domingo, 13 de março de 2022

Sete Cartas - 1 Ao anjo de Éfeso

Salvador Dali, Angel, 1950

Palavras dirigidas ao anjo dos efésios,

ao que vela dia noite sobre os ombros dos homens

e na sombra da árvore inscreve um incêndio:

fogo de palha, combustão de luz,

a labareda tecida com o feroz fio do esquecimento.

 

Anjo de asas recurvas e braço erguido

refrigério das praias banhadas pelo mar da memória.

 

Eu sou Aquele que em sua dextra ergue as sete estrelas

e nos céus componho uma constelação.

De noite, os homens olham-na

e na geometria do olhar suspeitam

a linha do horizonte, a luz estelar da minha face.

 

Escutam-me os passos perdidos

entre o azul da Terra e a alucinação do âmbar.

 

Olho do fundo do coração e vejo o mundo crescer,

a formiga lavra a poeira das tardes, as noites azotadas,

os dias feridos pelos tambores da morte.

Trabalhaste a dor insinuada na pele,

cresceste em cidades de mármore e escuridão.

 

Como um insecto poisado na carnação do fruto

abraçaste o nome tão breve que trazes em ti.

 

Dentro do peito abriu-se um muro, uma paisagem

toldada pelo nevoeiro. Embaciado, entregaste o fulgor 

à transfiguração da tarde e nela construíste casa de colmo,

morada sombria de silêncio na rua da verdade,

o castelo de muralhas incendiadas pelo lume da guerra.

 

Envelheces e a cor dos dias de festa

perde-se na areia desmaiada sob o sol da solidão.

               

Abre o peito à minúcia do gesto,

deixa correr como um rio o orvalho e o sangue.

Ao arderem, as ruas entregam a úlcera das casas

ao martelo de mármore, à carne salgada,

às asas recurvas do anjo dos efésios.

 

Um sulco de seiva na penumbra do pólen,

a abelha deliba o fogo no cálice da vida.


1993


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