domingo, 29 de junho de 2025

A memória do ar (41)

Toni Schneiders, Fykesunds bru im Hardanger Fjord, 1959

Sob o ar tinto pela escuridão, esconde-se a garganta devoradora do abismo. O silêncio do infinito paira como uma velha memória recalcada, que, de súbito, emerge na consciência e ali fica a dançar. Um vento frio empurra a massa de ar, enquanto o viajante perdido se abre ao perigo e à promessa de salvação.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

A sombra da água (41)

Walter Barthels, Gewitterstimmung, 1902

Quando a tempestade se aproxima a galope num cavalo de escuridão, a água abre os seus braços para acolher a sombra das nuvens e o temor dos homens que, perante a iminência do perigo, se escondem no silêncio servil da solidão.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Geometrias de fogo (41)

Ângelo de Sousa, Pintura, 1974 (Gulbenkian)

Uma casa cor-de-fogo é uma promessa estival perdida nos olhos de quem a vê. Arde lentamente, fundida no silêncio do dia, para oferecer às paredes uma aparência de labareda, um rasgo de incêndio, um lençol de chamas. Assim composta, vai dedilhando as cores quentes como quem dedilha um rosário, numa oração que os olhos vêem e o coração trémulo recita contra o dragão da noite.

domingo, 22 de junho de 2025

Virtudes de Verão (1)

Jakob Alt, The Garden of Laudaya,1841

entro nos dias de verão

revestido com o manto

púrpura da prudência

 

abro as janelas e deixo

o ar marítimo dançar

a valsa vazia da noite

 

como um ulisses cansado

disfarço-me na prudente

pobreza de ser quem sou

 

Junho de 2025



 

sexta-feira, 20 de junho de 2025

O Espírito da Terra (41)

S. Rothenfusser, Aufnahme von S. Rothenfusser, München, 1899
A paisagem abre-se em caminhos rudes, velhas sendas que rasgam florestas e campos, para que os homens, em devoção ao espírito da Terra, os percorram e escutem a respiração do mundo, a canção que sobe das profundezas e se abre à luz vinda dos céus. Até que chegam a uma clareira. Aí encontram, na abertura, um lugar para meditar sobre a grande dívida que têm por essa Terra, a sua primeira e última mãe.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Biografias 36. A leitora

Gertrude Käsebier, Portrait of Martine McCulloch, 1910

A leitora não tem vida, tem livros. Entra neles, como quem entra na casa de um amante incansável. Percorre cada divisão para descobrir os segredos, mas a alma arde de desejo pelo corpo que todo o livro esconde. Ler é um lento trabalho de desocultação do amado que se esconde por detrás das palavras. Despe-o lentamente, deixando o seu corpo de leitora inflamar-se de desejo, perscrutando o enigma daquele ser, desvendando-lhe o mistério, procurando prolongar o prazer, antes que o desenlace traga o fim. Acabada a leitura, ergue-se e, como uma ninfa insaciável, procura na estante outro livro, como quem procura um novo amante.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Diálogos morais 70. Fidelidade

Frances Benjamin Johnston, Kritik, 1898

- Olhas-me, desconfiada.
- Não te pareces comigo.
- Não? O pintor tem a sua liberdade.
- Não estou a discutir arte, pedi o meu retrato.
- E ele fez-me a mim.
- Tu não és eu, não te pareces comigo.
- Um retrato nunca é o retratado.
- O pintor escusava de ser tão infiel.
- Não falemos de infidelidades.
- Acusas-me de alguma coisa?
- Dispenso os pormenores da tua vida.
- Dispensas…, não parece.
- O pintor, podes crer, foi fiel ao produzir-me.
- Fiel a quem? A mim, que lhe paguei?
- Não, a mim. Só eu conto para ele.

sábado, 14 de junho de 2025

Pulsar de Primavera (12)

Pierre de Chevannes, Verão, 1873

despeço-me da luz primaveril

espera-me a casa do estio

 

navego no oceano das estações

procuro um porto de abrigo

 

os dias são ondas passageiras

no calendário da navegação

 

Junho de 2025

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Câmara discreta (28)

Ralph Gibson, From the somnambulist (Hand and doorway), 1968
Esse preciso instante em que a mão se revela num gesto quotidiano é também a hora em que o corpo se oculta. A câmara, na ânsia da discrição, torna-se metonímica: representa o todo pela parte, como se o todo fosse um excesso para os olhos, uma ameaça mortal de quem se expõe, sem resguardo, à presença da totalidade do outro. 

terça-feira, 10 de junho de 2025

Arqueologias do espírito 33

Marc Chagall, O Mito de Orfeu, 1977

Sempre que escavamos, como bons arqueólogos, o solo do espírito, encontramos, camada a camada, o mito. Foi através dele que espírito entrou no mundo e ainda, nos dias de hoje, nos piores momentos da existência do homem, é a ele que recorre para espraiar uma sombra benévola - por vezes, perigosa e malévola - sobre a existência. Essas histórias bizarras - tantas vezes, absurdas - trazem, envoltas em sombras, solidez à vida e promessas para a morte. Mesmo quando o espírito se eleva às regiões mais puras do pensamento, é na terra do mito que as suas raízes penetram, para o alimentar e o reter ligado à vida.

domingo, 8 de junho de 2025

Haikai urbano (78)

Jack Delano, Foggy Night. New Bedford, Massachusetts, 1940

 Mistérios da noite
rasgam sombras na cidade.
Silvo no silêncio.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Pulsar de Primavera (11)

Jorge Barradas, Paisagem, 1965 (Gulbenkian)

 trazem a flor da incerteza

os dias de junho

 

regam-na com a luz do ócio

na tempestade da tarde

 

e ela floresce no saibro

sonoro do silêncio

 

Junho de 2025

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Impressões 128. Transfiguração

Henri Michaux, sem título, 1939
Estranhas metamorfoses ocorrem no interior da terra. Uma semente germina e, quando se manifesta à luz do sol, o que os olhos vêem é um novo animal, uma espécie ainda não catalogada, um ser que não se enquadra em nenhuma taxinomia. Tão espantosas são essas transformações que delas ninguém fala. Uns por medo, outros por reverência, outros porque não sabem o que dizer perante a desordem que irrompe no mundo e rasga o cenário onde todos habitam.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Histórias sem nexo 36. Tragédia

Rafael Barradas, Jugadores de naipes, 1917

Trasíbulo e Trajano trocaram tratados, traficaram, nas trevas, com tribos de trogloditas, transformaram, às trindades, tragédias e trenódias no troar trambiqueiro das trupes de truões. Trapaceiros e trapezistas treinados na trave tremeluzente da traição.