sábado, 6 de dezembro de 2025

O Espírito da Terra (44)

Frenchman and American advancing in to No-man’s land with Sacks of Hand Grenades, France, 1918

Sob o peso das botas cardadas, a terra geme. E nesta dor descobre-se nua, pois o véu do espírito que a cobria desfez-se ao toque do clarim, ao avanço dos soldados em direcção à morte que, naquela lugar sem nome, será a deles.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Pintura e haikus (47)

Júlio Pomar, Varina Comendo Melancia, 1942 (Gulbenkian)

 Frutos do Estio:

O vermelho da varina,

azul de paixão.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Silêncio de Outono (10)

Aurélia de Souza - Visitação

Secreta, chegou a luz

do Advento.

Veio no húmido

odor da terra,

nas folhas pelo chão.

 

Retenho na memória a voz

vinda  na água

dos dias de sol e névoa.


Dezembro de 2025

 

domingo, 30 de novembro de 2025

Biografias 39. O modernista

Man Ray, James Joyce, 1922
O modernista inclina a cabeça e recolhe-se. Pesa-lhe a gravidade do modernismo, atormenta-o o fluxo de consciência e não sabe o que fazer do tempo narrativo. Poderia fazê-lo explodir e criar uma narrativa sem tempo? Tudo nele se prende no ponto de vista da subjectividade, da perspectiva de um eu penso que corre atrás dos seus pensamentos, que, estilhaçados, borbulham na banheira gigante do cérebro. Ao diabo, o estilo único. O ideal seria um estilo diferente para cada frase ou, mesmo, para cada palavra, mas temos que nos contentar com uma variação estilística mais contida. O leitor não suportaria o excesso de realidade e a minha cabeça não pararia um instante até colapsar num universo impossível de habitar. Dói-me a cabeça de tanto modernismo.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Diálogos morais 73. Um barco

William Anckorn, Rêve d'Enfant, 1894

- Avô...

- Diz...

- Passas tanto tempo a fazer o teu barco.

- Não é fácil, e eu não sou um velho armador.

- Mas tanto tempo, deves gostar.

- Claro que gosto, mas não é por isso passo tanto tempo com o meu pequeno arco.

- Não...

- Não, é por necessidade.

- Mas não precisas desse barco para nada.

- Claro que preciso.

- É para não esqueceres o tempo em que andavas embarcado.

- Talvez.

- É uma reprodução do teu antigo barco?

- Não, é apenas o barco que um dia me levará para o mar distante.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Câmara discreta (31)

Francesca Woodman - Space², Providence, Rhode Island, 1975-1978
Um súbito rodopiar sobre si mesma, fruto de uma vertigem ou da volúpia do lugar, entrega a mulher à desfiguração. Enquanto volteia, perde a identidade, deixa de ser o que é, para se tornar uma outra. Uma árvore? Um anjo? Uma fera em busca da presa? Tudo isso nos é velado pelo cuidado da câmara, que apenas nos devolve um mistério, ao ocultar o fim da metamorfose e o nascimento virginal de uma nova identidade.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Silêncio de Outono (9)

Tomás Viver Aymerich, Apunte de paisaje

A vida recolhe-se

na sonolência

dos dias, no sangue

dos mártires

vivos na viragem da morte.

 

Ergo o lume da tarde,

um cântico preso

no coral de quem dorme.

 

Novembro de 2025

 

sábado, 22 de novembro de 2025

Arqueologias do espírito 36

Benvenuto Benvenuti, Cimiteretto, 1907

Houve um instante em que, no espírito do homem, se associou a disposição do cipreste e o impulso da alma para se elevar, na hora em que esta se desprendia do império da gravidade a que o corpo a submetia. Como um sinal de trânsito, a árvore, na sua beleza discreta, aponta para os céus, indicando o caminho que o espírito, agora entregue a si mesmo, tem de percorrer. O lugar dos mortos tornou-se assim, por efeito de uma imaginação fundada na analogia, a casa silenciosa onde os ciprestes se recolhem em reverência aos homens.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Impressões 131. A meio caminho

Delight Weston, Leaping Dancer, 1921
Já não é mulher, mas ainda não é pássaro ou anjo. Eleva-se para fugir à gravidade dos corpos e às inclinações do espírito. Falta-lhe, porém, a disciplina do voo. A queda é aquilo que a espera, mas de que fugirá, pois, agora, é um ser intermédio, a meio caminho do que foi e daquilo que deseja ser.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Silêncio de Outono (8)

Alson Skinner Clark, Autumn Blaze

Para o Sul partiram

as últimas aves.

