sexta-feira, 9 de maio de 2025

O Espírito da Terra (40)

Jaime Morera y Galicia, Cabeza de Hierro. Guadarrama, 1891-97
Será nas montanhas que o espírito da Terra se refugia, quando a acção dos homens, tocados pela impiedade da dominação, abre, na frágil pele do planeta, escaras hediondas. O coração sangra. O corpo, rasgado pela dor, recolhe-se no alto. O espírito contempla então o desvario e entrega-se a uma terapia feita de distância e solidão.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (7)

Agnes Martin, Piedra Gris II, 1961

o que nos redimirá

do vazio aberto no coração

 

nem o pudor das orquídeas

nem a luz da manhã

 

apenas o silêncio nos salva

na incerteza deste dia

 

(Maio de 2025)

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Biografias 35. O pintor perdido

André Kertész, Piet Mondrian, Paris, 1926
O pintor oferece os seus olhos à câmara fotográfica para que esta, no fundo deles, encontre as linhas, as cores e as formas que o habitam. Ela, porém, teme o seu olhar, perde-se na rigidez da postura, no temor que o habita perante um mundo maquinal, e devolve-nos um artista sem a sua arte, um pintor sem a cor da sua pintura, um homem tomado no oceano da convenção.

sábado, 3 de maio de 2025

Diálogos morais 69. Mercado

Dorothea Lange, Consumer relations, San Francisco, 1952
- Não quero ir...
- Despacha-te, não podemos chegar atrasados.
- Dá-me colo.
- Os homens não andam ao colo.
- Sou uma criança e tu és a minha mãe.
- As crianças, também não. Estão à nossa espera.
- Não quero ir.
- Vamos...
- Vamos a onde?
- Vamos à loja comprar...
- Vamos, mesmo?
- Sim.
- E lá também se vendem mães?

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (6)

José Pedro Croft, Et Sic In Infinitum, sd (Gulbenkian)

pelas ruelas sem nome

passa o vento da primavera

 

traz o aroma do oceano

ao portfolio vazio da cidade

 

preso na passagem sem saída

abro o coração à tempestade

 

Maio de 2025


terça-feira, 29 de abril de 2025

Câmara discreta (27)

Edward Steichen, On George Baher’s yacht, 1928

O mar coberto pela bruma fascina o olhar. Tudo se torna, então, um mistério. O balancear do barco, o ruído das águas, o bater apressado dos corações. Enquanto as mulheres se deixam enredar no silêncio da fantasia, nas mil possibilidades que aquela hora lhes apresenta à vertigem da vontade, o fotógrafo evita a indiscrição: esconde-lhes o olhar para não lhes prescrutar as almas. Respeita a imersão no sonho e a combustão do corpo. Evita desocultar as flores monstruosas do pensamento ou o latejar da vontade perdida na imensidão inominável do oceano.

domingo, 27 de abril de 2025

Arqueologias do espírito 32

Herbert Boeckl, Der Wörthersee, 1928

A vibração da cor e a sua multiplicidade e variabilidade sem fim são um indício do nascimento do espírito. A exuberância com que a paisagem se apresenta é o sinal de uma gravidez prestes a chegar ao fim. Então, nasce, na consciência do homem, um murmúrio, como se um vento suave lhe soprasse a face e o chamasse para dentro de si mesmo. Não, aquelas cores não são um fim, apenas a mediação entre aquele que olha a voz que o chama.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Haikai urbano (77)

Mac Adams, Mystery #17, 1976
 Negócios na rua
são a escura luz da noite:
sombra e solidão.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Pulsar de Primavera (5)

Umberto Boccioni, April Evening, 1908

o vento de abril trouxe

sobre a água o sangue solar

 

as ruas mancham-se de luz

as árvores sombreiam o chão

 

no murmúrio da cidade

sigo rente ao húmus da vida

 

Abril de 2024

domingo, 20 de abril de 2025

Impressões 127. Um coração terrível

Émile-René Ménard, La Bañista, 1913
Era como se um coração terrível sentisse, de repente, um torpor, a necessidade de oferecer o corpo è contemplação e esquecer a combustão de cada dia. No rumor matinal, a nudez é apenas a matéria friável do sossego, um desejo obscuro de pertença ao grande segredo da terra quando se abre ao silêncio do céu. 

