domingo, 29 de dezembro de 2024

Inclinação de Inverno (2)

José Dominguez Alvarez, sem título

domingos de sol e frio são sinais

de uma invernia hesitante

 

como sombras passam pelas ruas

homens sem ofício sem destino

 

e nos ombros das mulheres poisam

aves de seda e cintilações de neve

 

enquanto a força mercurial do dia

se desvanece no tropo do crepúsculo

 

Dezembro de 2024



sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Haikai do Viandante (441)

Salvador Dali, Cadaqués, 1917

Paisagens de Inverno,

entre o silêncio do mar

e as sombras dos campos.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Impressões 124. O tempo da harmonia

Paul Signac, Au temps d'harmonie, 1894

Em tudo o tempo é o motor da dissonância, do desacordo e da oposição. Só a supressão do despotismo da duração pode trazer a seda suave da concórdia. Quando se pensa num tempo de harmonia, constrói-se uma impressão fantasiosa ou expressa-se a sombra de um desejo.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Inclinação de Inverno (1)

Camille Pissarro, Manhã de Inverno no Boulevard de Montmartre

de súbito o inverno germinou

no frio da terra desamparada

 

o deus dos campos recolheu-se

as aves cruzam os ares da cidade

 

vestígios do ouro dos dias quentes

ecoam no murmúrio do meio-dia

 

a desolação de campos e prados

resplandece no néon das avenidas

 

Dezembro de 2024


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Meditação breve (201) Suspender o tempo

Rolando Sá Nogueira, sem título, 1959 (Gulbenkian)

Suspender o tempo e fixar o instante não é um prenúncio de eternidade, mas a destruição da narrativa. Se vemos um homem e uma mulher num banco de jardim, podemos descrever essa imagem, mas jamais saberemos se se estão a aproximar ou a afastar. É imperioso o retorno do tempo para que a narrativa encontre o que contar e revele o mistério que toda a imagem oculta.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Micronarrativa (71) Viagem

Querubim Lapa, sem título, 1947

Não tinham destinam, mas caminhavam. A terra queimava-lhes os pés nus. O coração, porém, era um monte de cinzas, o resto de pequenos fogaréus que o tempo ateou e, de imediato, apagou. Não é a ira, nem a alegria ou a resignação que lhes alimenta a viagem, mas o não saber o que os espera. A sabedoria conduz à imobilidade. A ignorância ao nomadismo selvagem, como se fugissem de um inimigo mudo e sem rosto.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Signo sinal 24. Línguas de fogo

Raimundo de Oliveira, Pentecostes, 1964 (Gulbenkian)

A súbita irrupção de línguas de fogo abriu os homens ao incêndio de uma revolução vocabular. Das planícies dos céus caíram palavras em forma de labaredas sobre o lago das águas silenciosas. A mudez foi rasgada, e a fala brotou em todas as línguas conhecidas e desconhecidas, em todos os idiomas vivos, mortos e por nascer. Ouviram-se palavras que nunca poderiam ser ditas, pois a sua existência pertencia ao grande império do impossível.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (12)

Claude Monet, A ponte de Waterloo, 1903

os dias cederam à tentação

do frio agreste

sem a graça do tempo brando

 

a paisagem é um retalho

de cinza e brancura

um horizonte de sombras hostis

 

nas pontes os homens passam

leva-os a água

do cansaço e o vinho da solidão

 

Dezembro de 2024


quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Haikai urbano (76)

William Klane, Big face, front of Macy's, New York, 1955

Estranhos na noite

caminham pela cidade.

Sombras e ciladas.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

O sal do silêncio (120)

Benvenuto Benvenuti, Cipressi e colombe, 1906-7

São árvores silenciosas, os ciprestes. Ao seu redor, geram-se clareiras de onde brota o silêncio que, como um sal arcaico, salga a terra, de onde brotará a palavra que, ao emudecer, diz a verdade, essa verdade com o peso de uma promessa e a leveza da eternidade.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (11)

Amadeo Souza-Cardoso, Étude A [Gëmalde A / Quadro A], 1913 (Gulbenkian) 

a gramática outonal dissolve-se

o caos instala-se

no fraseado da estação

 

colheitas e vindimas esquecidas

cheios de silêncio

dormem adegas e celeiros

 

na cidade incandescente

ouve-se a voz do frio

ecoa nas janelas fechadas

 

Dezembro de 2024


quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A memória do ar (36)

Pietro Sarto, Bassin Lemanique, 1981 (Gulbenkian)

Rarefeito, o ar é apenas uma memória longínqua, o lírio esquecido na encosta da montanha, a vagem da inocência desprendida da terra. Vindo do vazio, emerge em turbilhão, desconcerta a ordem do mundo, para logo se encerrar nas cavernas rasgadas nos cumes mais altos, onde adormece no silêncio das estrelas mortas.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A sombra da água (36)

Francis Smith, Le Port à Honfleur, 1958 (Gulbenkian)

Portos são grandes armazéns de segredos e mistérios. Neles, se conjuga a sombra oceânica da água e a assombração dos navegadores. O marulhar da ondulação no cais é a música encantatória por onde se perdem, em noites sem mácula, a virgindade dos segredos e a textura dos mistérios.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (10)

Alfred Sisley, Bank of the Seine in Autumn, 1876

despido chegou dezembro

um dia de cinza

no declínio do outono

 

o ano tece a sua rede

a caligrafia incerta

no palácio da desordem

 

um rumor rasga as ruas

abre-as ao fulgor

da penúria e à luz da morte

 

Dezembro de 2024