quinta-feira, 31 de julho de 2025

Biografias 37. O escritor

Loomis Dean, William Burroughs, Paris, 1959

Todo o escritor existe no acto de escrever, na inclinação do corpo para o teclado, na precisão com que os dedos chocam com cada uma das teclas, provocando um terramoto na folha de papel. O escritor reside na folha branca que se cobre de sinais, numa combinação de palavras que formam o seu lar. Abre a porta e percorre a casa. Os quartos, as salas, o escritório, as casas de banho a cozinha. Enquanto as percorre, a casa cresce, aumenta o valor do imóvel, e ele, inclinado sobre a máquina de escrever, vai descobrindo quem é, para além do nome que lhe deram, pois o nome é apenas um enigma que a vida lhe pôs no horizonte para desvendar, enquanto as folhas brancas se enchem de letras pretas, e os dedos, sem descanso, batem e batem em fúria, como se um rio se precipitasse para uma foz que nunca encontra.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Diálogos morais 71. Indignação

Robert Doisneau, La Dame Indignée, 1948

 - Não é possível.

- Como?

- Olhe para ali. Não, o melhor é não olhar.

- Decida-se. Olho ou não olho?

- Uma imoralidade.

- Uma imoralidade olhar?

- Não aquilo. Não olhe.

- Será que olhar me fará assim tão mal?

- Muito pior do que imagina.

- Então, porque não despega os olhos dali?

- Sinto-me mal.

- Olhou tanto… Chamo um médico?

- Morro.

- Morre, só por olhar?

- Não, morro de inveja.

domingo, 27 de julho de 2025

Câmara discreta (29)

Constantine Manos, Russia. USSR, 1965

Retratadas ficaram apenas a tristeza e a melancolia nostálgica de um sonho de juventude. Ciosamente escondidos pela arte do fotógrafa, a raiva e o desespero de viver ali, naquele lugar sem nome, onde tudo parecia já uma ruína vinda de um lugar há muito morto e esquecido. A pose de quem espera - e nesse esperar entrega o corpo à fotografia - é o contraponto de uma esperança que habitou, um dia, aquela mulher quando jovem. Os sonhos dos verdes anos feneceram rapidamente, num mundo onde o verde é já o amarelo das plantas estioladas e secas pelo calor do desencanto.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Virtudes de Verão (5)

Ando Hiroshige, A Great Wave by the Cost, 1832

procuro nas veredas do vento

a virtude da verdade

o cristal aceso da crença

 

as ondas deslizam na areia

batalhões de gaivotas

esperam o troar dos tambores

 

os meus olhos são um espelho

onde o voo das aves

derrama a verruma da vida

 

Julho de 2025

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Arqueologias do espírito 34

Dante Gabriel Rossetti, Ecce Ancilla Domini, 1850
A descoberta do espírito é, ao mesmo tempo, a descoberta de uma diferença radical entre aquele que é espírito num corpo e o que é puro espírito. A este, uma tradição antiquíssima deu-lhe o nome de senhor; aquele, a mesma tradição colocou-o no lugar de escravo. Não porque o senhor exija a escravatura, mas porque o corpo, com a sua subjugação ao império da necessidade, inclina o espírito encarnado à servidão~: não do senhor, mas de si mesmo, dos seus desejos, dos limites que lhe prescrevem a finitude. Quando o espírito finito se reconhece na sua finitude e se oferece como servo do senhor, nesse momento, começa a sua emancipação e o caminho da liberdade.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Haikai urbano (79)

Claude Monet, Charing Cross Bridge, 1899
 Névoa sobre névoa,
sombras são barcos no rio.
Secreta cidade.

sábado, 19 de julho de 2025

Impressões 129. Dança

Ana Hatherly, sem título, 1972 (Gulbenkian)
É indefinida a matéria do mundo, sem contornos nem ordem, apenas um conjunto de potencialidades que se actualizam conforme aprendemos a olhar para ela. É o reino do caos. O cosmos ordenado é a pura aparência que dança no nosso olhar.
 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Virtudes de Verão (4)

Max Pechstein, Verano en Nidden, 1920

temperar as paixões de cada dia

na água do mar

ou na erva-doce do esquecimento

 

um infinito desejo habita

a morada azul

de um corpo sem açaime

 

os córregos do pensamento

desenham mapas

de luz na geografia da vontade


(Julho de 2025)

 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Histórias sem nexo 37. Dores

Hendrick Ter Brugghen, Demócrito, 1628
Demócrito demonizava Doroteia. Desejava-a no dédalo da demência. Demandava-a deitada no divã. Dominava-o a dor do desdém, o duro desprezo da dulcíssima diva. Demónio, dizia, destroçado pelo desafecto. Doido, dardejou-a, destruindo-lhe o decoro no doce e divino domicílio.

domingo, 13 de julho de 2025

Meditação breve (206) Cantar

Constant Puyo, Chant Sacré, 1899

Não é porque tenha por motivo o sagrado que um canto se torna sagrado. É o próprio acto de cantar que é em si mesmo sagrado. Eleva a voz para uma realidade que transcende o uso quotidiano, o qual, sujeito aos imperativos do hábito, tornou a fala numa manifestação da queda dos homens no reino da trivialidade.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Micronarrativa (76) Deslizar

Bill Jacklin, The Rink, 1996

Deslizam sombras na brancura do rinque. Fantasmas vindos de mil passados encontram-se ali, para em silêncio rememorarem os tempos em que a vida lhes pertencia. Não festejam nem lamentam. Limitam-se a deslizar, pois a uma sombra nada mais é permitido do que uma colecção infinita de deslizes. 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Virtudes de Verão (3)

George Inness, Mañana, 1878

enfrento estes dias esculpidos

no vidro solar do mundo

com a coragem de um guerreiro

 

lanço às águas do mar o temor

do trevo azul do ocaso

e a incúria da exaltação

 

sou o prudente pastor e guio

o rebanho dos sonhos

por entre a erva crua da morte

 

Julho de 2025


segunda-feira, 7 de julho de 2025

Signo sinal 29. Solidão

Mario Sironi, Solitudine, 1925-26
Inscreve-se no rosto, abate-se sobre os ombros, cerra os lábios e inclina o olhar para terra. O corpo é então um sinal poderoso de uma queda ancestral, o signo do abandono na luz obscura do esquecimento. Um rápido olhar basta para decifrar o mistério e manifestar a verdade que atormenta quem foi tomado nas garras férreas da solidão.

sábado, 5 de julho de 2025

Haikai do Viandante (444)

Benvenuto Benvenuti, Mattino sul Mare, 1907
 de manhã o mar
abre-se ao vigor do estio:
viris vão os barcos

quinta-feira, 3 de julho de 2025

O sal do silêncio (125)

Mário de Oliveira, Benahadux, 1967
Diante das montanhas do silêncio, estendem-se, a perder de vista, as planícies de sal. Ali, nada cresce: nem florestas primitivas nem uma lavoura arcaica. Só o sal trabalha a terra, lavra-a para o esquecimento e abre-a para que a solidão se levante e encontre a sua casa nas montanhas banhadas pelo luar da mudez.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Virtudes de Verão (2)

Jacques Louis David, The Tennis Court Oath, 1791

em tribunal sem lei move-se

uma justiça urgente

a areia dos dias de verão

 

de sentença em sentença

o mundo arrasta-se

no pântano seco da glória

 

procuro julho nas sombras

de um mar saltimbanco

e adormeço no banco dos réus

 

Julho de 2025