quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Câmara discreta (15)

George Platt Lynes, Fashion Photograph for Lord and Taylor, 1940
O rosto velado para que a câmara não se torne, na sua inocência culpada, indiscreta, pois tudo o que a alma esconde, a face torna manifesto. O corpo coberto para que os olhos apenas o adivinhem, pois não há visão mais aguda do que aquela que nasce do vaticínio. As mãos erguidas para que testemunhem a rendição ao momento em que a existência fugaz toca o limiar da eternidade, pois não há encontro mais perigoso do que aquele que reúne o ser efémero e a luz perpétua. 

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Haikai do Viandante (428)

José Júlio, Paisagem, 1958

Árvores despidas,
abertas à luz de Inverno.
O silêncio canta.

domingo, 28 de agosto de 2022

Meditação Breve (184) Entrelaçar

Ruth Matilda Anderson, Máxima Hernández García, 1928
Entrelaçamos os dias para compor o calendário com que construímos a passagem do tempo. É um modo de compor paisagens, não aquelas que se encontram no espaço e ferem os sentidos para que eles as não esqueçam, mas as que só o espírito, preso à cintilação do invisível, pode compor para dar um sentido ao que não tem sentido.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

O sal do silêncio (89)

Eugène Atget, Jardin du Luxembourg, 1902
O silêncio é uma terra distante perdida no país do passado. Nele, os homens habitam imersos na serenidade, cobertos pela certeza de que todo o ruído declinará na mais pura e mais desejada mudez. Sentam-se nos bancos de jardim e rodeados pela solidão sentem-se o sal da Terra.

sábado, 20 de agosto de 2022

Crónicas (221) A felicidade

Amelia C. Van Buren, Profile portrait of woman draped with a veil, 1917
(src 
L. of Congress)
O véu cobria-lhe a cabeça, nunca o rosto. Este oferecia-o ela aos olhos que nos seus se quisessem deter. Falto à verdade. Não era uma questão de querer, mas de poder. Movidos pelo desejo ou pela vaidade, muitos pretenderam olhá-la de frente, submetê-la. Nenhum o conseguiu. Mal os seus olhos se encontravam com os dela, não tinham outro remédio senão baixarem, vencidos por um poder que não era humano, diziam. Todos, porém, lhe conheciam pai e mãe. Tão humanos quanto eles. Os anos passaram e os pretendentes perderam a ousadia, desapareceram. Restei eu. Não tive mais coragem do que eles, apenas encontrei a hora certa. Quando a olhei, os seus olhos estavam mortos. A cegueira dela roubou-a à solidão e trouxe-me uma inesperada felicidade. Até hoje.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Impressões 103. Ondas

Artur Pastor, Oceano Atlântico, s/d
Grandes ondas como antigos impérios. Erguem-se e espalham a energia do seu poder, para logo decaírem na babugem do tempo, deixando um rasto de espuma que novas ondas, como antigos impérios, haverão de apagar, muito antes de o sol se pôr e a noite cobrir tudo com a luz pura das estrelas. 

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Câmara discreta (14)

Edouard Boubat, Ile Saint-Louis, Paris, 1975

Sem reprovação, a velha freira afasta o olhar para lugar indeterminado, enquanto o jovem leitor mergulha na trama narrativa de um romance. O amor dos outros é coisa que os deixa indiferentes. Só a câmara se entrega à contemplação do beijo indiscreto, para o fixar e, ao fazê-lo entrar na pequena eternidade humana, torná-lo na discreta memória de um amor de ocasião.

domingo, 14 de agosto de 2022

Sete Cartas - 7 Ao anjo de Laodiceia

Salvador Dali, Angel, 1947

Carta ao anjo de fogo e asas de gelo,

anjo definitivo arrebatado pelo voo,

preso à pele das mulheres de domingo,

as que trazem ramos no sulco das mãos.

Frésias, violetas ornadas de âmbar e água,

o pão escuro com que cobrem a fome,

a morna poeira das praças de Laodiceia.

 

Percutida, existe uma rosa em tua face,

a terrível beleza de um anjo,

e sobre a sombra da rosa mergulham

olhares enviesados e venais.

