotidianos do fantástico, a fantasia tornou-se um vocábulo que facilmente é mobilizado como panaceia do aborrecimento e do cansaço. 

O resultado desta banalização do exercício fantástico da imaginação está longe de ser percebido. Seja a fantasia realista ou inverosímil, ela é sempre um exercício de suspensão do contacto com a própria realidade. Perante uma realidade tida como prosaica, a subjectividade recria-a, imagnariamente, à luz dos seus desejos. Esta velha propensão da humanidade para a fantasia esconde uma inconfessável impotência para acolher e maravilhar-se com a própria realidade. A usura que o olhar quotidiano sofre, impede-o de uma atenção à própria realidade. A fantasia surge, então, não como um remédio mas como uma técnica de intensificação da patologia quotidiana. 

Em diversas tradições espirituais da humanidade, e contrariamente ao que se pensa, a crítica ao desejo funda-se na fuga mundi que ele introduz através da fantasia. Essa crítica à consciência desejante não é, na verdade, uma crítica do desejo, mas ao delírio que, pela fantasia, desvia o desejo do seu objecto real. O que nessas tradições - por exemplo, na mística cristã - está em jogo não é um desvio da consciência relativamente à realidade, mas a aprendizagem de uma atenção ao que é real, como caminho que conduz ao espanto (a experiência que, segundo os gregos, leva à filosofia) perante aquilo que é, e ao deslumbramento perante a verdade.

sábado, 6 de abril de 2013

O horror da história

Adam & Christ Composição de duas pintuas de Hans Bauldung Grien ("Adam" e "Crucifixion") (ver aqui)

A reorientação de toda a vida humana numa direcção que não é imediatamente perceptível à inteligência natural do homem é o trabalho característico do Cristo, segundo Adão. É a reparação do mal causado à raça humana. O segundo Adão chega, e encontra o homem na desordem mais profunda, no caos e na desintegração moral onde o mergulharam os pecados do primeiro Adão e de todos os nossos antepassados. O Cristo descobre Adão, a raça humana, como a ovelha perdida que Ele reconduz para via que ela seguia antes de se ter afastado da verdade. (Thomas Merton, Le Nouvel Homme)

Sem esta relação entre Adão e Cristo, o segundo Adão, todo o cristianismo é incompreensível. Adão é a própria humanidade, a humanidade que se afastou da verdade e se perdeu no caminho. As palavras usadas por Merton para descrever a situação existencial do homem são esclarecedoras: desordem, caos, desintegração. Mesmo para aqueles que o símbolo da queda nada significa, a história dos homens é a prova evidente da situação existencial em que a humanidade está mergulhada. Toda a nossa história, e também as fases anteriores da existência humana, são marcadas por esses três conceitos. A desintegração moral, a desordem social e o caos existencial são os verdadeiros conteúdos da história, aos quais o homem vai tentando opor os seus débeis esforços.

Percebido a partir deste ponto de vista, o cristianismo é uma resposta ao horror da história, a tudo o que de inqualificável o homem fez e faz ao seu semelhante e a tudo o que o rodeia. Só por isto, o cristianismo é um acontecimento decisivo nessa mesma história. Decisivo não porque seja mais um dos eventos que constroem o horror, mas porque abre uma brecha na muralha de horrores que nos circunda. Se o primeiro Adão significa a humanidade que se afasta da verdade e, por isso, vive na desintegração, na desordem e no caos, Cristo, o segundo Adão, significará uma humanidade reconciliada com a verdade e que encontra o caminho da integração, da ordem e do cosmos. O judaísmo tinha e tem a vinda do Messias como expectativa a realizar no futuro. O cristianismo mostra que Ele já se encontra aqui, que a cada momento nós podemos optar pelo velho Adão ou pelo novo Adão. A vinda de Cristo significa que a liberdade do homem foi restaurada e que, certamente com o auxílio da graça, podemos optar pela verdade.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Verdade e libertação

Lecomte du Noüy - White slave (1888)

