quarta-feira, 29 de junho de 2022

Impressões 99. Flores

Dennis Stock, Flowers. Morocco, 1984

Em todas as flores se esconde um espírito, uma ténue imaterialidade, um meio caminho entre o que nos capta os sentidos e o que desencadeia o sonho e abre a imaginação para mundos que os olhos não vêem.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Micronarrativa (61) Subir e descer

JCM, Black & White Dreams. Lugo, 2007
Subia lentamente os poucos degraus que levam ao primeiro patamar. Depois, parava e olhava para o segundo lance de escadas, mas rapidamente descia o que tinha subido. Chegado ao ponto de partida, olhava para cima. Tornava a subir, sem pressa, como se estivesse exausto, até ao primeiro patamar. Chegado aí, tornava a parar e a contemplar o segundo lance de escadas. O que via impelia-o mais uma vez para uma rápida descida. Quando lhe perguntaram por que razão gastava a vida nesse subir e descer, respondeu: porque sou homem e a vida de um homem não é mais do que uma série de pequenas ascensões e pequenas descidas.

sábado, 25 de junho de 2022

Haikai urbano (73)

Wolfgang Suschitzky, Charing Cross Road, London, 1938
Os livros abrem-se
ao prazer de quem os olha
e neles se vê.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

O sal do silêncio (84)

Pierre Dubreuil, Marée Basse, 1904

Passam pequenos barcos impelidos pelo silêncio do vento, deixam na esteira aberta um sinal de saudade, a promessa de uma grande viagem. Os homens debruçam-se sobre as águas, procuram, na maré baixa, a sombra de uma lua, a promessa de um amanhã no trémulo sal de cada dia.

terça-feira, 21 de junho de 2022

O Espírito da Terra (15)

Julius Strakosch, Fin du Jour, 1895

A brancura urdida pela neve deixa-se tomar pelo crepúsculo. Não tarda, será cinza perante os olhos cansados que para ela olham. Depois, quando a noite se aproximar, o espírito da terra, como a ave de Minerva, levantará voo, para que do alto possa cuidar de quem vive rente ao chão.

domingo, 19 de junho de 2022

Impressões 98. Uma sombra

Chuck Kimmerle, The Unapologetic Landscape

De súbito, uma sombra manifesta a fragilidade de tudo o que existe. Aquilo a que um longo hábito nos ensinou a chamar realidade não passa, afinal, de um esboço, de uma promessa quase a realizar-se, mas a que falta sempre o vigor que a haveria de trazer do fundo abissal da inexistência ao reino da eternidade.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Sete Cartas - 6 Ao anjo de Filadélfia

Vincent Van Gogh, Ángel, 1889

Na poeira de ébano desta terra, reina anjo avaro,

armadura branca presa na pálida luz da palavra,

olhos de pérola atalaiam as ruas da cidade,

o tormento do calor na sombra coagulada,

estátua de sal, mãos de seda, pó de penumbra.

 

Ouve-se a brancura da voz na força da tarde,

o poder de quem tem a chave de todas as chaves,

o silêncio nascido na textura de cada dia.

Eis o segredo animal a dançar na pólvora das horas,

promessa de luz, sangue vazado no joio da vida.

 

Nas praças perdem-se homens de exíguo poder.

A carne levita-lhes na gravidade azul do desejo,

o espírito prostrado ante a porta sempre aberta

para a incandescência estelar das searas

crestadas pelo peso do Sol no rio do abandono.

 

Com esta chave abrirás o segredo dos mares,

o rumor das palavras esquivas nas folhas de jornal,

as mãos perdidas por entre musgos e relvas,

um dedo ferido na porta empurrada pelo vento,

tempestades trazidas na voracidade da tua voz.

 

Com esta chave fecharás a luz na sombra do mar,

os dedos cobertas de nódulos, feridas, a cinza

do êxtase presa nas muralhas de cristal,

a devassidão com que os passos empurram

homens de pedra para o relâmpago da tempestade.