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Histórias sem nexo 35. Fatalidades

Francisco Suñer, A la fiesta, 1981
Na fonte à fábrica dos fanqueiros, Felisberto e Feliciana falavam de Fernando, filho de faustosa família, ferrado em Fez. Falta, fez? O fungo do flagelo e o fogo das ferozes forças forraram a fidelidade da fábula. Ficou a famosa fé e a ferida funesta do fado. Foi-se, frisou Felisberto. Forte frente à falida fraqueza dos fregueses, fundamentou Feliciana. Fim fatal.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Meditação breve (204) O corpo nu

Robert Mapplethorpe, Patti Smith, 1976
Ao despir-se, a mulher oculta toda a sua nudez. Esta não nasce da exposição do corpo ao olhar, mas da fantasia que, na obscuridade do resguardo, ateia o fogo na visão de quem a deseja.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Pulsar de Primavera (4)

Léon Kossoff, Dalston Lane, Monday Morning, Spring, 1974

esculpo a sombra com o ritmo

da chuva ao cair nas ruas

 

um princípio de escândalo escande

o verso em que o dia se abre

 

os tempos estão estranhos

oiço na exaltação da tempestade

 

Abril de 2025

sábado, 12 de abril de 2025

Micronarrativa (74) Indistinção

Gustav Klimt, Schubert ao Piano, 1899
O que move aquelas mulheres? O amor da música ou o desejo do músico? Elas não o sabem, pois o seu ser é incapaz de distinguir o ritmo musical da gramática com que o ele se apresenta ao seu olhar. Conforme, os acordes irrompem, elas fecham os olhos e o que vêem é apenas aquela figura, que não é mais do que o desenrolar do ritmo com que o som vem à existência, paira por instantes e se desvanece no fundo dos seus corações.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Signo sinal 27. Sentido

Marc Chagall, Cain and Abel, 1911

A tragédia humana nasce não daquilo que meramente acontece, mas do poder que os homens trazem consigo de dar sentido ao que acontece. Se o assassinato de Abel por Caim fosse um mero evento, não haveria qualquer tragédia, apenas um facto no mundo natural. Mas é mais do que isso, pois foi transformado em signo que dá um sentido, que ilumina o acto e permite ver o que nele há de perverso.

terça-feira, 8 de abril de 2025

O sal do silêncio (123)

Benvenutu Benvenuti, Alba em Padule, 1926
Sobre o paul, a aurora desliza com a serenidade das coisas geradas no silêncio. Nem o tumulto do dia, nem a perturbação do ocaso, nem a insegurança da noite: nada toca a irrupção da luz, que, no sossego inefável do mistério onde habita, se prepara para dissolver as trevas e serenar os corações tolhidos pela inquietação.

domingo, 6 de abril de 2025

Pulsar de Primavera (3)

Mark Tobey, Coming and Going, 1970

a solidão dos domingos é caruma

caída no pinhal da primavera

 

seca e quebradiça cobre o chão

com o lençol agudo do tédio

 

a sangrar os pés põem-se a caminho

sobre o grito das agulhas dos pinheiros

 

Abril de 2025

sexta-feira, 4 de abril de 2025

A memória do ar (39)

Charles Lapicque, Lagune Bretonne, 1959
Não há dedos que se cravem no ar, nem mãos que nele peguem e o transportem para outro lado. Fica onde quer, move-se invisível, mas nada nele é errático. Acidentais, são os nossos pensamentos sobre ele, não percebendo que o ir e vir, ora cobrindo a lagoa, ora procurando a floresta, é a sua forma de dançar. E dançar é a imobilidade daqueles cuja natureza é mover-se.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

A sombra da água (39)

Gustav Klimt, Moving Water, 1898

Os corpos são sombras de água na água do rio. Vão e vêm ao sabor do desejo, pois desejar é entrar numa corrente. Deixar-se balançar pelo ímpeto do caudal, que muda conforme as estações do ano, o poder da meteorologia e um segredo nunca desvendável. Em tudo, também na água do desejo, há um desconhecido a que olhos e ouvidos humanos estão, por um decreto inviolável, proibidos de aceder.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Geometrias de fogo (39)

Mário Cesariny, Figuras de sopro, 1947 (Gulbenkian)
Ao fogo, trouxe-o o vento, numa tarde azul. Um sopro violento, saído da boca de um gigante, fá-lo rodopiar e desenhar estranhas figuras geométricas cujas nomes ninguém sabe. Então, ébrio, dança sobre a planície, enraíza-se na terra como uma árvore e estende a ramada das suas chamas para o céu. Das labaredas ergue-se fumo. Os corações tremem. Se for branco, é tempo de paz. Se for vermelho, os cavalos da guerra entregam-se à dor do galope.

sábado, 29 de março de 2025

Pulsar de Primavera (2)

Bernardo Marques, Primavera (Gulbenkian)

nas ruas repletas de gente

queima o sol quaresmal

 

despidas as árvores floriram

num acesso de ânimo

 

espero a luz da ressurreição

na manhã do domingo de páscoa

 

Março de 2025

quinta-feira, 27 de março de 2025

O Espírito da Terra (39)

Gustav E. B. Trinks, Farbige Schatten, 1902

Sombras rasgam a brancura da terra. Ali, onde a neve se depositou, trazendo, no revérbero do sol, a cintilação ao dia, também a escuridão da noite se anuncia, como se as sombras fossem mensageiras do Reino da Noite. Mudas, dizem: o dia, sobre a terra, não é eterno. Também as trevas têm o seu lugar e a noite nunca, neste mundo, pode ser esquecida.

