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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Meditação breve - 8. Muros

Philip Guston - Ancient Wall (1976)

O corpo e o medo que o habita erguem muros. O espírito, na ânsia de um horizonte cada vez mais amplo, tem por missão destruí-los. Onde se ergue um muro é ainda o animal que que fala.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O mistério da encarnação

Umberto Boccioni - Dynamism of a Cyclist (1913)

O mundo contemporâneo preocupou-se, essencialmente, com o dinamismo dos corpos. Melhor: interessou-se, em primeiro lugar, com a dinâmica dos mecanismos, pois o corpo, no século XVII, foi reduzido a uma máquina e, desde então para cá, nunca o deixou de ser, uma máquina cada vez mais eficiente e atraente, mas não mais do que uma máquina. Para penetrarmos no mistério - no sagrado mistério, diria - do corpo é preciso, em primeiro lugar, suspender o fascínio pelo seu dinamismo mecânico. Depois há que ousar e perceber que o corpo não é outra coisa se não espírito que ganha carne, espírito encarnado. E aqui reside o mistério, o mistério da encarnação.

terça-feira, 10 de março de 2015

O corpo e o espírito

 Georgia O'keeffe - Abstraction, blue (1927)

Um equívoco corrente sobre a vida espiritual assenta na ideia de que vida do espírito e abstracção conceptual são expressões sinónimas. A abstracção conceptual vive da desencarnação e da descorporalização da realidade. A vida do espírito, porém, ocorre na carne e no corpo, afirma-os e eleva-os. Não por acaso o cristianismo proclamou, desde muito cedo, que o corpo era o templo do Espírito Santo.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Um estranho sortilégio

Julián Momoitio Larrinaga - Ballet

Deixar o corpo elevar-se, suspender a gravidade, traçar um halo de beleza no espaço desolado do mundo. Quando as luzes se apagam e o movimento cessa,  os espíritos tornam-se corpo e o mundo acorda de um estranho sortilégio.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Tornar-se outra coisa

Werner Bischof - La bailarina Anjali Hora, Bombay, India (1951)

Uma das temáticas mais misteriosas da vida do espírito é a metanóia. Por norma, esse vocábulo de origem grega é tido como sinónimo de conversão. Conversão espiritual, uma mudança de ponto de vista sobre uma dada realidade. O exemplo mais famoso é o da conversão de Paulo de Tarso. Mas a conversão não diz respeito apenas ao espírito. Não se trata de mudar de ponto de vista, nem sequer de mudar de estilo de vida. Diz respeito a todo o ser, ao corpo, às entranhas mais recônditas, como se tudo, mas tudo mesmo, mudasse num homem e este se tornasse uma outra coisa.

domingo, 13 de abril de 2014

A luz do corpo

Imogen Cunningham - Jackie (1928)

Quantas vezes o visível não é mais do que opacidade. A nudez está longe de ser uma ostensiva exibição. Pelo contrário, ela pode ser um exercício de pudor, onde o corpo ao mostrar-se se oculta na luminosidade que dele emana. Inebriado pelo espectáculo e cego pela luz, o espectador perde o mistério que ali se manifesta.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O corpo solitário

Mario Sironi - Solidão (1925-26)

Não é na face que apreendemos a solidão. No rosto, podemos descobrir a amargura, o desespero e, acima de tudo, o ressentimento para com a vida. Mas amargura, desespero e ressentimento ainda são formas comunicacionais, ainda pressupõem um outro a quem se dirigem, seja como censura, seja como pedido de auxílio. O corpo, porém, é o lugar da solidão, onde ela se manifesta e se torna dor. A dor de não ser partilhado.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Uma metafísica do corpo

Lucien Freud - Benefits Supervisor Sleeping (1995)

A pintura de Lucien Freud é contemporânea de uma exacerbada esteticização do corpo humano, esteticização que é uma das manifestações centrais do contemporâneo culto do corpo. Muitos dos nus de Freud, mesmo aqueles que retratam pessoas cujo corpo está mais em conformidade com a norma aceite, provocam no espectador um sentimento de desconforto ou mesmo de desagrado. Esta contra-idealização do corpo - encontramo-la também, ainda que de forma bem diferenciada, em pintores anteriores como Egon Schiele - devolve-nos a uma questão central. Essa não é a que parece mais óbvia. Óbvio seria perguntar como deve ser o corpo. Qual a norma? Mas a pintura de Lucien Freud questiona a própria ideia de norma. O que emerge é uma dupla pergunta. O que é o corpo? O que significa ter um corpo? A pintura de Freud abre-nos, assim, não para uma física idealizada e normativa, mas para uma metafísica do corpo, para uma investigação sobre o mistério da encarnação.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Sobre o corpo