1993

quarta-feira, 15 de junho de 2022

O Espírito da Terra (14)

Autor desconhecido, Cypress Trees on Side of Roadway, 1912

Nos ciprestes, oculta-se, dia e noite, o espírito da terra. Feito de silêncio, ele apodera-se das raízes, transforma-se em seiva pura e, levado pela ramagem, ergue-se aos céus, como se estes fossem a sua própria casa. 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

O sal do silêncio (83)

Francesca Woodman, Untitled, 1976
Há corpos em que a energia é tão intensa, que o sal da sua sombra se inscreve no solo, para que a memória nunca se apague quando o silêncio cair sobre o drama que é qualquer vida.

sábado, 11 de junho de 2022

Biografias 29. A fotógrafa

Florence Henri, Self-portrait, 1938

Enfrenta a câmara, a sua câmara, para se descobrir a si mesma. Enquanto fotografa os outros e o mundo, a fotógrafa esquece-se de si mesma. Fotografar é um longo exercício de obnubilação, um ritual onde evita responder à pergunta quem és tu? Tudo o que surge na fotografia tem a marca da alteridade. Um dia, porém, tem de se enfrentar a si mesma, descobrir na imagem os segredos que hesita em revelar. Pousa, então, afectando tranquilidade perante a máquina programada para tomar de si a imagem, aquela onde, de súbito, descobrirá quem se esconde sob o véu do seu nome.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Câmara discreta (11)

Max May, Kalter Rauhreiftag, 1908

Nesses dias em que o frio desce sobre a vida rude e envolve os corações com a névoa da melancolia, as pessoas saem do abrigo das suas casas e deixam-se surpreender no calor de uma conversa. Falam com palavras simples, quase rasas, sobre o tempo, sobre aquilo que as atormenta, sobre a esperança da chegada da Primavera. Na paisagem gélida do Inverno, as palavras são um fogo que se ergue para os céus, o símbolo de um sonho, o sinal de que a vida se erguerá sobre os escombros de cada morte.

terça-feira, 7 de junho de 2022

Meditação Breve (181) A eloquência

Giorgio de Chirico, La estatua silenciosa Ariana, 1913

Presas na pedra, a língua tolhida pela mudez, acorrentadas ao silêncio, ainda assim as estátuas falam. São frugais no discurso, objectivas nas formulações, rigorosas no  questionamento, pois toda a verdadeira eloquência existe nesse hora em que se faz silêncio e a boca emudece para que o logos se solte do mármore e se torne vida no espírito de quem o escuta.

domingo, 5 de junho de 2022

O Espírito da Terra (13)

Léonard Misonne, Crépuscule, 1908

Ao cair da noite, nesse momento a que se dá o nome de crepúsculo, as potências da luz entretêm um breve diálogo com as das trevas. Asseguram que a Terra não ficará para sempre cativa pelas grades da escuridão e que o seu espírito se libertará para, num novo dia, fruir os grandes prazeres trazidos pelos dardos incendiados pelo Sol.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Haikai do Viandante (425)

Charlotte Vetter Gulick, Mermaid Study – Submerged, 1914

A sereia dorme
esquecida no suave
silêncio das águas.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Diálogos morais 63. A mão

Alfred Eisenstaedt, Couple holding hands, 1948
- Dá-me a sua mão?
- Para quê?
- Preciso de si.
- Precisa de mim ou da minha mão? Decida-se.
- Não brinque comigo.
- Não estou a brincar. Muda muito rapidamente de desejos. É volúvel.
- Não, não...
- Eu não sou a minha mão e esta não sou eu.
- Está a fazer-se desentendida.
- Quer que lhe recorde o que disse?
- Pedi-lhe a mão, é uma metonímia.
- Poupe-me, por Deus. A literatura nunca me interessou.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Câmara discreta (10)

