sábado, 29 de fevereiro de 2020

Haikai do Viandante (388)

Cecil Beaton, Audrey Hepburn in the costumes for movie “My Fair Lady”, 1963
Uma fantasia
traz sonhos nunca sonhados.
Da noite faz dia.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Gatos velhos

James Van Der Zee, Smart Cat, 1931
Não foi tão difícil quanto pode pensar. Também me surpreendi, mas só uma crença ingénua na uniformidade da natureza pode achar acontecimentos destes um milagre. Não são, pois muitos são os caminhos que as coisas podem tomar. Formei o projecto dois meses depois de terem chegado cá a casa. Quando estava a ler, eles ficavam a olhar para mim, não miavam nem me interrompiam. Um dia tentei ensinar-lhes o alfabeto. O difícil foi descobrir o método. Descoberto este, facilmente aprenderam a ler. É o que vê, preferem policiais e clássicos ingleses da época vitoriana. A poesia não os tenta e dispensam o ensaio. Os óculos? Sem eles já não distinguem as letras. Os gatos também envelhecem.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente - 11

Francisco Arjona, Composición III, 1984

Uma sombra
de água
arde-te no âmbar
das mãos.

O fruto do Inverno
desce ao sol
a encosta
madura da manhã.

Tudo se exalta
na recordação
do rumor
do desejo.

Janeiro de 2020

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Histórias sem nexo 3. O arqueólogo

Pablo Picasso, Still Life with Fish, 1940
O arqueólogo atirou o arpão. O peixe arfava enquanto era arrastado pela areia. Ar, ar, articulava o animal, enquanto o arqueólogo ardia como um arlequim, na alvura da alba, na aguardente apurada no alambique.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A mulher de sonho

Vicente Vela, Bodegón del ensueño, 1991
Quer que lhe fale da minha mulher. Será relevante para a terapia, presumo. Nunca a compreendi e nunca soube por que casei com ela. Talvez quisesse fechar esse assunto. Ela vivia nos seus sonhos. Não estou a ser alusivo. A vida de cada dia era o prolongamento do sonho que tivera durante a noite. Havia épocas de grande monotonia, pois todas as noites ela tinha o mesmo sonho. Tanto quanto percebi, pelo seu comportamento em estado de vigília, os sonhos tinham uma lógica incompreensível. Ignoro por que não enlouqueci. O que lhe aconteceu? Uma tarde, depois de almoço, disse vou dormir um pouco. Entrou então num dos seus sonhos mais recorrentes e desapareceu. Não a voltei a ver.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Diálogos morais 33. Loucos

Imogen Cunningham, Cemetery in France, 1961
- Estou a enlouquecer, ao vir aqui.
- Também eu.
- Não. Tu estás morta e os mortos não enlouquecem.
- Não?
- Os vivos, sim. Começam a falar com os mortos.
- E isso é sinal de loucura?
- Sim, os mortos não existem.
- Então também eu enlouqueci.
- Não é possível, estás morta.
- Estou, mas falo com um vivo e aqui os vivos não existem.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Haikai do Viandante (387)

Artur Pastor, Oceano Atlântico, sem data

Ondas vão e vêm,
rumorejam sal e espuma,
água e mistério.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente - 10

Charles Marq, A un poète, 1984

Sem pássaros
para alumiar,
a Lua sulca
o silvo do silêncio.

Poisa luminosa
na resina
do fogo,
no ardor da tília.

Ouve-se no ranger  
do ramo
o tremor
do tear do tempo.

Janeiro de 2020

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Impressões 48. Os derrelictos

Sergio Larrain, Pisac, Peru, 1960
Como Cristo na cruz, também eles foram abandonados. Estão por ali, perdidos sem saberem o que se esconde para além da linha do horizonte. Como fantasmas, vão e vêm, mas na verdade nunca saem do mesmo lugar, do mesmo silêncio, da mesma hora que lhes marca o rosto com o estigma do esquecimento.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Diálogos morais 32. Anjos

Ilse Bing, Chairs with Leaves, Luxembourg Gardens, Paris, 1952
- A cadeira está vazia, podes sentar-te.
- Vazia? Não me parece.
- Ninguém a ocupa.
- Estás enganada.
- Enganada? Só vejo folhas mortas.
- São anjos cansados.
- Não brinques, anjos disfarçados de folhas? 
- Sim, fazem-se de mortos.
- Para quê?
- Para não caírem em tentação.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Haikai do Viandante (386)

Hiroshi Hamaya, Cherrytrees in bloom. Hozukyo, Kyoto, 1979
O silêncio fala
nas cerejeiras em flor.
Um fruto por vir.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Histórias sem nexo 2. O oboísta

Pablo Picasso, Cabeza de hombre, 1909

Sob a oliveira ordenada a ocidente, o oboísta orou. Olhou o horizonte, compôs os óculos e esperou que o obituário sem horror lhe anunciasse o óbito. Morreu ao som do oboé.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente - 9

Gerardo Rueda, Encuentro, 1967

Falemos do caos
ou das carpas
mortas
na margem do rio.

Falemos da noite
ou das nuvens
esquecidas
na planície do céu.

Falemos do vazio
ou do vento
fatigado
no silêncio do coração.

Janeiro de 2020

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Micronarrativa (30) Perda

Constantine Manos, The Boston Symphony Orchestra. Boston, Massachusetts, 1958
Subitamente, ela voltou-se e os meus olhos foram tomados por uma sombra que ainda hoje me atormenta. O seu corpo, o seu rosto, os seus olhos, tudo o que ela era dançou diante de mim e, num turbilhão, foi-se dissolvendo até nada restar. Perdi o grande amor da minha vida na hora em que o encontrei.