O muro que nos separa é uma cicatriz,

a fronteira que aparta o éter cintilante

da lama trazida pelas chuvas de Janeiro.

 

Uma pétala cai sobre a orvalho do jardim.

A rosa desfolha-se como uma ave cantante,

perdida de ramo em ramo.

Anjo, pássaro esquivo nimbado de nuvens.

Anjo, misericórdia divina no mar da ruína.

 

Eis que estou à tua porta e bato.

Até de madrugada, lutarei contigo.

Ferido trarei a luz e um outro nome

para que todos me reconheçam

no silêncio da noite e na mágoa de cada dia.

 

Depois, sobrevoarás as ruas de Laodiceia.

Com o olhar marcarás na carne salgada

o vigor da vida e o murmúrio da morte.

A rosa desfolhada reflorirá ao ritmo da luz

e a terrível beleza que alucina os homens

derramar-se-á no linho das mesas,

na face das mulheres esquecidas de si,

na cintilação dos olhos cansados do Inverno.

 

1993

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Micronarrativa (62) Gigantes

Paula Rego, O Gigante de Minsky, 1958

Ainda hoje se acredita, explicam-me, que havia, naqueles tempos, gigantes, cujo prazer maior era destroçar seres humanos. Acontecimentos tão antigos nunca são registados com o rigor a que estamos habituados, pensei. Talvez não houvesse qualquer gigante, contrapus em voz alta. Uma conjectura, uma mera conjectura, mas será sensata ou verosímil? A verdade, oiço, é que não faltam provas de seres humanos destroçados. Algum gigante há-de ter feito esses trabalhos. Encolhi os ombros e sorri.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Biografias 31. O ganhão

Aníbal Sequeira, O ganhão

Não escolheu ser ganhão, apenas o tempo passou por ele até o deixar ali, sem que ninguém perguntasse se esse era o seu desejo. Por vezes, pensava, teriam sido os animais a chamar por ele e, sem saber como, ouvira-os dentro da sua cabeça e pusera-se ao caminho. A vida rude precisa de gente rude, e ele era-o o suficiente. Se não o fosse, como teria sobrevivido às intempéries? Em criança, já os animais falavam dentro da sua cabeça, dizia a quem o ouvia, e, em silêncio, jurava-lhes que um dia estaria diante deles, conduzindo-os, para que o carro e a carga lhes fossem mais leves, para que ele os levasse ao lugar que os esperava e lhes desse de comer. Eles eram toda a sua família e não havia, na consciência de um ganhão, coisa mais importante que a família.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

O sal do silêncio (88)

F. Galifi Crupi, Taormina, antique Greek theatre, 1910s

Primeiro, chegou o silêncio. Veio em ondas gigantescas e arrastou para longe a voz dos actores, o aplauso do público, tragédias e comédias em que a vida se descobria e se ocultava. Depois, sobre as pedras veio o sal dos anos com o seu ofício de dissolução. Agora, restam ruínas de onde escorre o escárnio do esquecimento.

sábado, 6 de agosto de 2022

Haikai urbano (74)

Alfred Stieglitz, From My Window at An American Place, North, 1931

Desejo infinito
no coração da cidade.
Sombra de Babel.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Meditação Breve (183) Náufragos

Francis James Mortimer, Wreck of sailing ship Arden Craig, 1911
De uma maneira ou de outra, todos somos náufragos. O frágil navio com que navegamos as águas agitadas do oceano da existência acaba sempre por ceder a uma inesperada tempestade. Resta-nos ter à mão um bote e talvez cheguemos a terra firme.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Impressões 102. O mundo dos campos

Paul Strand, The White Barn, Luzzara, Italy, 1953
Tudo o que pertence ao mundo agrícola faz parte de um universo muito diferente daquele habitado pelo mundo das cidades. O ritmo das estações, pautado pelo erguer e declinar diário do sol, é impossível de comparar com o ritmo da vida citadina. À velocidade deste, responde a aparente imobilidade campestre. Não que o mundo rural seja imóvel, mas o eterno retorno do mesmo dá-lhe essa aparência e imprime em quem o habita um sinal de solidez e uma marca de sabedoria. 

