domingo, 27 de outubro de 2019

Meditação Breve (114) Monstruosidade

Wolf Strache, Kurfürstendamm After a Major Air Raid, Berlin, 1942
O que é a guerra? É o tempo em que até a mais pacífica das pessoas ou a mais benévola das mães se transforma num monstro. Num tempo desses, a monstruosidade não é o mero produto da perda da razão. Pelo contrário, é o imperativo que a razão, como técnica de sobrevivência, impõe ao mais sensato dos mortais. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Meditação Breve (113) Uma sombra

Frank Eugene, Emmy G. 1900-1908
Em toda a expectativa existe uma sombra de desilusão. Conforme a esperança se desvanece, a sombra cresce até que a noite cai e encerra o desejo no cofre-forte do impossível.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Haikai do Viandante (380)

Jerry Schatzberg, Vogue, January 1959
Sob a luz do sol,
chegas como uma sombra,
um rumor na areia.

sábado, 19 de outubro de 2019

Micronarrativa (26) Fim

Lee Miller, Woman with hand on head, 1932
Agora tudo terminou. Dantes, para compensar a perda, recorria a um adágio despropositado. Só termina o que nunca começou. Usava-o para me iludir, para negar a realidade. Os anos passaram e os aforismos não conseguem já ocultar a verdade. Partiu e eu não posso negar nem o começo nem o fim. Dói-me a cabeça. Talvez a realidade seja demasiado dura para bater com a cabeça nela. Só termina aquilo que um dia começou.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Poesia do Viandante (744)

Modest Cuixart - Arbre d'Euret (1991)
744. a sétima árvore

a sétima árvore
brotou
do musgo
ao sétimo dia
e nela
descansou deus
do cansaço da criação

(29/12/2016)

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Meditação Breve (112) O Cavalo de Tróia

Lovis Corinth, The trojan horse, 1924
Uma ilusão pensar-se o Cavalo de Tróia como o artefacto que um inimigo externo colocará à nossa porta para que, seduzidos, o levemos para nossa casa e abramos o caminho para a derrota. Ao sermos concebidos, o Cavalo de Tróia é de imediato parte da nossa herança. Só não sabemos a hora em que o inimigo salta de dentro do seu ventre e nos arrasta para a ignomínia da derrota.

domingo, 13 de outubro de 2019

O sal do silêncio (29)

Hiroshi Sugimoto, Sea of Buddha, 1995
Em silêncio, os Budas meditam sobre o mar da tranquilidade. E conforme a meditação progride, as ondas agitadas que arrastam os homens serenam. Então, nas água imperturbadas, os homens flutuam sem saber que são homens nem que é a serenidade que os conduz.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Pintura e haikus (14)

Marino Marini, Acrobats, 1960
Silêncio azul,
acrobacias de água:
Anjos no jardim.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Diálogos morais 25. Olhar para trás

Rodney Smith, Elena and Jessie, 1999
- Não olhes para trás.
- Porquê?
- Ela está a espiar-nos.
- Sim, é a maneira de a apanharmos em flagrante.
- Nem pensar, é um perigo.
- ...
- Se olharmos para trás, transforma-nos em estátuas de sal.

domingo, 6 de outubro de 2019

Poesia do Viandante (743)

Darío Villalba - Árbol-Color (1996)
743. a sexta árvore

a sexta árvore
baloiçava
na seiva de sangue
frutificava
em folhas
e frutos
e flores
e terrível era o tumulto

(29/12/2016)

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Meditação Breve (111) O grande mistério

Alfred Eisenstaedt, Luckauer Strasse, West Berlin, 1979
Do outro lado do muro pensa-se sempre existir um mistério, terrível ou fascinante, mas um mistério. Quando o muro é derrubado descobre-se que nem fascinante nem terrível, tão pouco um mistério. Apenas a vida insignificante que leva os homens do berço à cova. O grande mistério é não haver mistério algum.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Diálogos morais 24. Desfeita

Thomas Hoepker, Old man with his pet bird in Ritan Park. Beijing, China, 1984
- Canta!
- Nem penses.
- Vá lá, canta. Gosto de te ouvir.
- Detesto encómios, ainda por cima interesseiros.
- Trato-te bem, como sabes.
- Tens a certeza?
- Tenho. Canta um pouco para me animar.
- Não consigo.
- Não consegues?
- Como é possível cantar envolto numa nuvem de tabaco?