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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O reconhecimento

Maurice Denis - Os peregrinos de Emaús (1895)

O episódio dos discípulos de Emaús (Lucas 24:13-34) onde se narra a aparição de Cristo ressuscitado a dois discípulos é marcado por dois momentos ligados ao reconhecimento. O primeiro é o da ausência do reconhecimento, a incapacidade demonstrada em atentar na identidade do outro que segue caminho com eles. O segundo momento é o do reconhecimento dessa identidade. Esse reconhecimento, porém, não se dá numa situação trivial, como a conversação doutrinal da viagem, a qual se mostrou incapaz de gerar o reconhecimento, mas no momento em que é mobilizado um símbolo, a fracção e bênção do pão. 

É o símbolo que desencadeia o processo de reconhecimento, o que torna manifesto que todo o reconhecimento do outro, de qualquer outro, implica a suspensão da trivialidade e a mobilização de uma dimensão simbólica onde esse outro ganha sentido e valor. O paradoxal no texto é que o reconhecimento conduziu, de imediato, ao desaparecimento de Cristo. Reconhecer o outro não significa, então, prendê-lo numa esfera significativa, circunscrevê-lo em conceitos. Isso significaria reduzi-lo à trivialidade que se liga à significação usada na vida quotidiana. O outro, seja o Cristo ou o homem comum, pertence a uma dimensão simbólica e só esta permite conjugar o reconhecimento desse outro com o mistério, nunca desvendável, que o constitui.

terça-feira, 1 de março de 2016

Memória e identidade

Fernand Khnopff - Memórias (1889)

A memória, na tradição platónica, tem um papel central na vida espiritual. O que se joga nesta é uma reminiscência a activar sobre sobre o mundo verdadeiro que, antes de entrar no corpo, a alma teria contemplado. Esta relevância da memória faz-se sobre um processo de aniquilação das memórias sensíveis que a vida quotidiana deixa em nós. As memórias temporais são um obstáculo à vida do espírito, como a história do destino da mulher de Lot ensina numa outra tradição. Esta destruição da memória sensível significa, porém, um desfazer da identidade construída, como se a vida espiritual não fosse mais do que um caminho entre essa identidade construída e uma enigmática identidade originária recebida.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Bóia de salvação

JCM - Raiz e Utopia (bóia de salvação) (2014)

Talvez a aprendizagem mais difícil a fazer seja a de que não há bóia de salvação que permita ao homem salvar aquilo que ele anseia salvar. E esta inexistência não se deve à avareza da natureza ou a um particular descuido da divindade. Não há porque aquilo que o homem sonha salvar é nada, uma inexistência, a quimera a que, em desespero, se agarra.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A longa marcha

Antoni Guansé Brea - La longue marche (1983)

Só quem empreendeu a longa marcha poderá descobrir que ela não conduz a sítio algum. Quem nunca saiu de onde está jamais saberá que esse é o seu lugar. Empreender a longa marcha para se chegar onde se está e tornar-se naquilo se é.

terça-feira, 27 de março de 2012

Do desprezo de si e do ódio à vida (II)


No texto anterior, um comentário a Jo 12,25, acabou-se por contrastar duas traduções do mesmo versículo. A questão que ressaltava era se o caminho para a eternidade seria a do desprezo de si, o desprezo de uma identidade tida como ilusória, ou se o ódio à vida, uma vida da qual não somos autores. A identidade empírica, à qual damos tanta importância na vida quotidiana, pode ser não levada em consideração, pois considerá-la seria solidificar aquilo que é um mero construto, um artefacto ou um dispositivo de produção de uma subjectividade. Como todos os dispositivos, artefactos ou construtos, a subjectividade - a identidade do ego - é perecível. Ela só pode existir no espaço e no tempo, e neles deve perecer. Entrar na vida eterna - nesse além do espaço e do tempo - exige assim que o si (self) se dispa de si (ego), enquanto este si for a máscara construída de uma subjectividade mundana.

A outra tradução, a qual dissemos ser complementar da primeira, é de exegese mais difícil. O caminho para a eternidade passa não pelo desprezo de si mas pelo ódio à sua vida.  Devemos odiar a vida que nos foi dada, a vida biológica, a qual inclui a vida social, para entrarmos na eternidade. O problema centra-se na interpretação do termo ódio. Este deve ser interpretado no seio do par amor - ódio. Se se considerar este par como constituído por dois contrários, então o ódio não pode ser uma via de acesso à eternidade. Se, porém, for interpretado no âmbito da filosofia cristã, o ódio não passa de um amor diminuído, de um amor no grau mais baixo da escala amorosa. Odiar a sua vida não significa o contrário do amor, mas de um não considerá-la, não tê-la em atenção, um não ocupar-se dela, para se ocupar com aquilo que da eternidade chama por nós, que apela ao caminho do viandante, à peregrinação do peregrino.


domingo, 25 de março de 2012

Do desprezo de si e do ódio à vida


Santo Agostinho

Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna (Jo 12,25).

Este versículo do Evangelho de João é composto por dois pares de contrários. O amor de si e o desprezo de si, por um lado; este mundo e a vida eterna, por outro. Esta tradução sublinha, através do si (self) uma conexão com a questão da identidade. Poder-se-ia entender a identidade como uma construção social, uma máscara com que nos apresentamos no mundo, nesse espaço-tempo - um verdadeiro cenário - onde representamos um conjunto de papéis. A palavra de João diria, então, que aquele que se confunde com a sua máscara social fica preso no espaço e no tempo e não acede aquilo que está para lá de todo o espaço e de todo o tempo, a eternidade.

A questão, porém, toma outra coloração se escolhermos outra tradução:

Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guarda-la-á para a vida eterna (Jo 12,25).

Esta tradução acentua não o foco identitário e social mas a dimensão biológica. Mas esta dimensão biológica é apenas o primeiro momento. Amar a vida biológica - talvez por extensão a vida social - acabará por a perder, coisa que acontece a todas as vidas no sentido biológico. Mas o ódio, no espaço e no tempo mundanos, a essa mesma vida limitada (a do bios e a do socius) é o princípio de uma transmutação da própria vida que lhe permite tornar-se eterna, isto é, deixar de ser uma mera vida biológica ou mesmo social.

As duas traduções acabam por salientar aspectos diferentes, embora complementares, do caminho para a eternidade. Mas para o leitor que não domina a língua original e o ambiente semântico onde foi produzido o Evangelho de João aquilo que se torna mais problemático está noutro lado. Desprezo de si ou ódio à sua vida? Qual é o caminho para a eternidade? Uma coisa é o desprezo de uma identidade falsa e ilusória. Outra, o ódio a uma vida da qual não somos autores. [Retomar-se-á esta questão numa das próximas postagens.]