Anuncia-se o que virá

buscar na sombra

a luz do pássaro perdido.

 

Deslizo pelo âmbar da tarde

e colho do chão

o silêncio de uma  folha caída.

 

Novembro de 2025

domingo, 16 de novembro de 2025

Meditação breve (208) Uma perda

Rodney Smith, Gary Descending Stairs, 1995
Perdemos a sabedoria das metamorfoses, a velha ciência que nos permitia a transformação numa outra coisa. Quem ainda sabe fazer de si uma sombra que passa? Os dias tornaram-se difíceis para as aprendizagens decisivas. Quando nos queremos sombra de nós mesmos, apenas ficamos esse nós que sempre fomos, sem poder sequer para ensombrecer.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Micronarrativa (78) O filósofo

Hans Watzek, Der Kiebitz, 1897

Enquanto uns jogam às cartas, reprimindo não sem dificuldade as emoções do jogo, ele veio apenas para observar. Não joga, não faz comércio, apenas detém o olhar pensativo sobre aquilo que acontece. Foi assim que há muito, diz-se, Pitágoras definiu pela primeira vez o filósofo, aquele que vai aos Jogos Olímpicos para contemplar aquilo que atrai as emoções e os interesses dos homens. 

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Silêncio de Outono (7)

Romà Vallés, Cosmogonies. Sèrie Color (6). 1962

Um rasto de romã e a tinta

do dióspiro

cobrem de carmesim

os que triunfam

na peregrina névoa da dor.

 

Na rua, abro-me à bênção

da água lustral,

o baptismo nas chuvas de Novembro.

 

Novembro de 2025

 

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Signo sinal 31. Uma mão

Moita Macedo, A mão que desenha, 1981 (Gulbenkian)
Uma mão nunca é apenas uma mão, mas um signo que se desdobra naquilo que com ela se realiza, se descobre, se projecta. Quando se abre ou se fecha, a mão é um sinal do pensamento e do coração, da razão que se expõe em motivos e do sentimento que abre em experiências.

sábado, 8 de novembro de 2025

Silêncio de Outono (6)

Milton Avery, Autumn, 1944

Estão colhidos os frutos

trazidos pelo Outono.

Os campos esperam a bênção

de todos os santos

silenciados nas ruas da cidade.

 

Deambulo pela memória

e oiço os mortos

nimbados no silêncio da luz.

 

Novembro de 2025

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Silêncio de Outono (5)

Benvenuto Benvenuti, Le Vele, 1930-1932

Chegaram os dias de chuva,

o tempo de sombra

e de flores cansadas,

a hora do missionário partir

num veleiro de coral.

 

Saio de um sonho inquieto

e entro na terra húmida

nascida no segredo das nuvens.

 

Outubro de 2025

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

A memória do ar (42)

Dr. F. Stuhlmann, Runssóro, 1894
O vento, segundo João, o evangelista, sopra onde quer. Estas palavras são fundamentais para compreender o ar. Invisível, só de dá por ele nos efeitos da sua acção, nas consequências do seu querer. Suporta a vida e abre caminhos que se pensavam fechados. Tem um querer próprio e, dele, os homens apenas têm a memória. Mesmo presente, a relação humana com o ar é sempre pretérita.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

A sombra da água (43)

Robert Demachy, Automne, 1899

Uma figura outonal queda-se extasiada perante o enigma das águas. O céu reflectido, as folhas arrastadas pelo vento como pequenos barcos sem destino, a leve ondulação, tudo isso se ergue na sua mente como uma canção povoada pelos sonhos de infância, sinais de um mundo despido da febre do desejo, transfigurado num sonho que dança sob o silêncio da tarde.

sábado, 18 de outubro de 2025

Silêncio de Outono (4)

Marc Chagall, The Woman and the Roses, 1929

As manhãs refrescaram.

Cedo, a cidade

recolhe-as em rosário

de rosas brancas,

vermelhas de luz.

 

Sento-me no vime da alvorada.