terça-feira, 25 de março de 2025

Biografias 34. O profeta

James Van Der Zee, Barefoot Prophet: Elder Clayhorn Martin, Prophet Martin, 1929

Tem o futuro guardado dentro dos olhos e o passado oculto no coração. Alimenta-se de palavras e passa os dias em serena meditação. Como explicar os sinais e que sentidos infinitos se ocultam nos símbolos? Que presságios inscreve a ave, com o seu voo misterioso, no tecido transparente dos ares? Quando chega a hora, o profeta, descalço, sai de casa e procura a multidão que o aguarda. Então, a sua voz troa e os corações tremem. O mundo e os seus males infinitos são despidos sem pudor nem inocência. A arrogância dos grandes e a inveja dos pequenos recebem na miséria da sua pele a visite rude do chicote das palavras. Rendida a multidão, o profeta exausto volta para casa. Espera-o o calor do lar, as longas meditações sobre o futuro que dará um sentido ao passado.

domingo, 23 de março de 2025

Diálogos morais 68. Fantasia

Eugene Robert Richee, Betty Grable, 1930s

- Encosto-me a ti e sinto o teu corpo, quente e suave. 
- Eu, pelo contrário, sinto a tua imagem fria e metálica.
- É uma conquista.
- Uma conquista?
- Pensava que, qualquer imagem, apenas fosse visível, afinal também me sentes.
- E...
- Terei também um corpo, ainda que frio e metálico.
- Não, não passas de uma imagem no espelho, uma fantasia.
- Estás enganada.
- Eu...?
- Sim, tu. Sou uma fantasia, mas...
- As fantasias não têm realidade, não há lugar para qualquer mas.
- Pelo contrário, sou uma fantasia e sonho-te.
- A mim.
- Sim, a ti. Sonho-te para te possas ver no espelho e eu possa existir.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Pulsar de Primavera (1)

John Constable, Spring, East bergholt common, 1809-16 (?)

prendo as mãos nas águas

descidas de um céu sitiado

 

a memória embriaga-se

sob os vestígios do vento

 

sentado espero os pássaros

perdidos da primavera

 

Março de 2025


quarta-feira, 19 de março de 2025

Câmara discreta (26)

Ray K. Metzker, City Whispers, Los Angeles, 1981
A geometria do espaço ergue-se como uma barreira invisível entre os olhos do espectador e o drama que sempre se desenrola no espaço público, como no palco de um pequeno teatro de província. O rigor das placas que cobrem a terra, a pureza formal do mobiliário e a própria racionalidade com que as sombras se projectam no chão, tudo isso forma uma cortina tão opaca que ninguém dá por ela. Os mais atentos ouvem sussurros e murmúrios vindos não sabem bem de onde, mas ninguém vê a dor que se espelha nos rostos dos actores ou o tormento que se abate sobre os corpos dobrados ao peso da luz. 

segunda-feira, 17 de março de 2025

Arqueologias do espírito 31

Cruzeiro Seixas, O Quarto do Gatuno, 1972 (Gulbenkian)
O espírito nasce de um lento movimento de deserção. Movido pela coragem, abandona uma a uma as coisas onde repousou e tomou como disfarce, a máscara de um baile numa noite de Carnaval. Consciente do turbilhão, exausto pelo rodopiar das coisas no tempo, aparta-se e procura refúgio na solidão. Descobre-se, então, como aquele que é, a única realidade vivaz, o centro silencioso de onde tudo emana, mesmo as máscaras que usa na peregrinação pelos universos que dele nasceram.

sábado, 15 de março de 2025

Pintura e haikus (44)

Sol Lewitt, Irregular Vertical Color Band, 1991

solstícios de cor
sobre caminhos sem nome
chega a primavera

quinta-feira, 13 de março de 2025

Inclinação de Inverno (12)

Ricardo Asensio, Atardecer, 1968

destilo o álcool do entardecer

no alambique da paisagem

 

a chuva cai de um céu sem cor

privado de anjos e de estrelas

 

uma angústia de âmbar soa

nas cordas cruzadas do tempo

 

oiço ao beber o vinho da noite

o inverno na voz muda dos mortos

 

Março de 2025


terça-feira, 11 de março de 2025

Impressões 126. A gramática da paisagem

Giorgio Morandi, Paisaje, 1913

A beleza de uma paisagem nasce da gramática dos elementos: da sintaxe da orografia, da morfologia da vegetação, da fonologia do canto das aves ou do uivo dos lobos. Então, o todo rodopia num vórtice, mescla os elementos e entrega-se, perante o olhar incrédulo, a um jogo de impressões. A iminência de um novo mundo surge como num oráculo, para logo se dissolver em novas promessas de outros mundos, numa dança sem fim.