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| Dorothea Lange, Consumer relations, San Francisco, 1952 |
sábado, 3 de maio de 2025
Diálogos morais 69. Mercado
- Despacha-te, não podemos chegar atrasados.
- Dá-me colo.
- Os homens não andam ao colo.
- Sou uma criança e tu és a minha mãe.
- As crianças, também não. Estão à nossa espera.
- Não quero ir.
- Vamos...
- Vamos a onde?
- Vamos à loja comprar...
- Vamos, mesmo?
- Sim.
- E lá também se vendem mães?
quinta-feira, 1 de maio de 2025
Pulsar de Primavera (6)
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| José Pedro Croft, Et Sic In Infinitum, sd (Gulbenkian) |
pelas ruelas sem nome
passa o vento da primavera
traz o aroma do oceano
ao portfolio vazio da cidade
preso na passagem sem saída
abro o coração à tempestade
Maio de 2025
terça-feira, 29 de abril de 2025
Câmara discreta (27)
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| Edward Steichen, On George Baher’s yacht, 1928 |
O mar coberto pela bruma fascina o olhar. Tudo se torna, então, um mistério. O balancear do barco, o ruído das águas, o bater apressado dos corações. Enquanto as mulheres se deixam enredar no silêncio da fantasia, nas mil possibilidades que aquela hora lhes apresenta à vertigem da vontade, o fotógrafo evita a indiscrição: esconde-lhes o olhar para não lhes prescrutar as almas. Respeita a imersão no sonho e a combustão do corpo. Evita desocultar as flores monstruosas do pensamento ou o latejar da vontade perdida na imensidão inominável do oceano.
domingo, 27 de abril de 2025
Arqueologias do espírito 32
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| Herbert Boeckl, Der Wörthersee, 1928 |
A vibração da cor e a sua multiplicidade e variabilidade sem fim são um indício do nascimento do espírito. A exuberância com que a paisagem se apresenta é o sinal de uma gravidez prestes a chegar ao fim. Então, nasce, na consciência do homem, um murmúrio, como se um vento suave lhe soprasse a face e o chamasse para dentro de si mesmo. Não, aquelas cores não são um fim, apenas a mediação entre aquele que olha a voz que o chama.
sexta-feira, 25 de abril de 2025
terça-feira, 22 de abril de 2025
Pulsar de Primavera (5)
domingo, 20 de abril de 2025
Impressões 127. Um coração terrível
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| Émile-René Ménard, La Bañista, 1913 |
Era como se um coração terrível sentisse, de repente, um torpor, a necessidade de oferecer o corpo è contemplação e esquecer a combustão de cada dia. No rumor matinal, a nudez é apenas a matéria friável do sossego, um desejo obscuro de pertença ao grande segredo da terra quando se abre ao silêncio do céu.
sexta-feira, 18 de abril de 2025
Histórias sem nexo 35. Fatalidades
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| Francisco Suñer, A la fiesta, 1981 |
Na
fonte à fábrica dos fanqueiros, Felisberto e Feliciana falavam de Fernando,
filho de faustosa família, ferrado em Fez. Falta, fez? O fungo do flagelo e o fogo
das ferozes forças forraram a fidelidade da fábula. Ficou a famosa fé e a ferida
funesta do fado. Foi-se, frisou Felisberto. Forte frente à falida fraqueza dos
fregueses, fundamentou Feliciana. Fim fatal.
quarta-feira, 16 de abril de 2025
Meditação breve (204) O corpo nu
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Pulsar de Primavera (4)
sábado, 12 de abril de 2025
Micronarrativa (74) Indistinção
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| Gustav Klimt, Schubert ao Piano, 1899 |
O que move aquelas mulheres? O amor da música ou o desejo do músico? Elas não o sabem, pois o seu ser é incapaz de distinguir o ritmo musical da gramática com que o ele se apresenta ao seu olhar. Conforme, os acordes irrompem, elas fecham os olhos e o que vêem é apenas aquela figura, que não é mais do que o desenrolar do ritmo com que o som vem à existência, paira por instantes e se desvanece no fundo dos seus corações.