Espero em silêncio

o lume do dia.

 

Outubro de 2025

 

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Geometrias de fogo (43)

Natalia Gontcharova, Paisaje rayonista. El bosque, 1913
Também as árvores sonham. Por vezes, sonhos benévolos; outras, grandes pesadelos. São sonhos colectivos. O pior dos pesadelos é o do fogo. Quando com ele sonham, as suas folhas tornam-se nas mil cores dos grandes incêndios. Visto de longe, o bosque parece abrasado. Quando nos aproximamos, descobre-se que é apenas um pesadelo colectivo, em que a metamorfose das cores é um exorcismo do mal que pode chegar.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

O Espírito da Terra (43)

Karl Greger, Ein Abend Bei Dordrecht, 1892

A terra abre o seu espírito à alegria das águas e ao júbilo do vento. Encerra, dentro das suas cavernas, segredos e mistérios, para se entregar à dança dos elementos e ao jogo da vida. O tempo suspende-se e fica a contemplar a paisagem, como se uma reminiscência da eternidade o entregasse ao puro êxtase.

domingo, 12 de outubro de 2025

Pintura e haikus (46)

Teresa Magalhães, sem título, 1982

 negro coração
máscara ociosa vinda
na luz de outono

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Silêncio de Outono (3)

Francesco di Stefano, St. Francis Receiving the Stigmata

Os dias empobrecem-se de luz,

clamam por quem

da pobreza ergue uma vida,

altar onde plantas, animais e homens

desenham a cruz do amor.

 

Cubro-me com os estigmas da aurora

e entro na casa da penúria,

movido pela fortuna de tudo dar.

 

Outubro de 2025

 

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Biografias 38. As que esperam

André Kertész, Waiting for the ship, Budapest, 1919

Há biografias que se organizam não à volta daquilo que se faz, mas daquilo que se espera. Para essas pessoas, nunca chega o tempo oportuno, pois todas as horas são de expectativa. Espera-se a chegada do barco, ou de um amor, ou de uma hora, mas o nem o barco, nem o amor, nem a hora chegarão. As que esperam começaram por confundir expectativa e esperança. Um dia, perceberam que a esperança não lhes cabia no alforge do destino. O seu lote era outro, o de nunca deixarem de ser as que esperam. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Diálogos morais 72. A noite

Eugene Robert Richee, Louise Brooks, 1928
- Confundo-me com a escuridão?
- ...
- Este silêncio, perturba-me.
- ...
- Estão todos calados, porquê?
- ...
- Talvez, não esteja aqui ninguém. Está aí alguém?
- ...
- Não está ninguém. Oiço um murmúrio. Será uma fantasia?
- ...
- Não. Estou só eu. Sou a rainha da noite,
- Não, não és a rainha da noite. A noite não tem reis nem rainhas.
- Quem está aí?
- A noite.
 

sábado, 4 de outubro de 2025

Silêncio de Outono (2)

Jacqueline Lamba, Forest Stream, 1947

O pequeno caminho das coisas

abre-se à sumptuosa

castidade das cores:

Amarelos, vermelhos, castanhos,

o ouro destes dias.

 

Pego nos metais raros.

Pouso-os

na serenidade do entardecer.

 

Outubro de 2025

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Câmara discreta (30)

Imogen Cunningham, Braille, 1933

Cegar a própria cegueira, ocultando-a dos olhos que vêem e perscrutam o que se resguarda nessa ausência de olhar, nessa fixidez que se prende ao infinito e à eternidade. Apenas as mãos se deixam capturar, enquanto desfilam pelo rio de signos que os olhos não sabem, mas que os dedos, como uma visão mais sólida e verrumante, descortinam, rasgando a mudez do pensamento, para lhe dar a esperança da palavra.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Arqueologias do espírito 35

Eduardo Nery, Escada Mística, 1972 (Gulbenkian)
A primeira vez que a um homem terá ocorrido construir uma escada, ainda que de degraus imperfeitos, não foi, por certo, o momento inicial em que desejou elevar-se acima da terra e vencer a gravidade. O espírito, quando os olhos se erguiam para os céus, há muito desejava elevar-se. A escada foi uma resposta a esse desejo de contrariar a natureza, mas também o símbolo futuro da possibilidade de elevar-se. Elevar o corpo e libertá-lo do constrangimento da matéria. Elevar o espírito para além das preocupações quotidianas. Mais do que um dispositivo arcaico, a escada é a realização de um desejo vindo do fundo do tempo.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Silêncio de Outono (1)

Benvenuto Benvenuti, Mattino, 1935-1940

As folhas caem em silêncio.