Naquele tempo, dizia Jesus aos judeus que n'Ele tinham acreditado: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres.» Replicaram-lhe: «Nós somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de ninguém! Como é que Tu dizes: 'Sereis livres'?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é servo do pecado, e o servo não fica na família para sempre; o filho é que fica para sempre. Pois bem, se o Filho vos libertar, sereis realmente livres. Eu sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me, porque não aderis à minha palavra. Eu comunico o que vi junto do Pai, e vós fazeis o que ouvistes ao vosso pai.» Eles replicaram-lhe: «O nosso pai é Abraão!» Jesus disse-lhes: «Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão! Agora, porém, vós pretendeis matar-me, a mim, um homem que vos comunicou a verdade que recebi de Deus. Isso não o fez Abraão! Vós fazeis as obras do vosso pai.» Eles disseram-lhe, então: «Nós não nascemos da prostituição. Temos um só Pai, que é Deus.» Disse-lhes Jesus: «Se Deus fosse vosso Pai, ter-me-íeis amor, pois é de Deus que Eu saí e vim. Não vim de mim próprio, mas foi Ele que me enviou. (João 8,31-42) [Comentário do Concílio Vaticano II aqui]

O texto de hoje gira em torno do tema da libertação. É grande a perplexidade dos judeus ao escutarem a ideia de libertação, pois eles nunca foram escravos, como poderão ser libertos? Esta reacção denota que a questão da libertação ultrapassa o par antitético escravo – homem livre. Tão servos podem ser os escravos como os homens livres. Aquilo que emerge no texto está antes – no sentido de ser mais essencial – da mera categorização social e política. O que nos ensina João?

Surpreendentemente, ensina-nos que a liberdade é uma questão de aprendizagem, que ela implica um processo – um processo de libertação – e, sendo assim, ela, a liberdade, não é um dado natural do homem. Essa aprendizagem está indicada na primeira fala de Cristo, que a tradução acomoda de tal forma a uma visão banal que se perde a originalidade do texto grego. Ele poderia ser traduzido antes assim: se permanecerdes (ou persistires) na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos. A relação ao logos (palavra ou verbo, de preferência a mensagem) não é de uma mera adesão do espírito, não é uma fidelidade de crença, mas antes um permanecer na palavra. Na fidelidade ou na crença, a relação do fiel ou do crente em relação ao objecto da sua crença ainda é marcada pela exterioridade. O texto de João propõe outra coisa, propõe um estar em (estar no logos), um ser em. Creio, pois estabeleci-me e persisti no logos.

A aprendizagem, o discipulato, é essa persistência no logos. Ao viver no logos (na palavra), conheço a verdade. A verdade, porém, não é o mero acordo entre uma proposição e a realidade. A palavra grega utilizada no texto (ἀλήθεια) remete para a ideia daquilo que se desoculta, que se revela. E é isso que se desoculta pela persistência no logos (na palavra ou no verbo) que liberta o homem. Não menos misteriosa, porém, é a palavra grega (ἐλευθερώσει) utilizada para a ideia de libertação. Ela remete para ἐλεύθερος que significa livre e livrado (ou libertado) de uma obrigação, i. e., desobrigado.

Todo o diálogo com os judeus está marcado por uma incompreensão essencial. Estes falam da sua natureza e julgam-se livres segundo a natureza, pois nunca foram, social ou politicamente, escravos. Mas o que Jesus lhes diz é que essa natureza representa uma obrigação que os torna servos, que os obriga à servidão. É uma natureza que, em última análise, se pode dizer desnaturada. Só a verdade liberta. Mas a verdade não é da dimensão do discurso mas da vida vivida na palavra (logos), de uma vida que permite desocultar uma outra natureza, desocultação que liberta e desobriga o homem da servidão a essa natureza desnaturada. O pecado, mesmo entendido como errância, não é outra coisa senão a servidão, enquanto a aprendizagem pela permanência no logos é desocultação daquilo que nos desobriga e, desse modo, nos retira da servidão e torna livres.

segunda-feira, 4 de março de 2013

A expatriação da verdade

Giorgio de Chirico - O Profeta (1915)