Umberto Boccioni - Dinamismo del cuerpo humano - Boxeador (1913)

Pela juventude ou pela velhice, pela fraqueza ou pela força, pela doença ou pela saúde, o corpo tem sido sempre um adversário temível e invencível.

domingo, 25 de agosto de 2013

O rito da dança

Marc Chagall - Dance (1962-63)

Na dança, aquilo que retém olhar não é tanto a luta contra as leis da natureza, a suspensão da gravidade, mas a sua natureza ritual. Nela realiza-se um rito nupcial, uma antecipação da união dos corpos e fusão dos espíritos. Torna-se a dança, a cada momento, um símbolo arcaico daquilo que, no mistério de Eros, surge como injunção à fusão dos corpos e à dissolução de dois seres num único. A dança é a antecâmara de um mistério que está muito para além dos limites da razão.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Corpo crepuscular

Jorge Apperley - Crepúsculo (1922)

Pelo desejo, compreendemos a natureza crepuscular do corpo. A sua luz, mesmo nas horas de maior vigor, indica sempre a incompletude, a ausência de alguma coisa que se manifesta na dinâmica desejante. O corpo nunca é dia pleno nem noite fechada. É apenas aquela luz frouxa e indecisa que parece hesitar na fronteira entre dois mundos.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Suspender a gravidade

Caspar David Friedrich - Angels in Adoration (1826)

Nas explicações do senso comum irreligioso, a religião surge muitas vezes como o produto do medo perante o desconhecido ou, no melhor dos casos, como uma resposta ingénua aos mistérios do mundo e da vida. Não se quer, desse modo, perceber a dinâmica biológica da religião. Ela é - para além de outras coisas - uma luta contra as limitações da nossa natureza biológica, um protesto contra a humilhação que o espírito do homem sente perante o peso do corpo. No acto religioso - na oração, por exemplo - manifesta-se o desejo de suspender a gravidade, como se o homem respondesse a uma solicitação das alturas.

domingo, 28 de julho de 2013

Águas estivais

Carlo Carra - Estio (1930)

No Verão, os corpos, subjugados pela densidade do calor, anseiam  a leveza do espírito. Tudo os incomoda, tornando insuportável cada passo dado no caminho. Ao mergulhar na água, porém, tudo se torna possível, como se a gravidade fosse perdoada e o corpo, agora puro e inocente espírito, se elevasse da terra e prosseguisse no caminho que ao alto da montanha conduz.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Uma lúgubre realidade

Leon Frédéric - A era do trabalhador (1895-97)

Como será possível denominar o quadro com o estranho título de A era do trabalhador? O que vemos, em primeiro plano, são mulheres e crianças e não encontramos vestígio de trabalho nem figuras que possam preencher o conceito de trabalhador. O que nos diz então este quadro sobre a era do trabalhador? Diz-nos que a actividade do homem se reduziu à sua condição natural, à pura corporalidade, à mera estratégia da sobrevivência da espécie, à preocupação com a reprodução da vida. A era do trabalhador é o tempo histórico em que o homem, despido da espiritualidade, se entrega plenamente aos afazeres da reprodução e da sobrevivência. A era do trabalhador é a confissão de uma dificuldade pela qual a espécie passa. Todas as suas forças se concentram nas dinâmicas biológicas ligadas ao corpo. A era do trabalhador, contrariamente ao que se propaga nas diversas retóricas sociais, não é a do reconhecimento da dignidade do trabalho e do trabalhador, mas o tempo em que a actividade do homem perdeu o sentido espiritual que dava dignidade tanto ao trabalho como àquele que o executava. A luminosidade do quadro de Leon Frédéric oculta, na beleza dos corpos e na esperança trazidas por novas vidas, a lúgubre realidade do homem moderno, a sua oclusão na pura corporalidade, o esquecimento daquilo que faz dele mais do que um animal.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

A atenção ao mundo

El Greco - Vista del Monte Sinaí (1570-72)

Insisto: a sede da mística não é na estratosfera, mas sobre esta "terra dos homens", mesmo se o místico tem a audácia de nela escalar os cumes mais altos. Não sonha em ir para a lua, onde não há atmosfera, mas tenta subrir sobre o Tabor, o Sinai, sobre o Meru, sobre o Kailãsa, sobre o Sumbur (Semeru), sobre o Haraberazaiti (Harbuz), etc.: isto é, os lugares terrestres onde céu e terra se encontram. (Raimon Panikkar, Mystique plénitude de Vie. p. 209)

