sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Silêncio de Outono (5)

Benvenuto Benvenuti, Le Vele, 1930-1932

Chegaram os dias de chuva,

o tempo de sombra

e de flores cansadas,

a hora do missionário partir

num veleiro de coral.

 

Saio de um sonho inquieto

e entro na terra húmida

nascida no segredo das nuvens.

 

Outubro de 2025

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

A memória do ar (42)

Dr. F. Stuhlmann, Runssóro, 1894
O vento, segundo João, o evangelista, sopra onde quer. Estas palavras são fundamentais para compreender o ar. Invisível, só de dá por ele nos efeitos da sua acção, nas consequências do seu querer. Suporta a vida e abre caminhos que se pensavam fechados. Tem um querer próprio e, dele, os homens apenas têm a memória. Mesmo presente, a relação humana com o ar é sempre pretérita.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

A sombra da água (43)

Robert Demachy, Automne, 1899

Uma figura outonal queda-se extasiada perante o enigma das águas. O céu reflectido, as folhas arrastadas pelo vento como pequenos barcos sem destino, a leve ondulação, tudo isso se ergue na sua mente como uma canção povoada pelos sonhos de infância, sinais de um mundo despido da febre do desejo, transfigurado num sonho que dança sob o silêncio da tarde.

sábado, 18 de outubro de 2025

Silêncio de Outono (4)

Marc Chagall, The Woman and the Roses, 1929

As manhãs refrescaram.

Cedo, a cidade

recolhe-as em rosário

de rosas brancas,

vermelhas de luz.

 

Sento-me no vime da alvorada.

Espero em silêncio

o lume do dia.

 

Outubro de 2025

 

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Geometrias de fogo (43)

Natalia Gontcharova, Paisaje rayonista. El bosque, 1913
Também as árvores sonham. Por vezes, sonhos benévolos; outras, grandes pesadelos. São sonhos colectivos. O pior dos pesadelos é o do fogo. Quando com ele sonham, as suas folhas tornam-se nas mil cores dos grandes incêndios. Visto de longe, o bosque parece abrasado. Quando nos aproximamos, descobre-se que é apenas um pesadelo colectivo, em que a metamorfose das cores é um exorcismo do mal que pode chegar.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

O Espírito da Terra (43)

Karl Greger, Ein Abend Bei Dordrecht, 1892

A terra abre o seu espírito à alegria das águas e ao júbilo do vento. Encerra, dentro das suas cavernas, segredos e mistérios, para se entregar à dança dos elementos e ao jogo da vida. O tempo suspende-se e fica a contemplar a paisagem, como se uma reminiscência da eternidade o entregasse ao puro êxtase.

domingo, 12 de outubro de 2025

Pintura e haikus (46)

Teresa Magalhães, sem título, 1982

 negro coração
máscara ociosa vinda
na luz de outono

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Silêncio de Outono (3)

Francesco di Stefano, St. Francis Receiving the Stigmata

Os dias empobrecem-se de luz,

clamam por quem

da pobreza ergue uma vida,

altar onde plantas, animais e homens

desenham a cruz do amor.

 

Cubro-me com os estigmas da aurora

e entro na casa da penúria,

movido pela fortuna de tudo dar.

 

Outubro de 2025

 

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Biografias 38. As que esperam

André Kertész, Waiting for the ship, Budapest, 1919

Há biografias que se organizam não à volta daquilo que se faz, mas daquilo que se espera. Para essas pessoas, nunca chega o tempo oportuno, pois todas as horas são de expectativa. Espera-se a chegada do barco, ou de um amor, ou de uma hora, mas o nem o barco, nem o amor, nem a hora chegarão. As que esperam começaram por confundir expectativa e esperança. Um dia, perceberam que a esperança não lhes cabia no alforge do destino. O seu lote era outro, o de nunca deixarem de ser as que esperam. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Diálogos morais 72. A noite

Eugene Robert Richee, Louise Brooks, 1928
- Confundo-me com a escuridão?
- ...
- Este silêncio, perturba-me.
- ...
- Estão todos calados, porquê?
- ...
- Talvez, não esteja aqui ninguém. Está aí alguém?
- ...
- Não está ninguém. Oiço um murmúrio. Será uma fantasia?
- ...
- Não. Estou só eu. Sou a rainha da noite,
- Não, não és a rainha da noite. A noite não tem reis nem rainhas.
- Quem está aí?
- A noite.
 

sábado, 4 de outubro de 2025

Silêncio de Outono (2)

Jacqueline Lamba, Forest Stream, 1947

O pequeno caminho das coisas

abre-se à sumptuosa

castidade das cores:

Amarelos, vermelhos, castanhos,

o ouro destes dias.

 

Pego nos metais raros.

Pouso-os

na serenidade do entardecer.

 

Outubro de 2025

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Câmara discreta (30)

Imogen Cunningham, Braille, 1933

Cegar a própria cegueira, ocultando-a dos olhos que vêem e perscrutam o que se resguarda nessa ausência de olhar, nessa fixidez que se prende ao infinito e à eternidade. Apenas as mãos se deixam capturar, enquanto desfilam pelo rio de signos que os olhos não sabem, mas que os dedos, como uma visão mais sólida e verrumante, descortinam, rasgando a mudez do pensamento, para lhe dar a esperança da palavra.