terça-feira, 29 de abril de 2025

Câmara discreta (27)

Edward Steichen, On George Baher’s yacht, 1928

O mar coberto pela bruma fascina o olhar. Tudo se torna, então, um mistério. O balancear do barco, o ruído das águas, o bater apressado dos corações. Enquanto as mulheres se deixam enredar no silêncio da fantasia, nas mil possibilidades que aquela hora lhes apresenta à vertigem da vontade, o fotógrafo evita a indiscrição: esconde-lhes o olhar para não lhes prescrutar as almas. Respeita a imersão no sonho e a combustão do corpo. Evita desocultar as flores monstruosas do pensamento ou o latejar da vontade perdida na imensidão inominável do oceano.

domingo, 27 de abril de 2025

Arqueologias do espírito 32

Herbert Boeckl, Der Wörthersee, 1928

A vibração da cor e a sua multiplicidade e variabilidade sem fim são um indício do nascimento do espírito. A exuberância com que a paisagem se apresenta é o sinal de uma gravidez prestes a chegar ao fim. Então, nasce, na consciência do homem, um murmúrio, como se um vento suave lhe soprasse a face e o chamasse para dentro de si mesmo. Não, aquelas cores não são um fim, apenas a mediação entre aquele que olha a voz que o chama.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Haikai urbano (77)

Mac Adams, Mystery #17, 1976
 Negócios na rua
são a escura luz da noite:
sombra e solidão.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Pulsar de Primavera (5)

Umberto Boccioni, April Evening, 1908

o vento de abril trouxe

sobre a água o sangue solar

 

as ruas mancham-se de luz

as árvores sombreiam o chão

 

no murmúrio da cidade

sigo rente ao húmus da vida

 

Abril de 2024

domingo, 20 de abril de 2025

Impressões 127. Um coração terrível

Émile-René Ménard, La Bañista, 1913
Era como se um coração terrível sentisse, de repente, um torpor, a necessidade de oferecer o corpo è contemplação e esquecer a combustão de cada dia. No rumor matinal, a nudez é apenas a matéria friável do sossego, um desejo obscuro de pertença ao grande segredo da terra quando se abre ao silêncio do céu. 

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Histórias sem nexo 35. Fatalidades

Francisco Suñer, A la fiesta, 1981
Na fonte à fábrica dos fanqueiros, Felisberto e Feliciana falavam de Fernando, filho de faustosa família, ferrado em Fez. Falta, fez? O fungo do flagelo e o fogo das ferozes forças forraram a fidelidade da fábula. Ficou a famosa fé e a ferida funesta do fado. Foi-se, frisou Felisberto. Forte frente à falida fraqueza dos fregueses, fundamentou Feliciana. Fim fatal.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Meditação breve (204) O corpo nu

Robert Mapplethorpe, Patti Smith, 1976
Ao despir-se, a mulher oculta toda a sua nudez. Esta não nasce da exposição do corpo ao olhar, mas da fantasia que, na obscuridade do resguardo, ateia o fogo na visão de quem a deseja.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Pulsar de Primavera (4)

Léon Kossoff, Dalston Lane, Monday Morning, Spring, 1974

esculpo a sombra com o ritmo

da chuva ao cair nas ruas

 

um princípio de escândalo escande

o verso em que o dia se abre

 

os tempos estão estranhos

oiço na exaltação da tempestade

 

Abril de 2025

sábado, 12 de abril de 2025

Micronarrativa (74) Indistinção

Gustav Klimt, Schubert ao Piano, 1899
O que move aquelas mulheres? O amor da música ou o desejo do músico? Elas não o sabem, pois o seu ser é incapaz de distinguir o ritmo musical da gramática com que o ele se apresenta ao seu olhar. Conforme, os acordes irrompem, elas fecham os olhos e o que vêem é apenas aquela figura, que não é mais do que o desenrolar do ritmo com que o som vem à existência, paira por instantes e se desvanece no fundo dos seus corações.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Signo sinal 27. Sentido

Marc Chagall, Cain and Abel, 1911

A tragédia humana nasce não daquilo que meramente acontece, mas do poder que os homens trazem consigo de dar sentido ao que acontece. Se o assassinato de Abel por Caim fosse um mero evento, não haveria qualquer tragédia, apenas um facto no mundo natural. Mas é mais do que isso, pois foi transformado em signo que dá um sentido, que ilumina o acto e permite ver o que nele há de perverso.

terça-feira, 8 de abril de 2025

O sal do silêncio (123)

Benvenutu Benvenuti, Alba em Padule, 1926
Sobre o paul, a aurora desliza com a serenidade das coisas geradas no silêncio. Nem o tumulto do dia, nem a perturbação do ocaso, nem a insegurança da noite: nada toca a irrupção da luz, que, no sossego inefável do mistério onde habita, se prepara para dissolver as trevas e serenar os corações tolhidos pela inquietação.

domingo, 6 de abril de 2025

Pulsar de Primavera (3)

