Fernando Calhau, sem título #80, 2000 (Gulbenkian) |
Tinta sobre tinta,
desespero de cinzentos,
entre branco e preto.
Lucas Van Valckenborch, Animals Grazing beneath Trees, 1573 |
Sigo
pela vereda junto ao rio,
os
campos do Inverno se despedem.
Viandantes
sem nome, extasiados,
olham
o despertar da natureza.
A
vida rude anima o turbilhão
das
águas que procuram o caminho.
Depois
dos rios, um mar as aguarda.
Levam
a voz dos campos, luz e cal.
Olho
o longo adeus, oiço calado
o
rufar dos tambores na voz quente
dos
pássaros do Sul, junto ao rio.
A
súbita memória do Verão
incendeia
de luz rios e campos,
um
fogo de água arde frio no mar.
Abril de 2024
Léon Kossoff, Red Brick School Building, Willesden, Spring, 1981 |
A
luz da tarde abre o horizonte,
a
cidade cintila crua e sôfrega
tecida
no azul dum céu de cristal,
nascida
no espelho da memória.
Ao
longe, as muralhas do castelo,
mais
perto, o rumor vivo do rio.
As
pessoas caminham em silêncio,
presas
na sombra pálida do dia.
Sigo
as labaredas da memória,
inscrevo
no cristal o céu azul
roubado
ao espelho da infância.
Solícita,
a cidade feita sombra
chama-me
no rumor rude do rio,
fala-me
no silêncio de quem passa.
Abril de 2024
Paula Modersohn-Becker, Man lying beneath a Blossoming Tree, 1903 |
Veio Abril, o mês da vã promessa,
o
tempo onde o sol e a fria chuva
se
encontram nos olhos extasiados
de
quem vai pelos campos, solitário.
Um
ardor nupcial fulge na terra.
Cintilações
e fogos de artifício
fendem
as sombras ávidas da noite,
são
cânticos de pássaros nos céus.
Pelos
campos caminho solitário,
guardo
a promessa nos meus olhos
abertos
para o êxtase de Abril.
No
fogo desta noite rasgo as sombras.
O
que estava morto ressuscita
na
voz núbil dos pássaros que cantam.
Abril de 2024
Manuel Filipe, Inverno-Primavera (Homenagem à Sagração da Primavera de Igor Stravinski, 1978 (Gulbenkian) |
de promessas eternas, um engano
que a todos encanta e abre à
vida.
Veio plena de luz e
sortilégios.
Crescem os dias, as noites
silenciam
os antigos terrores, todos
dançam
uma dança arcaica, rodopiam
sem parar na poeira fria do
tempo.
Vamos pela floresta do engano,
caminhamos na luz branca da vida,
presos aos sortilégios prometidos.
O silêncio da noite é um
bálsamo,
traz o esquecimento da poeira
onde o tempo germina a fria
morte.
Março de 2024
Mário de Oliveira, Lucalena de las Torres, 1967 (Gulbenkian) |
a palavra e
a revolta de Inverno.
As estrelas
rodopiam ao vento,
astros mudos
no silêncio da sombra
Apressado,
veio Março tomado
pelo canto
dos antigos profetas.
Folhas
mortas, castas, caem das árvores,
sussurrando sortilégios
e espantos.
Pelas frias
avenidas de Inverno,
do silêncio
soletrado virão
inocentes as
palavras de sal.
Auspícios
descem de bocas caladas.
Os profetas
são agora estátuas
nos jardins onde
os mortos se calam.
Março de 2024
José Dominguez Alvarez, sem título (Aspecto de rua com figuras) (Gulbenkian) |
A tristeza
destes dias de frio,
sob um sol
sem o motim do Verão.
Nostalgia
dos murmúrios da infância,
desventura
duma vida exígua.
Devoradas
pelo tempo, as horas
rodopiam
perturbadas sem parar.
Turbilhão
feito de ócio e dor,
a penumbra
dum sonoro segredo.
A infância
deambula nos dedos
com que
colho a nostalgia da vida,
tão exígua
na ventura que houve.
Eis o
vórtice onde tudo se perde,
turbilhão,
dor infinita das horas,
onde canto
em secreto silêncio.
Fevereiro de
2024
Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912 |
A paisagem
assombrada da tarde,
vendaval
vindo no voo do vento,
as mulheres
de cabelos revoltos,
os cavalos
delicados da noite.
Vou, de
Inverno em Inverno, sombrio,
faço luz na
escuridão da caverna,
onde oiço o
ecoar da memória
afogada no
silêncio do tempo.
Cavaleiro
sem cavalo na noite.
É a hora de
rasgar o caminho
na paisagem fria
e negra de névoa.
Sou o eco
que rasura a memória.
