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domingo, 16 de novembro de 2025

Meditação breve (208) Uma perda

Rodney Smith, Gary Descending Stairs, 1995
Perdemos a sabedoria das metamorfoses, a velha ciência que nos permitia a transformação numa outra coisa. Quem ainda sabe fazer de si uma sombra que passa? Os dias tornaram-se difíceis para as aprendizagens decisivas. Quando nos queremos sombra de nós mesmos, apenas ficamos esse nós que sempre fomos, sem poder sequer para ensombrecer.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Meditação breve (207) O secreto talento

Adolph Miethe, Dreifarbenaufnahme: nach der natur, 1903

A natureza desdobra-se em pequenos presentes, que os homens recebem sem pensar no incansável trabalho da terra. O que é belo parece emanar da facilidade, quando, na verdade, como o escreveu um velho filósofo grego, o que é belo é difícil. E é neste mostrar como fácil aquilo que é, na sua essência, difícil, que reside o secreto talento da natureza. 

domingo, 13 de julho de 2025

Meditação breve (206) Cantar

Constant Puyo, Chant Sacré, 1899

Não é porque tenha por motivo o sagrado que um canto se torna sagrado. É o próprio acto de cantar que é em si mesmo sagrado. Eleva a voz para uma realidade que transcende o uso quotidiano, o qual, sujeito aos imperativos do hábito, tornou a fala numa manifestação da queda dos homens no reino da trivialidade.

sábado, 31 de maio de 2025

Meditação breve (205) Acusação

Dorothea Lange, The Defendant, Alameda County Courthouse, California, 1957

Toda a acusação contém em si um peso que recai sobre o acusado. Esse peso varia na proporção inversa ao grau de culpa.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Meditação breve (204) O corpo nu

Robert Mapplethorpe, Patti Smith, 1976
Ao despir-se, a mulher oculta toda a sua nudez. Esta não nasce da exposição do corpo ao olhar, mas da fantasia que, na obscuridade do resguardo, ateia o fogo na visão de quem a deseja.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Meditação breve (203) O tempo da indiferenciação

Robert Doisneau, Cour Carrée du Louvre, 1969

O segredo da infância reside na indiferenciação. Nesse tempo, ainda as múltiplas distinções estão longe de ser claras, apesar de família e escola as declinarem com energia e rigor. A criança resiste e, num animal, vê ainda um irmão - um igual que lhe permite sonhar com a eternidade de um mundo a que, em breve, será posto um fim irrevogável.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Meditação breve (202) Os que partem

Umberto Boccioni, Drawing after "States of Mind: Those Who Go", 1912

Aqueles que partem arrancam as raízes que os prendem ao lugar e, libertos da terra, entregam-se, no silêncio da perplexidade, à aventura de ir mais além, de descobrir caminhos por eles nunca pensados, de esquecer o zelo do sedentário pela vigilância do nómada. Partem, trocando a alma do lugar pelo espírito da viagem.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Meditação breve (201) Suspender o tempo

Rolando Sá Nogueira, sem título, 1959 (Gulbenkian)

Suspender o tempo e fixar o instante não é um prenúncio de eternidade, mas a destruição da narrativa. Se vemos um homem e uma mulher num banco de jardim, podemos descrever essa imagem, mas jamais saberemos se se estão a aproximar ou a afastar. É imperioso o retorno do tempo para que a narrativa encontre o que contar e revele o mistério que toda a imagem oculta.

domingo, 17 de novembro de 2024

Meditação breve (200) Floresta humana

Ana Hatherly, sem título, 1972 (Gulbenkian)

Olhamos e não sabemos o que vemos. Uma floresta? Uma multidão? O afastamento das coisas torna a sua imagem imprecisa e as nossas representações desadequadas. Talvez, vista do espaço sideral, seja uma floresta de homens, uma multidão petrificada, presa aos seus corpos vegetais, que começam a florir e haverão de frutificar quando chegar a hora.

sábado, 12 de outubro de 2024

Meditação breve (199) O saber do fogo

Carlos Calvet, sem título, 1967 (Gulbenkian)

É um saber selvagem o que nasce de olhar o fogo, uma ciência incendiária que se propaga como uma epidemia ou certos erros que tomam o freio nos dentes e reduzem a linguagem a cinzas. Só aquele que domina as artes do fogo tem poder para domar a sua ciência, reduzi-la fórmulas práticas de onde nasce todo o artifício que há no frágil coração de uma labareda.

sábado, 14 de setembro de 2024

Meditação breve (198) Aldeia

Francis Smith, Largo de aldeia (Petite place au Portugal), 1954 (Gulbenkian)

A doce fantasia de ver nas velhas aldeias locais de uma vida boa. Na aparente inocência de casas e pessoas, escondem-se os segredos mais terríveis, um exercício contínuo de vigilância mútua, o fogo aceso da inveja que nunca se extinguirá, uma mão sempre pronta para o crime.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Meditação breve (197) Realidade

