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terça-feira, 27 de outubro de 2015

Entre mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

Estar entre dois mundos não é um acidente no percurso do viandante. Viver na fronteira, nesse território equívoco, é a natureza da própria viagem espiritual. De um lado, o mundo que se abandona; do outro, o mundo que espera. E onde é que é essa fronteira? Em todo o lado a que o viandante chegue. Sobre a terra, a fronteira, esse entre mundos, é o único território disponível para o homem, saiba-o ele ou não.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Algum lugar

Juan José Aquerreta - Algún lugar (1991)

Quando dizemos "algum lugar" não estamos conscientes do papel que, ao nível existencial, a indefinição introduz. O viandante parte sempre deste lugar, de um lugar de fronteiras claras e definidas, de um território geograficamente constituído. A viagem é, ao contrário, um processo de continua indefinição dos lugares, de desterritorialização. A indefinição, todavia, não é o fim último que orienta o viandante. Ela é apenas uma mediação, na qual a fixidez da existência perde os seus contornos e começa a abrir-se. Abrir-se para quê? Para o lado nenhum, para o nenhures, para a ausência de território, de fronteiras e de determinações. A viagem leva o homem do determinado para a mais pura indeterminação.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Sem porta nem janelas

Juan Rulfo - Barda tirada en un campo verde

Muros, linhas divisórias, estremas, fronteiras, um exercício continuado de territorialidade, um jogo de exclusão e inclusão, uma campanha sem fim contra o medo. Mas não é na máxima segurança que está a autêntica insegurança? Não é ali, onde tudo está fechado, que o vento não corre? Enquanto o espírito viver murado e preso a fronteiras não escutará a voz que por ele chama. Surdo e errante julgará que a vida só será possível na oclusão e no fechamento de si.  Pobre mónade, sem porta nem janelas.

sábado, 18 de outubro de 2014

Derrubar o muro

JCM - Distopia (The Wall) (2007)

O pior na viagem são os muros. Não são apenas divisórias, linhas de fronteira e de fractura de territórios. São formas de oclusão, de fechamento, de incapacidade de perceber os outros. E quem não é capaz de ouvir os outros será capaz de ouvir esse totalmente Outro que fala para lá de todos os muros? Será capaz de discernir o seu chamamento? A viagem é também um derrubar de muros, uma purificação do espaço, um refazer de geografias. Para quê? Para que possamos escutar o outro e na voz desse outro escutar a voz que chama dentro de mim.

domingo, 22 de junho de 2014

Sem bagagem

Irving Penn - Vogue Luggage, New York (1948)

Não, a viagem do viandante não exige que ele venha carregado. Na verdade, ele chega ao caminho despido de tudo. Sem nada, faz-se à estrada. Quando começa a acumular objectos a transportar, começa a errância e o destino que o espera oculta-se-lhe. O caminho do viandante é a lenta aprendizagem da inutilidade de toda e qualquer bagagem. Tudo o que precisa está dentro de si. O resto ser-lhe-á propiciado. Na fronteira, só uma coisa a declarar: sem bagagem.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Na orla do bosque

Camille Pissarro - Lisière d'un bois (1879)

Estar na orla do bosque é permanecer na fronteira, nessa linha imaginária que separa dois mundos. Ali o viandante hesita, talvez tomado pelo pânico, talvez forçado pela tradição do cálculo. O que ganha e o que perde? O medo ou a interrogação retêm-no nesse lugar ensombrado. Terão mais força os velhos hábitos ou a voz que o chama conduzirá o seu desejo? É na fronteira, nesse espaço irreal, que os homens, indecisos, acabam por dissipar o tempo. Fugir ou adentrar-se no obscuro território que está para além da raia, eis o dilema onde a vida se dissolve.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

No porto de abrigo

Jean Édouard Vuillard - O porto de Honfleur (1919)

Não há para o viandante porto que seja o fim da viagem. Por mais que deseje recolher a terra firme e aí estabelecer o seu domínio, o viandante deve, após breves instantes de descanso em abrigo seguro, voltar a zarpar. Não lhe cabe instituir fronteiras nem fundar um reino. Fronteiras são irrisão e o reino a que pertence não é deste mundo.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Direitos alfandegários

Paul Signac - Sobre Saint-Tropez, o caminho da Alfândega (1905)

Também nesta viagem terás de pagar direitos alfandegários? Também tu, perguntaram-me, trazes mercadoria para vender. Não, respondi, nada tenho para vender. Por cada passo que dou, porém, tenho de pagar esses direitos, pois uma nova fronteira fica para trás e uma nova pátria espera por mim. Pago o peso dos meus passos, a lentidão com que caminho, cada engano que me faz oscilar na rota. Pago para deixar de ser o que fui e, em cada nova claridade, tornar-me no que efectivamente sou.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Corpo crepuscular

Jorge Apperley - Crepúsculo (1922)

Pelo desejo, compreendemos a natureza crepuscular do corpo. A sua luz, mesmo nas horas de maior vigor, indica sempre a incompletude, a ausência de alguma coisa que se manifesta na dinâmica desejante. O corpo nunca é dia pleno nem noite fechada. É apenas aquela luz frouxa e indecisa que parece hesitar na fronteira entre dois mundos.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

O guarda fronteiriço

O que resiste dentro de mim a um abandono ao que a Providência me enviar? Talvez um medo, o pavor do desconhecido, o terror de me perder. Se estou perdido, não o estou ainda suficientemente para não ter medo de me perder ainda mais numa noite da qual não diviso os contornos. Sim, é sempre possível dizer que a exterioridade impede o caminho para os decretos da Providência, mas haverá de facto uma cisão entre interior e exterior, entre aquilo que digo pertencer-me e o que está para além do círculo que julgo ser a minha pessoa? Enquanto houver um interior e um exterior, terei sempre o meu lugar assegurado. E que lugar será esse? O de guarda fronteiriço. Este administra o trânsito entre os dois lugares e toda a sua existência está fundada no serviço que assim presta. Mas se não houver fronteira, não haverá um dentro e um fora, nem guarda fronteiriço. Mas se eu não sou o guarda fronteiriço, o que serei? O que farei se a fronteira for abolida? Nela ainda encontro um lugar para descansar dos caminhos em que me perco; sem ela tudo se torna indiferenciado e não me resta mais do que me abandonar à sorte que me for enviada. A fronteira é a esperança do guarda fronteiriço perante o terror de se perder.