quinta-feira, 16 de maio de 2024

A memória do ar (30)

Nikolay Dubovskoy, Calm, 1890

Quando, cansado de deambular pela vastidão da Terra, o vento abandona os seus trabalhos, o ar permanece fiel ao desejo imemorial de imobilidade. Tudo se suspende, as águas do rio, a viagem das nuvens, a inquietação da noite, o pulsar da morte na fímbria do coração. 

terça-feira, 14 de maio de 2024

Geometrias de fogo (30)

Paula Rego, Contos populares portugueses, 1975 (Gulbenkian)

Há no fogo uma beleza rude, o exercício de um fascínio arcaico, a promessa de uma grande espectáculo. As labaredas dançam e o espírito deixa-se contaminar pela variação e mudança que elas, como um velho dragão, sopram sobre o mundo. Tudo muda, pensa-se, enquanto o fogo permanece firme na sua impermanência.

domingo, 12 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (7)

Camille Corot, View of Marino in the Alban Mountains in the Early Morning, 1826 – 1827

Um hálito de lume na cidade

desce sobre o rio, sobre os jardins

tocados pelo sopro do crepúsculo.

Desce sobre o tempo da memória.

 

Fogos de Primavera ardem céleres

nos recantos da noite, nos lugares

onde os corpos dançam no orvalho

trazido pelos braços da incúria.

 

Desenho no papel um fogo mortal,

os jardins inflamados da cidade,

corações desprezados, sem morada.

 

Esquecido do nome, vou na noite

e danço no orvalho incendiado

pelo fogo fremente da aurora.

 

Maio de 2024


sexta-feira, 10 de maio de 2024

Haikai do Viandante (436)

Otto Scharf, Waldbach, 1902

Água rasga a terra.

Promessas de luz e sombra

soltam-se no rio.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

A sombra da água (30)

Albrecht Dürer, Study of water, sky and pine trees, 1495-6

Era uma água tornada sombra, animal que se metamorfoseia para se confundir com o ambiente. Esconde-se para evitar os monstros do dia e ser esquecida pelos fantasmas da noite. Água perdida na errância, esquecida do caminho que da terra leva ao oceano.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

O Espírito da Terra (30)

Dórdio Guimarães, Paisagem alentejana (Évora), 1941

Uma paisagem iluminada pelo sol. No diverso das cores, manifesta-se uma sabedoria arcaica, aquela que, sob o império do espírito , determina o lugar das coisas, o espaço dos animais, as possibilidades dos homens sobre a Terra.

sábado, 4 de maio de 2024

Sonetos de Primavera (6)

Júlio Resende, sem título, 1952

Remota Primavera dança dentro

dos meus olhos cerrados, no ardor

daqueles dias sem nome e nas noites

tocadas pelo vento cru do sangue.

 

Entardece o esplendor daquelas horas

varado pela espada da cegueira.

Uma sombra trespassa o coração.

As palavras refluem no silêncio.

 

Danço na noite pálida do sangue

e ergo a Primavera na fogueira

dum jogo de palavras sem pudor.

 

Levanta-se a espada dessas horas.

Trespassado e vil, o corpo cai

sem amparo na fenda fria da noite.

 

Abril de 2024


quinta-feira, 2 de maio de 2024

Signo sinal 17. Fim do mundo

Juan José Aquerreta, Amor en el fin del mundo, 1991
Pode-se pensar em palavras monstruosas ou em impulsos tresloucados provenientes de um coágulo sanguíneo. Pode-se meditar na força da gravidade e no seu poder de esmagamento ou na violência idiomática da guerra. Aí haverá sempre o signo do fim do mundo, desse evento que rasgará o silêncio das planícies e aniquilará a saliência das montanhas. Se do amor houver sinal, então um outro mundo começa a despontar com um manto de auroras e a promessa de cascatas caindo para o lago do futuro.