sábado, 31 de maio de 2025

Meditação breve (205) Acusação

Dorothea Lange, The Defendant, Alameda County Courthouse, California, 1957

Toda a acusação contém em si um peso que recai sobre o acusado. Esse peso varia na proporção inversa ao grau de culpa.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (10)

León Kossoff, Red Brick School Building, Willesden, Spring, 1981

 a luz solar reverbera presa

na trama da tarde

 

homens passam submissos

à astenia primaveril

 

só os ciprestes dançam

na fluidez silenciosa do horizonte

 

Maio de 2025

terça-feira, 27 de maio de 2025

Micronarrativa (75) Imperativos

Alberto Quintana Salazar, Sonata Primavera
Como todas as outras estações, também a Primavera tem os seus imperativos. Chegam sob o véu da fantasia, erguem-se no silêncio descompassado dos corações e, na sua fluida eternidade, repercutem, no silêncio de quem escuta, a música das esferas celestes.

domingo, 25 de maio de 2025

Signo sinal 28. Sem raízes

Giorgio de Chirico, La recompesa del Adivino, 1913

Haverá um momento em que sobre a Terra já não haverá seres humanos, mas persistirão ainda as suas cidades, as casas, as ruas, as praças. Ninguém, porém, pensará sobre elas, olhará para a arquitectura e entregar-se-á ao prazer de as contemplar. Tudo terá entrado no nada, não porque tenha deixado de existir, mas porque não há pensamento que enraíze as coisas ao solo da Terra.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Pintura e haikus (45)

Sobral Centeno, sem título, 1982 (Gulbenkian)

seara de cores
sob o vento da planície
sombras de Verão

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (9)

León Kossoff, Dalston Lane, Monday Morning, Spring, 1974

os profetas da tarde irromperam

na ruína do sol matinal

 

as ruas juncadas de primaveras

rescendiam a incenso

 

sentado espero a profecia prometida

antes do advento da noite

 

Maio de 2025

segunda-feira, 19 de maio de 2025

O sal do silêncio (124)

Robert Liep, Gewittersturm, 1900

Uma tempestade assombra o silêncio, quebra-lhe as raízes, abre-o ao devir, como um amante intrépido se entrega ao cândido pavor de uma paixão. A terra treme e um trovão crava os dedos no ritmo errático do coração, onde o murmúrio da pulsação se oculta na glicínia da mudez.

sábado, 17 de maio de 2025

A memória do ar (40)

Todd Webb, Broadway at Wall Street, New York, 1959

O ar nocturno despe-se das memórias luminosas e paira sobre as suas presas como uma ave de rapina. Indiferentes ao perigo, homens e mulheres fendem o muro da escuridão, passam absortos sem olhar o próximo que com eles se cruza, entregando-se, não sem um secreto prazer, na tormentosa vertigem das trevas.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (8)

Benvenuto Benvenuti, Gli armenti - primavera, 1934

um ruído rude fere o rumor

no debrum da manhã

 

na lâmina do dia ergue-se

uma diáspora de aves

 

caminho de olhos postos

no silêncio da primavera

 

(Maio de 2025)

 

terça-feira, 13 de maio de 2025

A sombra da água (40)

Claude Monet, Water Lilies (The Clouds), 1903
Um vestígio do céu penetra nas águas, como uma sombra nublada feita de hábitos ancestrais. Também a natureza tem uma linhagem e uma herança. Por vezes, toma a forma de lei, outras é um jogo artístico, uma composição musical, onde a água que corre na Terra chama a que voa pelos céus.

domingo, 11 de maio de 2025

Geometrias de fogo (40)

Paula Rego, O Gigante de Minsky, 1958 (Gulbenkian)
O fogo é um animal selvagem: talvez um leão, talvez um leopardo, talvez um tigre. Tem garras afiadas para ferir aquilo em que toca, para queimar a pele da terra e incendiar os horizontes. Como o olhar de um grande felino, o fogo vibra na escuridão da noite. E, onde leva a luz, oferece também a escuridão das cinzas.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

O Espírito da Terra (40)

Jaime Morera y Galicia, Cabeza de Hierro. Guadarrama, 1891-97
Será nas montanhas que o espírito da Terra se refugia, quando a acção dos homens, tocados pela impiedade da dominação, abre, na frágil pele do planeta, escaras hediondas. O coração sangra. O corpo, rasgado pela dor, recolhe-se no alto. O espírito contempla então o desvario e entrega-se a uma terapia feita de distância e solidão.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (7)

Agnes Martin, Piedra Gris II, 1961

o que nos redimirá

do vazio aberto no coração

 

nem o pudor das orquídeas

nem a luz da manhã

 

apenas o silêncio nos salva

na incerteza deste dia

 

(Maio de 2025)

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Biografias 35. O pintor perdido

André Kertész, Piet Mondrian, Paris, 1926
O pintor oferece os seus olhos à câmara fotográfica para que esta, no fundo deles, encontre as linhas, as cores e as formas que o habitam. Ela, porém, teme o seu olhar, perde-se na rigidez da postura, no temor que o habita perante um mundo maquinal, e devolve-nos um artista sem a sua arte, um pintor sem a cor da sua pintura, um homem tomado no oceano da convenção.

sábado, 3 de maio de 2025

Diálogos morais 69. Mercado

Dorothea Lange, Consumer relations, San Francisco, 1952
- Não quero ir...
- Despacha-te, não podemos chegar atrasados.
- Dá-me colo.
- Os homens não andam ao colo.
- Sou uma criança e tu és a minha mãe.
- As crianças, também não. Estão à nossa espera.
- Não quero ir.
- Vamos...
- Vamos a onde?
- Vamos à loja comprar...
- Vamos, mesmo?
- Sim.
- E lá também se vendem mães?

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (6)

José Pedro Croft, Et Sic In Infinitum, sd (Gulbenkian)

pelas ruelas sem nome

passa o vento da primavera

 

traz o aroma do oceano

ao portfolio vazio da cidade

 

preso na passagem sem saída

abro o coração à tempestade

 

Maio de 2025