Salvador Dali, Angel, 1950 |
Palavras dirigidas ao anjo dos efésios,
ao que vela dia noite sobre os ombros dos homens
e na sombra da árvore inscreve um incêndio:
fogo de palha, combustão de luz,
a labareda tecida com o feroz fio do esquecimento.
Anjo de asas recurvas e braço erguido
refrigério das praias banhadas pelo mar da memória.
Eu sou Aquele que em sua dextra ergue as sete estrelas
e nos céus componho uma constelação.
De noite, os homens olham-na
e na geometria do olhar suspeitam
a linha do horizonte, a luz estelar da minha face.
Escutam-me os passos perdidos
entre o azul da Terra e a alucinação do âmbar.
Olho do fundo do coração e vejo o mundo crescer,
a formiga lavra a poeira das tardes, as noites azotadas,
os dias feridos pelos tambores da morte.
Trabalhaste a dor insinuada na pele,
cresceste em cidades de mármore e escuridão.
Como um insecto poisado na carnação do fruto
abraçaste o nome tão breve que trazes em ti.
Dentro do peito abriu-se um muro, uma paisagem
toldada pelo nevoeiro. Embaciado, entregaste o fulgor
à transfiguração da tarde e nela construíste casa de colmo,
morada sombria de silêncio na rua da verdade,
o castelo de muralhas incendiadas pelo lume da guerra.
Envelheces e a cor dos dias de festa
perde-se na areia desmaiada sob o sol da solidão.
Abre o peito à minúcia do gesto,
deixa correr como um rio o orvalho e o sangue.
Ao arderem, as ruas entregam a úlcera das casas
ao martelo de mármore, à carne salgada,
às asas recurvas do anjo dos efésios.
Um sulco de seiva na penumbra do pólen,
a abelha deliba o fogo no cálice da vida.
1993
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