A vida do espírito não é um acto de cobardia e de fuga ao mundo. Pelo contrário, é o modo de vida onde se exige a maior das atenções à vida na Terra, pois esta é a condição do ser humano. Atenção não significa alienação e estranhamento perante sua própria natureza de ser dotado de espírito. Significa, em primeiro lugar, compreender que também a Terra e as coisas na sua materialidade contêm, para não dizer que são, o espírito. Significa, em segundo lugar, que a vida do espírito se alicerça na materialidade do corpo humano, nos poderes e fragilidades da carne. Significa, em terceiro lugar, que qualquer ascensão espiritual implica o reconhecimento de que a materialidade corporal do ser humano está submetida à lei da gravidade.

O místico (ou espiritual) deve então ser o mais desperto dos homens para as realidades terrestres. Sem essa atenção e esse estar desperto, não há monte a que ele consiga ascender, não haverá possibilidade de trilhar o caminho que o leva ao ponto onde a Terra e o Céu se encontram, não encontrará o lugar em que Deus e o homem se tocam. O desprezo pela finitude da terra e pela fragilidade do corpo terá como contrapartida o encerramento na caverna e a prisão no corpo, como já Platão bem o sabia.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O templo do Espírito

Paul Gauguin - Y el oro de sus cuerpos (1901)

A espantosa definição paulina do corpo, como «templo do Espírito», opõe-se radicalmente aos esquemas usuais do helenismo. Herdado do pitagorismo, o famoso jogo de palavras sobre o corpo-túmulo (soma/sema) reencontra-se em Platão, impregnado duravelmente toda a mentalidade ocidental, antes e após Cristo. (Christian Belin, Le Corps Pensante - Essai sur la Méditation Chrétienne, p.118)

A visão negativa do corpo, visão tão espalhada na história do Ocidente, é, na sua essência, anticristã e claramente pagã. Mesmo quando é veiculada pela Igreja - e isso acontece muitas e muitas vezes - essa visão não deixa de ser aquilo que é e não deixa de estar em contradição com o próprio cristianismo. Não se trata, no cristianismo originário, de opor o Espírito ao corpo, mas de uma reconciliação entre ambos. A redenção do homem na cruz de Cristo, o tema central do cristianismo, é também a redenção do corpo humano, a ultrapassagem da visão negativa do corpo proveniente de doutrinas como o pitagorismo. A natureza do cristianismo não é a reactividade ao corpo ou à matéria, mas a sua revalorização e salvação. Ora isso implica que o corpo, onde se inclui a sexualidade, deva ser pensado num contexto emancipatório (o que não é sinónimo de libertino) e moderno, pois só assim a definição de Paulo de Tarso continuará, ou tornará, a fazer sentido.

sábado, 5 de maio de 2012

Da arte da dança

Giorgio Morandi - Natura Morta (1918)

A tensão entre corpo e espírito é o cerne da nossa natureza viva. O desprezo pelo corpo, a sua negação, o ódio ao que ele traz consigo são formas de morte, mas de uma morte onde o próprio espírito morre. Também a eliminação do espírito, dos seus anseios e desejos, é uma forma de solidificar o corpo, torná-lo numa verdadeira natureza morta. Dividir o ser em duas partes é já uma decisão arbitrária, mas à qual não podemos fugir, pois foi assim que o mundo e o estar nele nos foi ensinado. O importante é aprender o jogo que as partes devem uma à outra e jogá-lo. A finalidade desse jogo não é a vitória de uma parte sobre a outra, mas abolir a fronteira onde a divisão se dá. Abolir a fronteira não significa uma decisão jurídica proferida por uma instância independente ou um tratado onde as partes, mantendo-se enquanto partes separadas e distintas, deixam o viandante transitar de um território para o outro sem necessidade de passaporte e paragem na alfândega. Abolir a fronteira significa que já não há juiz que sentencie nem partes que assinem tratados, tão pouco um viandante que as percorra. Significa apenas que corpo e espírito se fundiram e nessa fusão são alimentados pela tensão. Não já a tensão inicial entre corpo e  espírito, mas a tensão que resulta agora da tendência para a separação e o desejo de aprofundar a fusão. A tensão inicial deu lugar ao jogo, e este à dança. O ser dança e não é possível dançar sem que uma tensão percorra cada célula daquele que dança, que a alimente e a impulsione no seu movimento, na sua luta contra a gravidade.

