quarta-feira, 6 de março de 2013

A lei e a vida

Wassily Kandinsky - A vida multicolor (1907)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição. Porque em verdade vos digo: Até que passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da Lei, sem que tudo se cumpra. Portanto, se alguém violar um destes preceitos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será o menor no Reino do Céu. Mas aquele que os praticar e ensinar, esse será grande no Reino do Céu. (Mateus 5,17-19) [Comentário de Bento XVI aqui]

Poder-se-á perguntar que perfeição é essa que o cristianismo traz à lei mosaica e aos Profetas. A resposta mais evidente diz-nos que a misericórdia e o amor ao próximo são as perfeições que tornam a lei mais adequada aos homens. Isso é verdade, mas o texto deixa perceber uma tensão já várias vezes detectada nas leituras que estão a ser feitas. A lei é composta por mandamentos, ordens, proibições. Sendo assim, ela é compreendida como algo exterior ao sujeito, como uma imposição que lhe vem de for. A tensão que está em causa é entre a lei e a vida, entre o exterior e o interior.

A lei com o seu cortejo de obrigações e proibições choca com a espontaneidade da vida. Esta espontaneidade é vista como aquilo que precisa de ser domado. A lei é esse exercício de domesticação de uma vida transbordante, onde os impulsos dionisíacos se fazem sentir, ameaçando a comunidade e os indivíduos de dissolução. A severidade do código mostra-nos bem a potência da vida e o fulgor dos impulsos que havia que domar. A exterioridade da lei, contudo, gerava o formalismo farisaico e o sentimento de estranheza perante essa obrigação imposta de cima e de fora.

A perfeição trazida por Cristo refere-se ao rasgar do véu da interioridade para tornar patente aquilo que os impulsos e os desejos ocultavam. No fundo do homem, reside também o amor e a misericórdia, há uma bondade que se deve manifestar enquanto vida. Não se trata de uma invenção exterior, mas de um trazer à luz aquilo que também faz parte da natureza humana, e que as múltiplas figuras da alienação continuamente obscureciam. A perfeição trazida é uma revelação, mas uma revelação do que já estava aí. Com a vinda de Cristo trata-se de viver isso que estava oculto, trata-se, como diz o texto, de praticar e de ensinar. A lei não é abolida, mas a vida encontra um caminho que, sendo vivido, dispensa a vigilância exterior da lei.

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