domingo, 14 de agosto de 2022

Sete Cartas - 7 Ao anjo de Laodiceia

Salvador Dali, Angel, 1947

Carta ao anjo de fogo e asas de gelo,

anjo definitivo arrebatado pelo voo,

preso à pele das mulheres de domingo,

as que trazem ramos no sulco das mãos.

Frésias, violetas ornadas de âmbar e água,

o pão escuro com que cobrem a fome,

a morna poeira das praças de Laodiceia.

 

Percutida, existe uma rosa em tua face,

a terrível beleza de um anjo,

e sobre a sombra da rosa mergulham

olhares enviesados e venais.

O muro que nos separa é uma cicatriz,

a fronteira que aparta o éter cintilante

da lama trazida pelas chuvas de Janeiro.

 

Uma pétala cai sobre a orvalho do jardim.

A rosa desfolha-se como uma ave cantante,

perdida de ramo em ramo.

Anjo, pássaro esquivo nimbado de nuvens.

Anjo, misericórdia divina no mar da ruína.

 

Eis que estou à tua porta e bato.

Até de madrugada, lutarei contigo.

Ferido trarei a luz e um outro nome

para que todos me reconheçam

no silêncio da noite e na mágoa de cada dia.

 

Depois, sobrevoarás as ruas de Laodiceia.

Com o olhar marcarás na carne salgada

o vigor da vida e o murmúrio da morte.

A rosa desfolhada reflorirá ao ritmo da luz

e a terrível beleza que alucina os homens

derramar-se-á no linho das mesas,

na face das mulheres esquecidas de si,

na cintilação dos olhos cansados do Inverno.

 

1993

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