Naquele tempo, Jesus veio a Nazaré e falou ao povo na sinagoga: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. Posso assegurar-vos, também, que havia muitas viúvas em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou durante três anos e seis meses e houve uma grande fome em toda a terra; contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas sim a uma viúva que vivia em Sarepta de Sídon. Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naaman.» Ao ouvirem estas palavras, todos, na sinagoga, se encheram de furor. E, erguendo-se, lançaram-no fora da cidade e levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava edificada, a fim de o precipitarem dali abaixo. Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho. (Lucas 4,24-30) [Comentário de João Crisóstomo aqui]

Dois temas ligam-se no texto de Lucas. O da verdade e o do acolhimento. O tema da verdade surge logo no início do discurso de Cristo ao povo na sinagoga de Nazaré: Em verdade vos digo. Esta fórmula sublinha o lugar de onde o discurso é proferido e este lugar é o da verdade. O tema da verdade é de imediato retomado quendo é dito: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. O profeta é aquele que transporta uma verdade e a revela. É o portador e revelador da verdade que não é bem recebido na sua pátria, que não é reconhecido como tal. O problema do reconhecimento da verdade – um tema crucial nos dias de hoje e que a cultura actual, seja numa visão moderna ou numa visão pós-moderna, desvaloriza – conduz directamente ao tema do acolhimento.

Este acolhimento não é a mera recepção, mas contém em si a ideia de abrigo e de refúgio. A verdade mostra-se aqui na sua plena fragilidade e pobreza. E é esta sua natureza que faz com que nenhum profeta seja bem recebido na sua pátria. A verdade não pertence à esfera do poder, não traz com ela o conjunto de superstições ou de violências com que o poder compra a sua recepção em cada pátria. O poder da verdade é um não-poder, é exposição da sua fragilidade e humildade. É esta sua natureza que requer acolhimento que seja abrigo contra as intempéries e refúgio contra as perseguições.

Apesar da fragilidade da verdade perante as potências do mundo, apesar das perseguições de que é alvo, ela seguirá o seu caminho, de acolhimento em acolhimento, de refúgio em refúgio. O confronto entre a verdade e a utilidade, subjacente à recepção irada de Jesus pelos nazarenos, continua tão vivo hoje como  naqueles dias. A fácil promessa de uma felicidade geral, animada pelo princípio de utilidade, continua a exercer a sua função idolátrica, alimentando a alienação do homem pelas superstições do mundo. Acolher a verdade, abrigá-la e dar-lhe refúgio continua a ser um sinal que as pátrias, diversas que elas sejam, recusam a fazer. O destino da verdade é a sua expatriação contínua, a busca de um abrigo, a viagem a que foi condenada por aqueles que estão eles mesmo na mais pura e radical das errâncias.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Da propriedade e do desprendimento

Com o passar dos anos a morte biológica torna-se cada vez mais presente, mas, ao mesmo tempo, o temor que nos acomete nos anos da juventude, um temor secreto e inconfessado, vai-se dissipando como se a própria natureza fizesse ouvir no ser biológico a verdade dos seus imperativos. Aprender a morrer e a estar morto era o exercício que Platão, no Fédon, dizia constituir a natureza da filosofia. Mas esta aprendizagem da morte não é o desejo de pôr fim à vida, mas o exercício contínuo do desprendimento. Aprender a desprender-se daquilo que nos rodeia não é indiferença perante o mundo. O desprendimento parece antes ser uma via para a verdade do meu próprio ser. Só na verdade de mim é possível criar o espaço onde tudo o que é ganha um novo sentido. Este sentido nasce das coisas serem consideradas já não a partir da fractura da propriedade, do que é meu em oposição ao que é teu e ao que é do outro. Não é que os direitos de propriedade possam ou devam ser violados, mas devem ser remetidos para a esfera do animal que labora e, apesar desse animal ser humano, a propriedade não é menos, por isso, um instinto animal. Desprender-me da minha propriedade, mesmo que ela continue minha, é aprender a desprender-me da minha dimensão biológica ou, talvez seja o termo mais adequado, zoológica. Aprende-se a morrer morrendo para o que é próprio e aquilo que há de mais próprio no homem é o desejo de propriedade. O próprio escravo deseja-se proprietário de si. Talvez a experiência da liberdade só possa nascer desta aprendizagem do desprendimento.