Mark Tobey, Coming and Going, 1970

a solidão dos domingos é caruma

caída no pinhal da primavera

 

seca e quebradiça cobre o chão

com o lençol agudo do tédio

 

a sangrar os pés põem-se a caminho

sobre o grito das agulhas dos pinheiros

 

Abril de 2025

sexta-feira, 4 de abril de 2025

A memória do ar (39)

Charles Lapicque, Lagune Bretonne, 1959
Não há dedos que se cravem no ar, nem mãos que nele peguem e o transportem para outro lado. Fica onde quer, move-se invisível, mas nada nele é errático. Acidentais, são os nossos pensamentos sobre ele, não percebendo que o ir e vir, ora cobrindo a lagoa, ora procurando a floresta, é a sua forma de dançar. E dançar é a imobilidade daqueles cuja natureza é mover-se.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

A sombra da água (39)

Gustav Klimt, Moving Water, 1898

Os corpos são sombras de água na água do rio. Vão e vêm ao sabor do desejo, pois desejar é entrar numa corrente. Deixar-se balançar pelo ímpeto do caudal, que muda conforme as estações do ano, o poder da meteorologia e um segredo nunca desvendável. Em tudo, também na água do desejo, há um desconhecido a que olhos e ouvidos humanos estão, por um decreto inviolável, proibidos de aceder.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Geometrias de fogo (39)

Mário Cesariny, Figuras de sopro, 1947 (Gulbenkian)
Ao fogo, trouxe-o o vento, numa tarde azul. Um sopro violento, saído da boca de um gigante, fá-lo rodopiar e desenhar estranhas figuras geométricas cujas nomes ninguém sabe. Então, ébrio, dança sobre a planície, enraíza-se na terra como uma árvore e estende a ramada das suas chamas para o céu. Das labaredas ergue-se fumo. Os corações tremem. Se for branco, é tempo de paz. Se for vermelho, os cavalos da guerra entregam-se à dor do galope.

sábado, 29 de março de 2025

Pulsar de Primavera (2)

Bernardo Marques, Primavera (Gulbenkian)

nas ruas repletas de gente

queima o sol quaresmal

 

despidas as árvores floriram

num acesso de ânimo

 

espero a luz da ressurreição

na manhã do domingo de páscoa

 

Março de 2025

quinta-feira, 27 de março de 2025

O Espírito da Terra (39)

Gustav E. B. Trinks, Farbige Schatten, 1902

Sombras rasgam a brancura da terra. Ali, onde a neve se depositou, trazendo, no revérbero do sol, a cintilação ao dia, também a escuridão da noite se anuncia, como se as sombras fossem mensageiras do Reino da Noite. Mudas, dizem: o dia, sobre a terra, não é eterno. Também as trevas têm o seu lugar e a noite nunca, neste mundo, pode ser esquecida.

terça-feira, 25 de março de 2025

Biografias 34. O profeta

James Van Der Zee, Barefoot Prophet: Elder Clayhorn Martin, Prophet Martin, 1929

Tem o futuro guardado dentro dos olhos e o passado oculto no coração. Alimenta-se de palavras e passa os dias em serena meditação. Como explicar os sinais e que sentidos infinitos se ocultam nos símbolos? Que presságios inscreve a ave, com o seu voo misterioso, no tecido transparente dos ares? Quando chega a hora, o profeta, descalço, sai de casa e procura a multidão que o aguarda. Então, a sua voz troa e os corações tremem. O mundo e os seus males infinitos são despidos sem pudor nem inocência. A arrogância dos grandes e a inveja dos pequenos recebem na miséria da sua pele a visite rude do chicote das palavras. Rendida a multidão, o profeta exausto volta para casa. Espera-o o calor do lar, as longas meditações sobre o futuro que dará um sentido ao passado.

domingo, 23 de março de 2025

Diálogos morais 68. Fantasia

Eugene Robert Richee, Betty Grable, 1930s

- Encosto-me a ti e sinto o teu corpo, quente e suave. 
- Eu, pelo contrário, sinto a tua imagem fria e metálica.
- É uma conquista.
- Uma conquista?
- Pensava que, qualquer imagem, apenas fosse visível, afinal também me sentes.
- E...
- Terei também um corpo, ainda que frio e metálico.
- Não, não passas de uma imagem no espelho, uma fantasia.
- Estás enganada.
- Eu...?
- Sim, tu. Sou uma fantasia, mas...
- As fantasias não têm realidade, não há lugar para qualquer mas.
- Pelo contrário, sou uma fantasia e sonho-te.
- A mim.
- Sim, a ti. Sonho-te para te possas ver no espelho e eu possa existir.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Pulsar de Primavera (1)

John Constable, Spring, East bergholt common, 1809-16 (?)

prendo as mãos nas águas

descidas de um céu sitiado

 

a memória embriaga-se

sob os vestígios do vento

 

sentado espero os pássaros

perdidos da primavera

 

Março de 2025


quarta-feira, 19 de março de 2025

Câmara discreta (26)