sábado, 21 de abril de 2012

A transparência dos corpos

Pierre Bonnard - Le Paradis Terrestre (1916-1920)

A ideia de um paraíso terrestre poderá ter chegado aos homens através da experiência do seu corpo, da carnalidade do seu corpo. No mito bíblico isso torna-se evidente pela transição da nudez para a necessidade sentida de ocultação dos genitais. Estamos ainda antes da sentença de expulsão proferida pelo Juiz Supremo, mas esta sentença é apenas a confirmação de algo que já tinha ocorrido: Adão e Eva já estavam fora do paraíso. O que está em jogo é a experiência da opacidade da carne. A cobertura dos genitais simboliza essa opacidade e marca a consciência de uma tensão entre a transparência e a opacidade. Por desnudado que esteja, um corpo é opaco, a luz não penetra nele. Se o ilumina, é ainda e só na sua dimensão exterior. A nudez inconsciente anterior à falta de Eva simboliza um ideal de transparência da carne. Esta apresenta-se aí como aquilo através do qual se vê. Mais do que um corpo belo e perfeito na sua materialidade, os homens sonham um corpo transparente, através do qual a luz possa fluir. A beleza e a perfeição de um corpo residiria, desse modo, nessa transparência, o que significa a invisibilidade do corpo. Belos são os corpos que se vêem como se não se vissem. O castigo divino é, em última análise, o tornar visível da carne. O fascínio que esta exerce, por isso, é ambíguo. Ela atrai para si o espírito - como acontece no desejo sexual - mas atrai-o com a promessa de se tornar transparente. O que os amantes aspiram no amor é à fusão, que não é outra coisa senão o desejo de transição do corpo opaco ao corpo transparente, a transição para a invisibilidade corporal. 

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Da dor e do espírito

Se o corpo cede, o espírito, solidário, torna-se frágil e impotente. Sob o efeito de uma virose, as dores do corpo invadem a consciência, ocupam todo o horizonte e tudo se torna nebuloso. Como pensar claro e distinto? Como afundar-se no esquecimento de si? A dor, pequena que seja, é sempre um exercício de narcisismo, um ver-se contínuo ao espelho, agora um espelho deformado que devolve uma imagem lamentável e lamentosa de si mesmo. Talvez um contínuo exercício da dor permita a alguns esquecê-la e deixar o espírito livre da submissão às desventuras da carne. Mas quão longe se teria de ir no caminho para conseguir tal independência espiritual? Talvez a dor não seja o caminho para a libertação do espírito, talvez a dor seja ainda um exercício de submissão do espírito ao império material do corpo.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Teoria da leitura

Há aquela velha polémica de Platão contra a escrita, contra os livros, contra o silêncio ostensivo com que respondem se forem interrogados sobre o que pretendem significar. O enigma, porém, está do lado de Platão e não dos livros. Por que razão terá escrito tanto? Não é verdade que os livros, no seu silêncio, não respondam. Os livros são um corpo silencioso nas mãos do leitor, e como um corpo precisam de ser tacteados lenta e suavemente, precisam de ser tocados para se abrirem e deixarem ouvir a voz reservada que trazem dentro de si. Ler é um corpo a corpo, um jogo em que as peles se tocam para os espíritos se fundirem. Há porém livros tão especiais, pelo espírito que anunciam, que o leitor se mantém na distância a que se convencionou dar o nome de respeito. Fico sempre perplexo quando vejo alguém excessivamente jovem com certos livros na mão. A profundidade de algumas obras não se compadece com os verdes anos. O respeito, contudo, não é sintoma de ausência de desejo, de falta de vontade de abrir o livro, de o tactear, de deixar correr o corpo que lê pelas páginas que se dão à leitura. O respeito é apenas o sinal de reverência pelo mistério que se pressagia, o sintoma do apreço pela luz que emana do espírito que o corpo do livro suporta. Talvez o respeito esteja ligado ao kairos, esse tempo oportuno que desce do espírito e toca os corpos, que vem do céu para iluminar a terra. O mundo vive um singular paradoxo relativamente à leitura. Ler tornou-se um imperativo generalizado, um indicador de desenvolvimento, um programa de acção. Mas a relação entre leitor e livro não é da ordem da moral, nem da economia ou da política. É uma relação presidida por esse estranho deus a que os gregos deram o nome de eros. O culto do deus – um deus impetuoso e intempestivo – exige essa especial reverência com que um corpo se deve abrir a outro, com que um espírito se funde noutro, com que um leitor se entrega nas mãos de um livro, com que certos livros se abrem para a leitura.