Constant Puyo, Chant Sacré, 1899

A combustão interior da alma, o desejo em forma de canto eleva-se acima da condição terrestre e paira suspenso entre as esferas celestes. São palavras que já não são palavras, mas o murmúrio dos pássaros ou dos anjos, o lento fluir do vento na folhagem das árvores. As faces velam-se para protegerem quem para elas olha. A luz intensa vindo do fundo do ser anima-as, é uma prova de vida e um perigo de morte. A cada instante, trazido pela fluida aguarela das vozes, sente-se o halo divino, uma presença tecida no nada das coisas materiais, uma promessa nascida do fogo das vozes que cantam.

sábado, 28 de maio de 2022

Impressões 97. Carga pesada

Jozef Emiel Borrenbergen, Heavy load, 1923

Em quase toda a sua existência, o homem suportou o peso do mundo nos seus ombros ou com o socorro da força animal. Com o advento da tecnologia moderna, libertou-se - e vai libertando os animais - desse peso. Livre da carga que lhe tolhia o corpo, ficou enredado no peso infinito do seu espírito, envolvido por mil impressões e desejos sem fim. A qualquer momento pode soçobrar sob o peso daquilo que o habita.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

O sal do silêncio (82)

Ernst Müller, Tree Reflection, 1905
O ermo dos campos, com a sua solidão dourada, espera o viajante perdido, para lhe dar o silêncio infinito nascido das águas e da terra, para o coroar com os louros de quem chega, vindo de longe, a si mesmo, à sua verdadeira morada.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Meditação Breve (180) Símbolos e palimpsestos

Albert Monier, L'écriture de la lumière, c. 1951
Nada é apenas aquilo que é. Nada é apenas puro existir. Tudo o que é, duradoiro ou efémero, ainda é símbolo de muitas outras coisas. Quando observamos uma certa realidade, caso saibamos lê-la, além dela vemos a sombra daquilo que ela é sinal, ouvimos o murmúrio daquilo que por ela fala. Cada coisa é um palimpsesto infinito, onde o leitor se perde no encantamento de descobrir, camada a camada, o que ali se oculta.

domingo, 22 de maio de 2022

O Espírito da Terra (12)

Otto Scharf, Waldbach, 1902

O som do silêncio não deve ser tomado como uma figura de retórica, mas tido como a descrição de uma realidade. Quando a floresta é sulcada pelo murmúrio das águas de um pequeno ribeiro, o que se ouve é o próprio silêncio, aquele que habita no centro dos elementos, no coração da terra e na seiva das águas.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Arqueologias do espírito 27

Caspar David Friedrich, Puerto de Noche, 1818
Mais que o dia, a noite terá descido até ao fundo insondável do inconsciente humano. O terror do que se tornou desconhecido, a presença da morte mesmo ao lado, a noite não era o lugar do sossego onde o corpo se desligava da vigília para se entregar ao prazer do sonho. Quando a luz acabava, vinha a angústia trazida pela incerteza que invadira o mundo, substituindo a exaltação derramada pelo Sol. Foi assim que a pura noite se tornou em trevas e, no fundo de cada um, continua a projectar o terrível com que durante milénios se revestiu, lembrando-nos que a claridade é sempre efémera. 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

O sal do silêncio (81)

Léonard Misonne, Splendeur de la Boue, 1938

A cintilação da luz na lama ofusca os passos de quem tem um destino à sua espera. A revolta dos elementos é esquecida no silêncio da caminhada. Os olhos fixos na chegada, quem caminha nem olha a paisagem sombreada pela intempérie. Chegar é o sal que anima os que se fazem ao caminho.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

O Espírito da Terra (11)

Leonard Misonne, Sortie de la Gare, 1939

Dir-se-á que nada haverá de mais estranho ao espírito da terra do que a parafernália tecnológica, o maquinismo onde o ferro exerce o seu império despótico e arranca os homens à lentidão do passo animal. Contudo, não há como o caminho de ferro para fazer sonhar com grandes viagens em que os olhos devoram a terra que diante deles passa, em contínua mutação, sempre com novo espírito. Partir e chegar num comboio é ainda uma visita ao que há de mais enigmático neste nosso planeta.

sábado, 14 de maio de 2022

Micronarrativa (60) Iluminação

David Hamilton, Cabourg beach, France, 1970s

Mãe e filho caminham em direcção ao mar. Persegue-os o sonho dos dias de Verão, o ir e vir das águas sobre a areia, a esperança de encontrar alguém conhecido de há muito para que aquela hora ganhe um sentido descoberto na troca de palavras e na cumplicidade dos anos. Quando se sentarem a perscrutar o enigma do oceano, o sol tocar-lhes-á os corpos e em cada um deles haverá um sentimento de felicidade, como se uma iluminação lhes rasgasse o coração.
 

