quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Signo sinal 26. A rosa semântica

Hashim Samarchi, A Pálida Lua, 1967 (Gulbenkian)

De que génio será a Lua signo? De que dança transportará ela, em seu dorso, o sinal? De que graça será, no seu curso, o símbolo? Homens e mulheres espreitam-na, noite após noite, seduzidos por um mistério, arrastados pelo enigma, incapazes de decifrar a mais pura rosa semântica que, sempre virginal, se abre, sem pudor, diante de seus olhos sonâmbulos.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Haikai do Viandante (443)

Edvard Munch, Winter Night, 1900

Noite de inverno.

No prazer da solidão,

núpcias de neve.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Inclinação de Inverno (9)

Santiago Rusiñol Prats, Jardin de Invierno, 1891

a estrada devoluta é uma sombra

no degelo da gramática invernal

 

as primeiras frases ressoam

trazem a luz do bosque arcaico

 

à solta na cidade sonâmbula

um rebanho de ménades em fúria

 

dança possuído pelo deus

canta o degelo na estrada vazia

 

Fevereiro de 2025


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

O sal do silêncio (122)

Leopoldo Novoa, Aujourd'hui personne n'est venu, 1976

Um rasgão no rude tecido da realidade. Aberta a fenda, por ela chega o sal e o silêncio. O sal preserva o espírito e purifica-o do cansaço dos dias; o silêncio abre-se como uma clareira para que o corpo se deixa contaminar pela luz desse espírito preservado e puro.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

A memória do ar (38)

Frederick Boissonas, Dans la Montagne, 1905

É da montanha que chega mais viva a memória do ar, a sua tessitura delicada, suspensa do frio que se eleva dos cumes nevados e toca os céus, antes de se misturar nos ventos e varrer o mundo, como se cuidasse de uma galáxia perdida no turbilhão dos universos, que nascem e morrem, enquanto na Terra o vento sopra onde quer.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Inclinação de Inverno (8)

László Meitner, Inverno em Paris (Gulbenkian)

leio a segunda epístola de inverno

na neblina nascida pela manhã

 

os olhos presos na cinza do céu

tremem no temor do cansaço

 

a cidade é um esboço delido

traçado pelo frio lápis de carvão

 

fevereiro corre no coração dos crentes

escutam a carta que ninguém escreveu

 

Fevereiro de 2023


sábado, 15 de fevereiro de 2025

A sombra da água (38)

John Ruskin, A River in the Highlands, 1847

Um rio corre nas terras altas. Nascido no silêncio das montanhas, arrasta, sobre o espelho das águas, as sombras caídas do céu. Transporta, na cadência do fluir, um segredo que o oceano revelará, numa noite tempestuosa, quando os relâmpagos descerem sobre as ondas e os raios se perderem na espuma da noite.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Geometrias de fogo (38)

Paula Rego, Ninho, 1972 (Gulbenkian)

Pássaros de fogo dançam na geometria de um ninho em chamas. Esperam o tumulto do vento para se lançarem em pleno voo e levarem consigo um incêndio que ateará o silêncio nos campos e o rugir dos oceanos. São aves a dançar sobre as consciências, labaredas do espírito para sagrar, no prado do tempo, o nascimento da Primavera.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

O Espírito da Terra (38)

Adolfo Guiard, Camino Rural, 1912-1915

Um caminho rasga a terra, para que esta se abra ao lento labor de homens e animais, cumpra a missão inscrita no silêncio do espírito que a anima e descubra, na seiva e no sangue, as cores das estações: a solitária cinza invernal ou o rubro tumulto primaveril.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Inclinação de Inverno (7)

Salvador Dali, Cadaqués, 1917

o turvo alumínio do céu

cobre de sombras o domingo

 

deslizam gentes pelas ruas

sem nome sem destino

 

nas árvores das avenidas

não se prediz a primavera

 

os olhos poisam no inverno

vêem o dia no alumínio do céu

 

Fevereiro de 2025


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Biografias 33. O matador

Lucien Clergue, Bullfight, Arles, France, 1970-1979

O diestro olha, e nos olhos do touro vê os seus próprios olhos. Chegados à arena, tudo o que separava sacrificador e vítima sacrificial se confunde, como se a cintilação do traje de luces trouxesse não a sombra que cai sobre a praça, mas as trevas mais densas que, na tensão do confronto, o toureiro suspeita existirem antes e depois da vida. Se na praça se ouve um paso-doble, o homem na arena está surdo na sua solidão. O touro vai e vem, e a capa ondeia levada pelo vento nascido das mãos do lidador e da raiva cega do animal. Este, preso no horror, não vive no tempo, apenas naquele instante sem sentido, no frio momento despido de futuro. O tempo pertence àquele que maneja o estoque e decide a hora desse inocente onde se projecta a culpa do matador.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Diálogos morais 67. Desejo

Sergio Larrain, Bar, Valparaiso, Chile, 1963

- O que deseja?
- É uma questão de desejo?
- É sempre uma questão de desejo.
- Se assim é, então desejo...
- Não disse que satisfazemos todos os desejos.
- Também não especificou quais.
- Não me deu tempo.
- O tempo é uma coisa muito preciosa para ser dado.
- Compreendo, mas preciso dele para especificar que objectos oferecemos ao desejo.
- Sim, mas neste momento, olhando-a, só desejo uma coisa.
- Sim, eu sei, uma limonada, que é a única coisa que temos. A cerveja esgotou-se.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Câmara discreta (25)

André Kertész, Old Gentleman, Paris, 1926
Um súbito sobressalto abriu o coração do fotógrafo à perplexidade. Será justo conjugar para a eternidade a banalidade da velhice e a altivez do estatuto social? Terei direito a tornar manifesto um rosto marcado pelas intempéries trazidas pelo tempo, pelos desvarios da imaginação, pela sombra de um porte levedado na educação e construído na necessidade de parecer aquilo que se pensa ser? E perante o dilema a dançar no palco na consciência, deixou a câmara captar apenas a sombra de uma existência, a marca inominável de um estatuto que a morte se prepara a diluir no pó a que todos regressam.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Inclinação de Inverno (6)

Bernardo Marques, Inverno (Gulbenkian)

o inverno é um alçapão por onde

se entra no silêncio do mundo

 

desce-se pelos dias frios e chega-se

pela curva corda do vento à mudez

 

ali se permanece sem biografia

sem a querela de cobre do querer

 

as mãos abrem-se ao ritmo dos dias

e deixam escapar o gérmen de um gesto

 

Fevereiro de 2025