| Edvard Munch, Winter Night, 1900 |
Noite de inverno.
No prazer da solidão,
núpcias de neve.
| Santiago Rusiñol Prats, Jardin de Invierno, 1891 |
a estrada devoluta é uma sombra
no degelo da gramática invernal
as primeiras frases ressoam
trazem a luz do bosque arcaico
à solta na cidade sonâmbula
um rebanho de ménades em fúria
dança possuído pelo deus
canta o degelo na estrada vazia
Fevereiro de 2025
| Leopoldo Novoa, Aujourd'hui personne n'est venu, 1976 |
| Frederick Boissonas, Dans la Montagne, 1905 |
| László Meitner, Inverno em Paris (Gulbenkian) |
leio a segunda epístola de
inverno
na neblina nascida pela manhã
os olhos presos na cinza do céu
tremem no temor do cansaço
a cidade é um esboço delido
traçado pelo frio lápis de
carvão
fevereiro corre no coração dos
crentes
escutam a carta que ninguém escreveu
Fevereiro de 2023
| John Ruskin, A River in the Highlands, 1847 |
| Paula Rego, Ninho, 1972 (Gulbenkian) |
| Lucien Clergue, Bullfight, Arles, France, 1970-1979 |
O diestro olha, e nos olhos do touro vê os seus próprios olhos. Chegados à arena, tudo o que separava sacrificador e vítima sacrificial se confunde, como se a cintilação do traje de luces trouxesse não a sombra que cai sobre a praça, mas as trevas mais densas que, na tensão do confronto, o toureiro suspeita existirem antes e depois da vida. Se na praça se ouve um paso-doble, o homem na arena está surdo na sua solidão. O touro vai e vem, e a capa ondeia levada pelo vento nascido das mãos do lidador e da raiva cega do animal. Este, preso no horror, não vive no tempo, apenas naquele instante sem sentido, no frio momento despido de futuro. O tempo pertence àquele que maneja o estoque e decide a hora desse inocente onde se projecta a culpa do matador.
| Sergio Larrain, Bar, Valparaiso, Chile, 1963 |
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| André Kertész, Old Gentleman, Paris, 1926 |
| Bernardo Marques, Inverno (Gulbenkian) |
o inverno é um alçapão por onde
se entra no silêncio do mundo
desce-se pelos dias frios e
chega-se
pela curva corda do vento à mudez
ali se permanece sem biografia
sem a querela de cobre do
querer
as mãos abrem-se ao ritmo dos
dias
e deixam escapar o gérmen de um
gesto
Fevereiro de 2025
| Carlo Carra, Sera sul Lago, 1924 |
| Fernando Calhau, sem título #91 (Time - space) - Areia, 1977 (Gulbenkian) |
Nesta areia, esconde-se uma outra areia. Mais fina, grãos microscópicos onde, se aumentados sob o desejo hiperbólico do microscópio, existem mundos, terras extasiadas, aquecidas por sóis invisíveis, banhadas por oceanos sem nome, habitadas por povos que caíram na insignificância e que sobrevivem na sombra da sua infinita pequenez.
| Paul Cézanne, The Graden Terrace at Les Lauves, 1902-1906 |
o jardim silencia-se sob a luz
vesperal tocada pelo vento
a chuva compõe uma dança
na praça despovoada da
melancolia
da janela oiço ecoar um sino
quebrado pela turquês do tempo
o súbito voo de um corvo abre
a mudez do jardim à luz da palavra
Janeiro de 2025
| Umberto Boccioni, Drawing after "States of Mind: Those Who Go", 1912 |
| John Yardley, A book on the terrace |
| Max Ernst, sem título, 1920 |
| Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895 |
os cristais da manhã resplandecem
sob o lírio solar nascido na
aurora
durante a noite a vida coagulada
esconde-se no láudano da
quietude
enquanto a melopeia da morte
se entrega ao relampejo do
vento
vencida a provação das trevas
a vida ergue-se na levitação da
luz
| Charles Job, Pulborough Bridge, 1907 |
| Fernando Calhau, sem título #384, 1980 |
| Paul Gauguin, Village breton sous la neige, 1894 |
a pele de onça das tardes frias
estendeu-se como um véu sobre a
rua
os corações descompassados
tremem
esquecidos em metáforas mortas
uma invernia austera e sem nome
abre-se ao fogo-fátuo das
lareiras
caminho pelo meu coração
hesitante
sou o animal que vela o frio
das ruas
Janeiro de 2025
| John Ruskin, A River in the Highlands, 1847 |
| Modesto Urgell Inglada, Tempestad |