Os três arcanjos

murmuram uma canção

feita de vento

e corolas de estrelas matinais.


Estremeço e abro as mãos

para o fogo ateado

nas águas negras do oceano.

 

Setembro de 2025

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Impressões 130. Tristeza

George Seurat, Industrial Suburb, 1882-1883

Mais do que fealdade, há paisagens criadas pelos homens que trazem nelas uma tristeza desmedida. Olha-se e não é o impacto estético negativo que assoma em primeiro lugar, mas uma infinita mágoa, como se aqueles lugares fossem a emanação de um suplício sem motivo nem fim.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Meditação breve (207) O secreto talento

Adolph Miethe, Dreifarbenaufnahme: nach der natur, 1903

A natureza desdobra-se em pequenos presentes, que os homens recebem sem pensar no incansável trabalho da terra. O que é belo parece emanar da facilidade, quando, na verdade, como o escreveu um velho filósofo grego, o que é belo é difícil. E é neste mostrar como fácil aquilo que é, na sua essência, difícil, que reside o secreto talento da natureza. 

domingo, 21 de setembro de 2025

Micronarrativa (77) Fantasias

Guilherme Camarinha, Jardim das Artes, 1967 (Gulbenkian)
Como uma sombra, o viajante percorre o jardim. Pensa-o, a princípio, uma emanação do paraíso, mas deste, recorda, os homens tinham sido expulsos. Depois, enquanto a viagem avança, descobre que aquele é lugar de todas as fantasias. Estas são flores belas e perigosas. Aguardam ali que lhes tragam água e sol, para lançaram a sua sombra sobre o mundo. 

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Haikai do Viandante (445)

Adolfo Guiard, Amanecer, 1910


 Secreta manhã
desce no silêncio dos campos:
sonhos de Outono

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (12)

Vincent Van Gogh, Camineros en el Boulevard de Victor Hugo en Saint-Rémy, 1889

semeio um grão de perseverança

no campo húmido

pelos primeiros frios matinais

 

ergo os ombros e enfrento

as tentações do estio

o deslassar da vida no gruir do tempo

 

uma porta abre-se e o infinito

oferece-me uma estrada

um caminho sem princípio nem fim


Setembro de 2025

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Signo sinal 30. Peregrinar

Edward Burne Jones, Pilgrim at the Gate of Idleness, 1875-1893

Ao umbral do ócio, chega o peregrino. Carrega os signos da viagem e enfrenta o sinal da lassidão. Peregrinar é procurar no mundo os sinais do destino e carregá-los com os signos do sentido.

sábado, 13 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (11)

Salvador Dali, Playa encantada con tres Gracias fluídas, 1938

pela graça da sombra de setembro

derramo a água dançante

da gratidão

 

grato pelo murmúrio da manhã

grato pelo troar da tarde

grato pelo navio da noite

 

sulco o oceano da obrigação

preso na armadura

translúcida do reconhecimento

 

Setembro de 2025

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

A memória do ar (42)

Dmitri Kessel, Venice, Italy, 1952

Há cidades que, como as plantas, surgem da terra, onde têm as suas raízes e de onde tiram a inspiração que as guia no seu destino. Outras, porém, mais raras, descem dos céus e poisam, ao de leve, cercadas de água, num solo que nunca deixa de lhes ser estranho. São cidades etéreas e o seu elemento é o ar. Dele se alimentam e aguardam a hora que, elevando-se , voltarão em silêncio ao céu.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (10)

William Blake, Every man also gave him a piece of money

sob o suplício de um sol sem piedade

distribuo pelo mundo os frutos

frescos da compaixão

 

tâmaras em vinho envelhecido

uvas no silêncio da noite

damascos a quem se perdeu no deserto

 

abro a mão da água que recebi

e deixo um rio deslizar

para as bocas cariadas pela sede

 

Setembro de 2025

domingo, 7 de setembro de 2025

A sombra da água (42)