domingo, 31 de julho de 2022

O Espírito da Terra (18)

Otto Scharf, Memento Mori, 1902
Também a morte faz parte do jogo sem fim em que se manifesta o espírito da Terra. Recordar-se como mortal é abrir uma das portas que levam à compreensão desse espírito, à solenidade com que ele cobre  de bênçãos tudo o que é finito.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

O sal do silêncio (87)

 P. Dittrich, Sphinx et Pyramide, 1880s

A esfinge olha o horizonte. Vê o desfiar dos dias, dos anos, dos séculos. Da sua boca, nem uma palavra se solta. Não é o seu destino, pensa, comentar os eventos que se sucedem sem parar. Há muito que descobriu no silêncio o sal de uma vida. 

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Arqueologias do espírito 28

Benvenuto Benvenuti, Cipresse e colombe, 1914

Terá sido decisivo o encontro que colocou os seres humanos perante os ciprestes. Mais que outras árvores, em que a linha que une a terra ao céu se dispersa em ramagens perdidas no caminho, nos ciprestes tudo se conjuga para que o olhar não se afaste do alvo que deve desejar. Não admira que, em certos lugares, o cipreste se tenha tornado árvore de cemitério. Não porque haja nela alguma coisa de fúnebre, mas porque simboliza esse velho desejo humano de elevação muito para lá do território que o corpo, por lhe pertencer, não poderá deixar. Ciprestes são símbolos que indicam o caminho. 

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Haikai do Viandante (427)

Emil Pröschel, Birken im Schnee,1908

Memórias de neve
no silêncio da montanha.
Fulgores de Inverno.
 

sábado, 23 de julho de 2022

Crónicas (220) Um comboio

Toni Schneiders, Train in landscape, 1950s
Não há memória de ali ter havido uma linha de caminho de ferro. Os poucos habitantes daqueles lugares ermos não sabem o que são carris ou comboios. O mais extraordinário era o maquinista. Na verdade, uma mulher sem idade, cujo rosto não era possível reter. Olhava-se para ele e logo o esquecíamos. Quando o comboio, uma composição movida a vapor, parou num lugar onde não havia qualquer estação, entrou um casal, ambos com uma idade muito avançada. Também eles se vão embora, ouviu-se. Ao som de um apito, a máquina pôs-se em movimento, arrastando carruagens velhas e sombrias. Enquanto se afastava tudo o que ficava para trás se apagava. Ao fim de alguns instantes, não havia vestígio de ter havido carris por onde um comboio pudesse passar. 

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Impressões 101. A obra

Thomas Hoepker, Inside the Antelope Canyon, 1995

O turbilhão do tempo rodopia por dentro da rocha porosa. Abre, com a lentidão dos milénios, pequenos sulcos, esculpe e cinzela a obra, até que esta, trespassada pela luz, se abre ao olhar extasiado de quem, por engano, ali deixa correr os seus passos.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Biografias 30. O maestro

Ernst Haas, Herbert Von Karajan, Salzburg, 1978

Um dia, ainda muito pequeno, tomou a estranha decisão de se alimentar de música, numa dieta que corria paralela à da alimentação do corpo. Começou, talvez sob a influência parental, por ouvi-la, fazendo grandes esforços para a reter, lutando com denodo para que essa música não fosse evacuada com o correr dos dias. Percorreu as múltiplas estações necessárias para que pudesse enfrentar uma orquestra e retirar dela o mundo sonoro que tinha dentro de si. Chegada a hora, sempre que voltava as costas ao público e olhava os músicos nos olhos, deixava que das suas mãos se evolasse esses mundos sonoros que o alimentaram durante anos e, por contágio, tomassem o coração da orquestra e saíssem, como arcanjos puros, por cada um dos instrumentos que pairavam diante dos seus olhos fechados.

domingo, 17 de julho de 2022

Câmara discreta (13)

