domingo, 30 de novembro de 2025

Biografias 39. O modernista

Man Ray, James Joyce, 1922
O modernista inclina a cabeça e recolhe-se. Pesa-lhe a gravidade do modernismo, atormenta-o o fluxo de consciência e não sabe o que fazer do tempo narrativo. Poderia fazê-lo explodir e criar uma narrativa sem tempo? Tudo nele se prende no ponto de vista da subjectividade, da perspectiva de um eu penso que corre atrás dos seus pensamentos, que, estilhaçados, borbulham na banheira gigante do cérebro. Ao diabo, o estilo único. O ideal seria um estilo diferente para cada frase ou, mesmo, para cada palavra, mas temos que nos contentar com uma variação estilística mais contida. O leitor não suportaria o excesso de realidade e a minha cabeça não pararia um instante até colapsar num universo impossível de habitar. Dói-me a cabeça de tanto modernismo.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Diálogos morais 73. Um barco

William Anckorn, Rêve d'Enfant, 1894

- Avô...

- Diz...

- Passas tanto tempo a fazer o teu barco.

- Não é fácil, e eu não sou um velho armador.

- Mas tanto tempo, deves gostar.

- Claro que gosto, mas não é por isso passo tanto tempo com o meu pequeno arco.

- Não...

- Não, é por necessidade.

- Mas não precisas desse barco para nada.

- Claro que preciso.

- É para não esqueceres o tempo em que andavas embarcado.

- Talvez.

- É uma reprodução do teu antigo barco?

- Não, é apenas o barco que um dia me levará para o mar distante.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Câmara discreta (31)

Francesca Woodman - Space², Providence, Rhode Island, 1975-1978
Um súbito rodopiar sobre si mesma, fruto de uma vertigem ou da volúpia do lugar, entrega a mulher à desfiguração. Enquanto volteia, perde a identidade, deixa de ser o que é, para se tornar uma outra. Uma árvore? Um anjo? Uma fera em busca da presa? Tudo isso nos é velado pelo cuidado da câmara, que apenas nos devolve um mistério, ao ocultar o fim da metamorfose e o nascimento virginal de uma nova identidade.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Silêncio de Outono (9)

Tomás Viver Aymerich, Apunte de paisaje

A vida recolhe-se

na sonolência

dos dias, no sangue

dos mártires

vivos na viragem da morte.

 

Ergo o lume da tarde,

um cântico preso

no coral de quem dorme.

 

Novembro de 2025

 

sábado, 22 de novembro de 2025

Arqueologias do espírito 36

Benvenuto Benvenuti, Cimiteretto, 1907

Houve um instante em que, no espírito do homem, se associou a disposição do cipreste e o impulso da alma para se elevar, na hora em que esta se desprendia do império da gravidade a que o corpo a submetia. Como um sinal de trânsito, a árvore, na sua beleza discreta, aponta para os céus, indicando o caminho que o espírito, agora entregue a si mesmo, tem de percorrer. O lugar dos mortos tornou-se assim, por efeito de uma imaginação fundada na analogia, a casa silenciosa onde os ciprestes se recolhem em reverência aos homens.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Impressões 131. A meio caminho

Delight Weston, Leaping Dancer, 1921
Já não é mulher, mas ainda não é pássaro ou anjo. Eleva-se para fugir à gravidade dos corpos e às inclinações do espírito. Falta-lhe, porém, a disciplina do voo. A queda é aquilo que a espera, mas de que fugirá, pois, agora, é um ser intermédio, a meio caminho do que foi e daquilo que deseja ser.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Silêncio de Outono (8)

Alson Skinner Clark, Autumn Blaze

Para o Sul partiram

as últimas aves.

Anuncia-se o que virá

buscar na sombra

a luz do pássaro perdido.

 

Deslizo pelo âmbar da tarde

e colho do chão

o silêncio de uma  folha caída.

 

Novembro de 2025

domingo, 16 de novembro de 2025

Meditação breve (208) Uma perda

Rodney Smith, Gary Descending Stairs, 1995
Perdemos a sabedoria das metamorfoses, a velha ciência que nos permitia a transformação numa outra coisa. Quem ainda sabe fazer de si uma sombra que passa? Os dias tornaram-se difíceis para as aprendizagens decisivas. Quando nos queremos sombra de nós mesmos, apenas ficamos esse nós que sempre fomos, sem poder sequer para ensombrecer.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Micronarrativa (78) O filósofo

Hans Watzek, Der Kiebitz, 1897

Enquanto uns jogam às cartas, reprimindo não sem dificuldade as emoções do jogo, ele veio apenas para observar. Não joga, não faz comércio, apenas detém o olhar pensativo sobre aquilo que acontece. Foi assim que há muito, diz-se, Pitágoras definiu pela primeira vez o filósofo, aquele que vai aos Jogos Olímpicos para contemplar aquilo que atrai as emoções e os interesses dos homens. 

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Silêncio de Outono (7)

Romà Vallés, Cosmogonies. Sèrie Color (6). 1962

Um rasto de romã e a tinta

do dióspiro

cobrem de carmesim

os que triunfam

na peregrina névoa da dor.

 

Na rua, abro-me à bênção

da água lustral,

o baptismo nas chuvas de Novembro.

 

Novembro de 2025

 

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Signo sinal 31. Uma mão

Moita Macedo, A mão que desenha, 1981 (Gulbenkian)
Uma mão nunca é apenas uma mão, mas um signo que se desdobra naquilo que com ela se realiza, se descobre, se projecta. Quando se abre ou se fecha, a mão é um sinal do pensamento e do coração, da razão que se expõe em motivos e do sentimento que abre em experiências.

sábado, 8 de novembro de 2025

Silêncio de Outono (6)

Milton Avery, Autumn, 1944

Estão colhidos os frutos

trazidos pelo Outono.

Os campos esperam a bênção

de todos os santos

silenciados nas ruas da cidade.

 

Deambulo pela memória

e oiço os mortos

nimbados no silêncio da luz.

 

Novembro de 2025