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Signo sinal 27. Sentido
| Marc Chagall, Cain and Abel, 1911 |
A
tragédia humana nasce não daquilo que meramente acontece, mas do poder que os
homens trazem consigo de dar sentido ao que acontece. Se o assassinato de Abel
por Caim fosse um mero evento, não haveria qualquer tragédia, apenas um facto
no mundo natural. Mas é mais do que isso, pois foi transformado em signo que dá
um sentido, que ilumina o acto e permite ver o que nele há de perverso.
terça-feira, 8 de abril de 2025
O sal do silêncio (123)
| Benvenutu Benvenuti, Alba em Padule, 1926 |
Sobre o paul, a aurora desliza com a serenidade das coisas geradas no silêncio. Nem o tumulto do dia, nem a perturbação do ocaso, nem a insegurança da noite: nada toca a irrupção da luz, que, no sossego inefável do mistério onde habita, se prepara para dissolver as trevas e serenar os corações tolhidos pela inquietação.
domingo, 6 de abril de 2025
Pulsar de Primavera (3)
sexta-feira, 4 de abril de 2025
A memória do ar (39)
| Charles Lapicque, Lagune Bretonne, 1959 |
Não há dedos que se cravem no ar, nem mãos que nele peguem e o transportem para outro lado. Fica onde quer, move-se invisível, mas nada nele é errático. Acidentais, são os nossos pensamentos sobre ele, não percebendo que o ir e vir, ora cobrindo a lagoa, ora procurando a floresta, é a sua forma de dançar. E dançar é a imobilidade daqueles cuja natureza é mover-se.
quarta-feira, 2 de abril de 2025
A sombra da água (39)
| Gustav Klimt, Moving Water, 1898 |
Os corpos são sombras de água na água do rio. Vão e vêm ao sabor do desejo, pois desejar é entrar numa corrente. Deixar-se balançar pelo ímpeto do caudal, que muda conforme as estações do ano, o poder da meteorologia e um segredo nunca desvendável. Em tudo, também na água do desejo, há um desconhecido a que olhos e ouvidos humanos estão, por um decreto inviolável, proibidos de aceder.
segunda-feira, 31 de março de 2025
Geometrias de fogo (39)
| Mário Cesariny, Figuras de sopro, 1947 (Gulbenkian) |
Ao fogo, trouxe-o o vento, numa tarde azul. Um sopro violento, saído da boca de um gigante, fá-lo rodopiar e desenhar estranhas figuras geométricas cujas nomes ninguém sabe. Então, ébrio, dança sobre a planície, enraíza-se na terra como uma árvore e estende a ramada das suas chamas para o céu. Das labaredas ergue-se fumo. Os corações tremem. Se for branco, é tempo de paz. Se for vermelho, os cavalos da guerra entregam-se à dor do galope.
sábado, 29 de março de 2025
Pulsar de Primavera (2)
| Bernardo Marques, Primavera (Gulbenkian) |
nas ruas repletas de gente
queima o sol quaresmal
despidas as árvores floriram
num acesso de ânimo
espero a luz da ressurreição
na manhã do domingo de páscoa
Março de 2025
quinta-feira, 27 de março de 2025
O Espírito da Terra (39)
| Gustav E. B. Trinks, Farbige Schatten, 1902 |
Sombras rasgam a brancura da terra. Ali, onde a neve se depositou, trazendo, no revérbero do sol, a cintilação ao dia, também a escuridão da noite se anuncia, como se as sombras fossem mensageiras do Reino da Noite. Mudas, dizem: o dia, sobre a terra, não é eterno. Também as trevas têm o seu lugar e a noite nunca, neste mundo, pode ser esquecida.
terça-feira, 25 de março de 2025
Biografias 34. O profeta
| James Van Der Zee, Barefoot Prophet: Elder Clayhorn Martin, Prophet Martin, 1929 |
Tem o futuro guardado dentro dos olhos e o passado oculto no coração. Alimenta-se de palavras e passa os dias em serena meditação. Como explicar os sinais e que sentidos infinitos se ocultam nos símbolos? Que presságios inscreve a ave, com o seu voo misterioso, no tecido transparente dos ares? Quando chega a hora, o profeta, descalço, sai de casa e procura a multidão que o aguarda. Então, a sua voz troa e os corações tremem. O mundo e os seus males infinitos são despidos sem pudor nem inocência. A arrogância dos grandes e a inveja dos pequenos recebem na miséria da sua pele a visite rude do chicote das palavras. Rendida a multidão, o profeta exausto volta para casa. Espera-o o calor do lar, as longas meditações sobre o futuro que dará um sentido ao passado.
domingo, 23 de março de 2025
Diálogos morais 68. Fantasia
| Eugene Robert Richee, Betty Grable, 1930s |
- Encosto-me a ti e sinto o teu corpo, quente e suave.