Sou a luz
branca da escura caverna.
Sou o tempo
e a sombra de Inverno.
José Dominguez Alvarez, Paisagem de Montanha (Gulbenkian) |
Sombras nos caminhos
são símbolos na montanha.
Sangue de Outono.
Rockwell Kent, Admiralty Inlet, 1922 |
A camisa
desgastada de Invernos
é um trapo
enrolado nas mãos,
é o corpo
pelo tempo rasgado,
uma mancha
que declina sem luz.
Revestido de
matéria efémera,
o espírito
balança ao relento.
Vai e vem,
preso ao fulgor do que passa,
tão perdido
no delíquio dos dias.
Atormentam-me
as sombras esquivas
declinadas
pela luz deste Inverno,
a camisa
corrompida do corpo.
Se o sol resplandece
nas montanhas,
o espírito
encontra o caminho
para a casa
que ao longe o espera.
Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895 |
folhas
mortas dum Inverno sem luz.
Ergo ágil a
candeia do silêncio
sobre a
noite rasurada do mundo.
Oiço passos
na morada do homem.
Oiço
cânticos no escuro das ruas.
Um segredo
no passar de quem parte.
Um enigma
desenhado nas vozes.
A substância
da viagem cintila
no jardim da
noite húmida e cândida,
no altar
onde o Inverno se entrega.
Ó as vozes
de quem parte sem rumo.
Ó os passos
de quem canta calado.
Nem
segredos, nem enigmas. Silêncio.
Fevereiro de 2024
Philip Guston, Winter, 1963 |
na floresta
onde as pétalas caem
sobre o chão
negro dos dias passados,
sobre o
leito onde dorme o futuro.
As sibilas
dançam, cantam os hinos
macerados pelas
chuvas arcaicas.
Os segredos
de outrora desvelam-se
no rumor da
boca fria dos profetas.
Natureza, a
verdade recobre
as tuas
horas com um manto de pétalas
renascidas
no desvão da floresta.
O silêncio,
um presságio arcaico
dança imóvel
no segredo da noite.
Uma rosa de
sal sangra nos céus.
Janeiro
de 2024
Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912 |
sobre a
sombra do dia, trazem fogo
ao amor das
coisas raras e luz
à morada
fria e rude dos deuses.
Os poentes
são mistérios, promessas
do espírito,
a água lustral
onde,
ávidos, lavamos os corpos
e os abrimos
ao orvalho da noite.
No fulgor de
cada hora crepita
um
crepúsculo na sombra dos deuses,
um amor na
invernia deste mundo.
Toco o corpo
que se abre ao poente.
No orvalho
de ardor e mistério,
sinto a água
que na noite me espera.
Janeiro de 2024
Bernardo Marques, Inverno (Gulbenkian) |
Os dias
frios, as horas gastas da vida,
céus de
chumbo, o silêncio do medo.
Em Janeiro,
teço sombras e nuvens,
traço linhas
na brancura da noite.
A tristeza
rasga a terra e os mares.
Um fantasma
no escuro da casa,
no jardim
onde as rosas secaram.
Um punhal no
coração da paisagem.
Visto as
sombras que teci em silêncio.
Visto as
nuvens que me cobrem o corpo.
Em Janeiro,
vejo os céus, oiço o medo.
Treme a
terra na tristeza da casa.
Tremo pálido
no frio do jardim.
São escuras
as paisagens sem rosas.
George Inness, Winter, Close of Day, 1866 |
Sol de
Inverno, sol de mármore rosa,
luz do céu
frio na manhã de Janeiro.
Os dias
correm pelo vento tocados,
são navios de
caruma sem norte.
Oiço
pássaros romper o silêncio,
abrir mundos
ao ardor da harmonia,
velhos
cânticos ressoam nas ruas,
enquanto os homens
sonham extáticos.
Vendavais de
luz e mármore rosa
são segredos
escondidos nos barcos
do Inverno,
vozes vivas da terra.
Oiço cânticos
na casa do tempo.
O silêncio
arde preso aos dias,
uma rosa
desfolhada nos dedos.
László Meitner, Inverno em Paris (Gulbenkian) |
o bramar das
aves negras de Inverno.
São
presságios, são auspícios sem luz.
Uma carta
tão fechada na noite.
Dança a
chuva nas paredes das casas
destelhadas
pelo vento do norte.
Dança a
velha soberana no paço
carcomido
pela morte das rosas.
Uivam lobos
nas montanhas sem neve.
Grasnam
corvos nas ramagens despidas.
Rugem homens
esquecidos na cidade.
Nas
gargantas das mulheres exaustas,
os murmúrios
de um amor desprezado
a poeira
sulfurosa os sufoca.
Dezembro
de 2023