Ray K. Metzker, City Whispers, Los Angeles, 1981
A geometria do espaço ergue-se como uma barreira invisível entre os olhos do espectador e o drama que sempre se desenrola no espaço público, como no palco de um pequeno teatro de província. O rigor das placas que cobrem a terra, a pureza formal do mobiliário e a própria racionalidade com que as sombras se projectam no chão, tudo isso forma uma cortina tão opaca que ninguém dá por ela. Os mais atentos ouvem sussurros e murmúrios vindos não sabem bem de onde, mas ninguém vê a dor que se espelha nos rostos dos actores ou o tormento que se abate sobre os corpos dobrados ao peso da luz. 

segunda-feira, 17 de março de 2025

Arqueologias do espírito 31

Cruzeiro Seixas, O Quarto do Gatuno, 1972 (Gulbenkian)
O espírito nasce de um lento movimento de deserção. Movido pela coragem, abandona uma a uma as coisas onde repousou e tomou como disfarce, a máscara de um baile numa noite de Carnaval. Consciente do turbilhão, exausto pelo rodopiar das coisas no tempo, aparta-se e procura refúgio na solidão. Descobre-se, então, como aquele que é, a única realidade vivaz, o centro silencioso de onde tudo emana, mesmo as máscaras que usa na peregrinação pelos universos que dele nasceram.

sábado, 15 de março de 2025

Pintura e haikus (44)

Sol Lewitt, Irregular Vertical Color Band, 1991

solstícios de cor
sobre caminhos sem nome
chega a primavera

quinta-feira, 13 de março de 2025

Inclinação de Inverno (12)

Ricardo Asensio, Atardecer, 1968

destilo o álcool do entardecer

no alambique da paisagem

 

a chuva cai de um céu sem cor

privado de anjos e de estrelas

 

uma angústia de âmbar soa

nas cordas cruzadas do tempo

 

oiço ao beber o vinho da noite

o inverno na voz muda dos mortos

 

Março de 2025


terça-feira, 11 de março de 2025

Impressões 126. A gramática da paisagem

Giorgio Morandi, Paisaje, 1913

A beleza de uma paisagem nasce da gramática dos elementos: da sintaxe da orografia, da morfologia da vegetação, da fonologia do canto das aves ou do uivo dos lobos. Então, o todo rodopia num vórtice, mescla os elementos e entrega-se, perante o olhar incrédulo, a um jogo de impressões. A iminência de um novo mundo surge como num oráculo, para logo se dissolver em novas promessas de outros mundos, numa dança sem fim.

domingo, 9 de março de 2025

Histórias sem nexo 34. Correrias e competições

Rafael Estrany, Cursa de cavalls
Correm cavalos como cães caídos no curso quente dos campos. Coligações de cavaleiros  compram os caros quesitos do campeonato. Cantam quebrados pelo calor. Compõem canções como se costurassem compostos químicos. Cumprem o calendário que do quebranto do Carnaval conduz à comoção da Quaresma: cavalos, cães, carros de competição no carbúnculo cravado na cruz do coração.

sexta-feira, 7 de março de 2025

Inclinação de Inverno (11)

José Manuel Espiga Pinto, Mapa marcado com rasgão para entrada na sala de projecções simultâneas, 1973

inclino-me para dentro do inverno

e oiço o grito do anjo da história

 

o pez da tempestade amainou

mas no lugar das rosas restam ruínas

 

não sei se o prenúncio da primavera

me traz frio ou calor ao coração

 

os dias navegam em mar incerto

o perigo espreita no silvar do silêncio

 

Março de 2025


quarta-feira, 5 de março de 2025

Meditação breve (203) O tempo da indiferenciação

Robert Doisneau, Cour Carrée du Louvre, 1969

O segredo da infância reside na indiferenciação. Nesse tempo, ainda as múltiplas distinções estão longe de ser claras, apesar de família e escola as declinarem com energia e rigor. A criança resiste e, num animal, vê ainda um irmão - um igual que lhe permite sonhar com a eternidade de um mundo a que, em breve, será posto um fim irrevogável.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Micronarrativa (73) Cansaço

António Costa Pinheiro, Fernando Pessoa - Heterónimo, 1978 (Gulbenkian)

Cansei-me da homonímia, de transportar pela ruas, como quem caminha pelo infinito, o mesmo nome. Ser esse nome a cada hora não é apenas infausto, mas traz uma sonolência que, a partir de certa hora, é impossível resistir. Não criei outros eus, mas dei-me outros nomes, para poder resistir ao sono e ter todas as horas à minha disposição. Se um eu dorme, os outros estão de vigília. A vida é demasiado pobre para quem tem apenas um nome.

sábado, 1 de março de 2025

Inclinação de Inverno (10)

Maria Helena Vieira da Silva, Inverno, 1951

sento-me no desconforto dos dias

e bebo a cicuta da incerteza

 

o inverno estremece e hesita

como uma noiva a caminho do altar

 

dormente regurgito a paisagem

o destino afasta-se em silêncio

 

no ouro da dúvida os dias crescem

são pássaros poisados nas tílias

 

Março de 2025