- Eu, pelo contrário, sinto a tua imagem fria e metálica.
- É uma conquista.
- Uma conquista?
- Pensava que, qualquer imagem, apenas fosse visível, afinal também me sentes.
- E...
- Terei também um corpo, ainda que frio e metálico.
- Não, não passas de uma imagem no espelho, uma fantasia.
- Estás enganada.
- Eu...?
- Sim, tu. Sou uma fantasia, mas...
- As fantasias não têm realidade, não há lugar para qualquer mas.
- Pelo contrário, sou uma fantasia e sonho-te.
- A mim.
- Sim, a ti. Sonho-te para te possas ver no espelho e eu possa existir.
sexta-feira, 21 de março de 2025
Pulsar de Primavera (1)
quarta-feira, 19 de março de 2025
Câmara discreta (26)
| Ray K. Metzker, City Whispers, Los Angeles, 1981 |
A geometria do espaço ergue-se como uma barreira invisível entre os olhos do espectador e o drama que sempre se desenrola no espaço público, como no palco de um pequeno teatro de província. O rigor das placas que cobrem a terra, a pureza formal do mobiliário e a própria racionalidade com que as sombras se projectam no chão, tudo isso forma uma cortina tão opaca que ninguém dá por ela. Os mais atentos ouvem sussurros e murmúrios vindos não sabem bem de onde, mas ninguém vê a dor que se espelha nos rostos dos actores ou o tormento que se abate sobre os corpos dobrados ao peso da luz.
segunda-feira, 17 de março de 2025
Arqueologias do espírito 31
| Cruzeiro Seixas, O Quarto do Gatuno, 1972 (Gulbenkian) |
O espírito nasce de um lento movimento de deserção. Movido pela coragem, abandona uma a uma as coisas onde repousou e tomou como disfarce, a máscara de um baile numa noite de Carnaval. Consciente do turbilhão, exausto pelo rodopiar das coisas no tempo, aparta-se e procura refúgio na solidão. Descobre-se, então, como aquele que é, a única realidade vivaz, o centro silencioso de onde tudo emana, mesmo as máscaras que usa na peregrinação pelos universos que dele nasceram.
sábado, 15 de março de 2025
Pintura e haikus (44)
quinta-feira, 13 de março de 2025
Inclinação de Inverno (12)
terça-feira, 11 de março de 2025
Impressões 126. A gramática da paisagem
| Giorgio Morandi, Paisaje, 1913 |
A beleza de uma paisagem nasce da gramática dos elementos: da sintaxe da orografia, da morfologia da vegetação, da fonologia do canto das aves ou do uivo dos lobos. Então, o todo rodopia num vórtice, mescla os elementos e entrega-se, perante o olhar incrédulo, a um jogo de impressões. A iminência de um novo mundo surge como num oráculo, para logo se dissolver em novas promessas de outros mundos, numa dança sem fim.
domingo, 9 de março de 2025
Histórias sem nexo 34. Correrias e competições
| Rafael Estrany, Cursa de cavalls |
Correm
cavalos como cães caídos no curso quente dos campos. Coligações de cavaleiros compram os caros quesitos do campeonato.
Cantam quebrados pelo calor. Compõem canções como se costurassem compostos químicos.
Cumprem o calendário que do quebranto do Carnaval conduz à comoção da Quaresma:
cavalos, cães, carros de competição no carbúnculo cravado na cruz do coração.
sexta-feira, 7 de março de 2025
Inclinação de Inverno (11)
José Manuel Espiga Pinto, Mapa
marcado com rasgão para entrada na sala de projecções simultâneas, 1973 |
inclino-me para dentro do
inverno
e oiço o grito do anjo da história
o pez da tempestade amainou
mas no lugar das rosas restam
ruínas
não sei se o prenúncio da primavera
me traz frio ou calor ao
coração
os dias navegam em mar incerto
o perigo espreita no silvar do
silêncio
Março de 2025
quarta-feira, 5 de março de 2025
Meditação breve (203) O tempo da indiferenciação
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