Felix Muhr, Weiblicher Akt, 1907

Ensimesmada, a mulher funde-se na secreta natureza que, vinda do fundo dos tempos e do início do cosmos, chega até ela, para a acolher em seus braços, sob a forma de floresta. Sombras, árvores, folhas mortas e folhas vivas, são modos de a natureza se despir para acolher a nudez silenciosa daquela que, para se dar ao olhar, se esqueceu de si, cobrindo-se com o rumor do vento e o canto dos pássaros.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

O Espírito da Terra (17)

W. Rothermundt, Eckbauer bei Garmisch in Oberbayern, 1900

No agreste da montanha, a terra fala no silêncio com que acolhe a luz do dia e o céu estrelado da noite. Quando o vento assobia, se se encoleriza por algum desejo frustrado, a terra escuta-o, como se escutasse a voz de um deus perdido na floresta da solidão.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

O sal do silêncio (86)

Brett Weston, Forty-Seventh Street, New York, 1947
Há um silêncio que nasce da desmesura dos espaços, dessa arquitectura que brota de um velho rancor contra a humanidade. Ali, a vida perde todo o sal e reduz-se a ser apenas vida nua, na brutalidade que se esconde em toda a nudez de uma existência sem sabor.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Impressões 100. Regresso

R. Köhnen, Heimkehr, 1908

Nas águas, reflecte-se, como sombra impressa no tecido dos dias, os desejos mais secretos de quem partiu e agora chega ao porto, onde, em terra firme, se abrigará da inconstância das águas. De súbito, fecha os olhos e sonha a hora em que não haverá partida nem chegada, pois encontrou a morada que desde sempre lhe fora destinada.

sábado, 9 de julho de 2022

Câmara discreta (12)

Peter Turnley, L'Ile de la Cité, Paris, 1982

Dois destinos cruzam-se, mas nem as suas sombras se tocam. Cada um segue ensimesmado, perdido do outro, levado pelo desejo de chegar ao lado de lá, sem reparar que ali mesmo poderia encontrar um grande amor, o sentido último das suas vidas. Discreta, a câmara mostra esse momento em que esse futuro possível se fecha definitivamente. Quem ali passa nunca mais se tornará a cruzar. A vida não é outra coisa senão a ignorância daquilo que esteve mesmo à mão e se perdeu.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Haikai do Viandante (426)

Heinrich von Seggern, Heidelandschaft, 1908

O rebanho passa
no silêncio da charneca.
Um cordeiro bale.

terça-feira, 5 de julho de 2022

O Espírito da Terra (16)

 Lee Miller, Oasis village (Egypt), 1936
Se pensarmos no sistema solar a que pertencemos, a Terra é um pequeno oásis na imensidão desértica. Se olharmos para a própria Terra, também esta é um jogo entre o deserto e o oásis. Este é a diferença específica que distingue o planeta onde vive o homem de muitos outros que habitam os espaços celestes. E aquilo que distingue é a marca do espírito, desse espírito da Terra que vê em cada oásis um vestígio do paraíso.

domingo, 3 de julho de 2022

Meditação Breve (182) A declinação do espírito

Irving Penn, Three Asaro Mud Men, New Guinea, 1970
São tantas as formas em que a humanidade se declina que, por vezes, podemos pensar que a cada momento dela podem, como rebentos de uma planta vigorosa, estar a brotar novas e novas espécies. E, no entanto, para além de algumas distinções de aparência sem relevo, a unidade física dos seres humanos permanece constante. O que é radicalmente diferente é o espírito que os habita e às suas comunidades, como se esse espírito tivesse muitos rostos e os fosse mudando em conformidade com uma lei que a nossa razão desconhece.

sexta-feira, 1 de julho de 2022

O sal do silêncio (85)

Philipp Ritter Von Schoeller, Cécile, 1897
Esse momento em que o espírito se suspende e o corpo, mergulhado no silêncio, é tomado pelo temor da expectativa, esse momento em que um rumor trazido pelo vento anuncia um mundo novo que então se aproxima, esse momento em que um nome se rasga para que dentro da escura cegueira nasça a luz mais pura. Esse momento em que, após breve hesitação, tudo ganha o sal do sentido.