Franz Goerke, Am Luganer See, 1903
Lagos são mistérios amparados na orografia da Terra, segredos vindos de tempos arcaicos que ninguém decifra. Durante o dia, as águas entregam-se à vigília, para que homens e animais possam encontrar uma fonte de vida. À noite, porém, o lago é o leito onde, ao adormecerem, as águas sonham os mundos de onde vieram e aqueles que as esperam. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (9)

John Ruskin, A River in the Highlands, 1847

pastoreio os dias de setembro

sentado no pacífico

prado da paciência

 

olho em silêncio as águas do rio

e mergulho na sombra

da tília da tarde

 

terminou o tempo de revolta

o fogo arde

na brandura do coração

 

Setembro de 2025
 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Geometrias de fogo (42)

Emil Nolde, Landscape in Red Light
O vermelho da paisagem é uma máscara onde o fogo se protege dos tormentos da água e se esconde dos devaneio do vento. Então, deixa pairar sobre a terra uma luz de bronze, onde a fantasia da tarde caminha irreverente para a lassidão apaziguada do crepúsculo.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (8)

Carlos Prado, Barredores de calle, 1935

soçobrar no vento que corre

humílima folha

caída sob o sol de agosto

 

de lado deixo o dardo de ferro

a água da presunção

o diadema no sal da altivez

 

virtuoso observo o horizonte

a crosta dos dias

a despenhar-se na poeira da terra

 

Agosto de 2025

domingo, 31 de agosto de 2025

O Espírito da Terra (42)

Otto Ehrhardt, Untitled Landscape with Birch Trees, 1903

O silêncio é o espírito velado da Terra. Quando o vento sopra e as árvores deixam partir das suas folhas um murmúrio, como se não soubessem se o que sentem é a anunciação da dor ou o prenúncio da felicidade; ou quando se ouve o canto de um pássaro, ou o silvar de um réptil, o que se escuta é o silêncio da Terra. 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Virtudes de Verão (7)

Gerhard Richter, Abstr. B., Raps, 1995

mantenho-me leal ao ethos

incendiado da origem

aos dias acesos na alvura da casa

 

as nuvens passam transportadas

por pássaros de vento

iluminadas pelo candelabro do céu

 

da fidelidade  fabrico o fogo do dia

a fortuna dos barcos

com que navego o oceano do tempo

 

Agosto de 2025

sábado, 2 de agosto de 2025

Virtudes de Verão (6)

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1995

faço do veludo do verão a bolsa

de onde generoso retiro

a esmola selvagem da vida

 

distribuo-a pelas dunas cerúleas

e aos pássaros perdidos

nas frágeis falésias do oceano

 

oiço tilintar o metal das moedas

nas mãos vazias

estendidas pela rainha do silêncio

 

Agosto de 2025

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Biografias 37. O escritor

Loomis Dean, William Burroughs, Paris, 1959

Todo o escritor existe no acto de escrever, na inclinação do corpo para o teclado, na precisão com que os dedos chocam com cada uma das teclas, provocando um terramoto na folha de papel. O escritor reside na folha branca que se cobre de sinais, numa combinação de palavras que formam o seu lar. Abre a porta e percorre a casa. Os quartos, as salas, o escritório, as casas de banho a cozinha. Enquanto as percorre, a casa cresce, aumenta o valor do imóvel, e ele, inclinado sobre a máquina de escrever, vai descobrindo quem é, para além do nome que lhe deram, pois o nome é apenas um enigma que a vida lhe pôs no horizonte para desvendar, enquanto as folhas brancas se enchem de letras pretas, e os dedos, sem descanso, batem e batem em fúria, como se um rio se precipitasse para uma foz que nunca encontra.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Diálogos morais 71. Indignação

Robert Doisneau, La Dame Indignée, 1948

 - Não é possível.

- Como?

- Olhe para ali. Não, o melhor é não olhar.

- Decida-se. Olho ou não olho?

- Uma imoralidade.

- Uma imoralidade olhar?

- Não aquilo. Não olhe.

- Será que olhar me fará assim tão mal?

- Muito pior do que imagina.

- Então, porque não despega os olhos dali?

- Sinto-me mal.

- Olhou tanto… Chamo um médico?

- Morro.

- Morre, só por olhar?

- Não, morro de inveja.