Rui Filipe, Baixa-mar, 1973 (Gulbenkian)

A realidade de uma coisa diminui à medida que dela nos afastamos, torna-se difusa até desaparece do horizonte. Este é um pensamento trazido pelo hábito. Contudo, há uma outra experiência. Quanto mais nos aproximamos de uma coisa, menos a vemos. Podemos pensar então que a realidade de uma coisa aumenta conforme nos afastamos dela e, quando essa coisa desaparece do nosso horizonte e se torna em nada, devemos aceitar que é nesse nada que reside a sua realidade.

sábado, 29 de junho de 2024

Meditação breve (196) Mão

Henry Moore, The Artist's Hand III, 1973 (Gulbenkian)

A mão ainda não é o gesto, mas um começo, o sinal de uma promessa, o marco de uma esperança. Com ela, libertamo-nos da subjugação aos elementos da natureza e tornamo-nos os cuidadores do jardim, os que criam a expectativa de uma ordem na desordem espontânea de tudo o que é. Com ela, também trazemos a ameaça de apropriação daquilo que não é propriedade de ninguém e o anúncio de um caos mais terrível do que a espontânea desordem original, pois onde habita a promessa também dorme o desacordo e onde vive a esperança também se esconde o desespero.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Meditação breve (195) Esperança

Querubim Lapa, sem título, 1948 (Gulbenkian)

Quando a vida comum é tocada pela ausência de sentido, a expectativa do homem eleva-se da dureza da terra à imponderabilidade dos céus. Se se olha para cima, espera-se o auxílio e, com ele, o sentido que ajuda a viver no mundo que o perdeu. A esse movimento que transporta o olhar de baixo para cima deu-se, desde sempre e declinado em infinitas línguas, o nome de esperança.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Meditação breve (194) Ler e escutar

Manuel Filipe, Leitura clandestina / Audição clandestina, 1945 (Gulbenkian)

Toda a autêntica leitura terá um traço de clandestinidade, pois ler é ir para além da letra e procurar sem descanso, em morada abscôndita, o espírito que por ela fala. Ler é quebrar as regras do explícito e mergulhar no oceano do implícito, inventar-lhe sintaxes e semânticas que toquem aqueles que, oculto no segredo, escutam.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Meditação breve (193) Paisagem

João Navarro Hogan, Paisagem, 1939 (Gulbenkian)

Quando se ouve a palavra paisagem, um obscuro instinto leva-nos a imaginar espaços abertos e luminosos, onde a vida se desenrola num exercício de equilíbrio a que chamamos harmonia. Nesse hábito, esconde-se o desejo de que a vida seja assim, luminosa e aberta como bela paisagem campestre, mesmo que a luz, por intensa, oculte a obscuridade que ali habita. 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Meditação breve (192) Vibrações

Rafael Barradas, Paisaje vibracionista, 1918

A serenidade dos lugares, o calmo repouso que certas paisagens oferecem aos olhos mais incautos, o murmurante silêncio que se desprende da terra, tudo aquilo que sossega o pensamento e aquieta o coração emana de um intenso vibrar da natureza, da sua íntima inquietação que se transforma, à luz clara do dia, numa estância de aprazível tranquilidade.

domingo, 27 de agosto de 2023

Meditação breve (191) Uma sombra delida

Joaquín Torres García, Carnaval, 1897-98

Não há procissão de Ménades, nem estas se entregam ao culto do deus, mas o Carnaval ainda contém uma reminiscência dionisíaca, agora submetida ao cálculo do prazer, sem o rumor do sagrado nem traço de função cívica. Uma tão delida sombra nem chega a despertar o sobressalto de Apolo.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Meditação Breve (190) Assuntos domésticos

Max Ernst, El ángel doméstico, 1937

Ter-se-ão zangado os anjos domésticos, agora que desapareceram as fadas do lar, de quem cuidavam e a quem inspiravam os infinitos cuidados que elas, submersas na solidez férrea da sua função, prodigalizavam à casa e aos seus habitantes. Desempregados, esses anjos benevolentes deixaram-se tomar pela cólera e aspiram que a velha ordem seja trazida de volta e com ela as doces fadas com que pessoas desavisadas sonham noite dentro.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Meditação Breve (189) A imaginação

Raphael Colin, At the Edge of the Sea, 1892

A imaginação é como o fluxo das águas do mar. Vem e vai, comandada por um ritmo secreto, cuja lei inexorável ninguém conhece. Onde apenas existe água e areia, ela descobre corpos tomados pela beleza, transbordantes de ritmo, incendiados pelo desejo de quem os fantasia, prontos para se deixarem possuir pela arte do seu criador.