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Biografias 28. O leitor de jornais

David Turnley, Man Reading Paper Through Magnifier, 1975

Um longo hábito, herdado de família, ligou o leitor ao jornal. Os dias passaram e cada dia trazia a sua natureza nessa hora em que ele, o leitor, se encontrava com o seu jornal. Tudo então ganhava sentido, pois o que lê só descobre a significação do que acontece no acto de leitura. Pouco interessa se o que lá vem, nessas folhas de papel que terão o lixo por destino, é verdadeiro ou falso. No jornal, o leitor não procura a verdade, mas aquilo que ele próprio é. Por isso, o acto de ler terá de ser repetido até ao fim dos dias.
 

terça-feira, 10 de maio de 2022

Haikai do Viandante (424)

Tamamura Kozaburo, Mount Fuji from Takaido Station, c. 1900 
 A rua deserta
abre-se em segredo ao monte.
A luz do silêncio.

domingo, 8 de maio de 2022

O sal do silêncio (80)

Lehnert & Landrock, Prayer in desert, c. 1920

O homem olha. A imensidão das areias do deserto é uma reminiscência da infinidade divina. Então, entrega o espírito ao silêncio, suspende o tumulto que lhe devora a alma e oferece, sob a inclemência do sol, o coração ao culto de Deus. No sal da memória, encontra o murmúrio da oração.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Biografias 27. A tecedeira

Paul Wolff, Weaver, 1930s

Enquanto entrelaça os fios, tece-se a si mesma. Olha-se ainda a partir da janela da manhã. No rosto, uma pequena sombra, a súbita consciência de que haverá um crepúsculo, mas logo o ritmo dos dedos abre o espírito à ambiguidade da vida, aos desejos que se escondem sob a serenidade de um olhar concentrado no que faz, ao temor que o futuro arrasta infundindo incertezas, sombreando a luminosidade dos dias com a culpabilidade das trevas. As horas passam e a tecedeira harpeja o tear, onde, no ruído mecânico da indústria, se esconde a velha música das esferas celestes. Casarei, pensa ela, e a vida será outra coisa, mas no seu pensamento ainda não sabe que fios tecerão o pano com que essa vida se há-de vestir. 

quarta-feira, 4 de maio de 2022

O Espírito da Terra (10)

Jean Dieuzaide, Vue aérienne, Montagne Noire, reboisement, 1968

Há em nós, seres humanos, uma alucinação persistente. Cremos que tudo o que existe está à nossa disposição. As velhas florestas estavam aí para que tivéssemos madeira. Exauridas, a terra fica disponível e não hesitamos em reflorestar aquilo que despimos. Estamos convencidos de que as novas florestas substituirão as que destruímos. Não compreendemos, porém, que uma floresta não é o produto do trabalho humano, mas a lenta maturação da natureza, na qual as árvores escolhem o seu lugar, para se abrirem aos céus e mergulharem as raízes na fundura da Terra. Criar autênticas florestas é um trabalho para o qual não nos foi outorgado poder.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Meditação Breve (179) Tempo

Ilse Bing, Poster, Henry VIII, 1934
Olhamos a parede e vemos as pústulas semeadas pelo vírus do tempo. Este faz do corso a sua vida. Pilha as vidas e tudo o que o homem constrói. Empalidece a luz do meio-dia, erode as montanhas mais vigorosas, calcina o frio nas paisagens frias Norte. Reduz a poeira as palavras que os homens deixam aqui e ali.  Não há nada que não caiba na sua boca voraz.