terça-feira, 30 de setembro de 2025

Arqueologias do espírito 35

Eduardo Nery, Escada Mística, 1972 (Gulbenkian)
A primeira vez que a um homem terá ocorrido construir uma escada, ainda que de degraus imperfeitos, não foi, por certo, o momento inicial em que desejou elevar-se acima da terra e vencer a gravidade. O espírito, quando os olhos se erguiam para os céus, há muito desejava elevar-se. A escada foi uma resposta a esse desejo de contrariar a natureza, mas também o símbolo futuro da possibilidade de elevar-se. Elevar o corpo e libertá-lo do constrangimento da matéria. Elevar o espírito para além das preocupações quotidianas. Mais do que um dispositivo arcaico, a escada é a realização de um desejo vindo do fundo do tempo.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Silêncio de Outono (1)

Benvenuto Benvenuti, Mattino, 1935-1940

As folhas caem em silêncio.

Os três arcanjos

murmuram uma canção

feita de vento

e corolas de estrelas matinais.


Estremeço e abro as mãos

para o fogo ateado

nas águas negras do oceano.

 

Setembro de 2025

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Impressões 130. Tristeza

George Seurat, Industrial Suburb, 1882-1883

Mais do que fealdade, há paisagens criadas pelos homens que trazem nelas uma tristeza desmedida. Olha-se e não é o impacto estético negativo que assoma em primeiro lugar, mas uma infinita mágoa, como se aqueles lugares fossem a emanação de um suplício sem motivo nem fim.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Meditação breve (207) O secreto talento

Adolph Miethe, Dreifarbenaufnahme: nach der natur, 1903

A natureza desdobra-se em pequenos presentes, que os homens recebem sem pensar no incansável trabalho da terra. O que é belo parece emanar da facilidade, quando, na verdade, como o escreveu um velho filósofo grego, o que é belo é difícil. E é neste mostrar como fácil aquilo que é, na sua essência, difícil, que reside o secreto talento da natureza. 

domingo, 21 de setembro de 2025

Micronarrativa (77) Fantasias

Guilherme Camarinha, Jardim das Artes, 1967 (Gulbenkian)
Como uma sombra, o viajante percorre o jardim. Pensa-o, a princípio, uma emanação do paraíso, mas deste, recorda, os homens tinham sido expulsos. Depois, enquanto a viagem avança, descobre que aquele é lugar de todas as fantasias. Estas são flores belas e perigosas. Aguardam ali que lhes tragam água e sol, para lançaram a sua sombra sobre o mundo. 

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Haikai do Viandante (445)

Adolfo Guiard, Amanecer, 1910


 Secreta manhã
desce no silêncio dos campos:
sonhos de Outono

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (12)

Vincent Van Gogh, Camineros en el Boulevard de Victor Hugo en Saint-Rémy, 1889

semeio um grão de perseverança

no campo húmido

pelos primeiros frios matinais

 

ergo os ombros e enfrento

as tentações do estio

o deslassar da vida no gruir do tempo

 

uma porta abre-se e o infinito

oferece-me uma estrada

um caminho sem princípio nem fim


Setembro de 2025

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Signo sinal 30. Peregrinar

Edward Burne Jones, Pilgrim at the Gate of Idleness, 1875-1893

Ao umbral do ócio, chega o peregrino. Carrega os signos da viagem e enfrenta o sinal da lassidão. Peregrinar é procurar no mundo os sinais do destino e carregá-los com os signos do sentido.

sábado, 13 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (11)

Salvador Dali, Playa encantada con tres Gracias fluídas, 1938

pela graça da sombra de setembro

derramo a água dançante

da gratidão

 

grato pelo murmúrio da manhã

grato pelo troar da tarde

grato pelo navio da noite

 

sulco o oceano da obrigação

preso na armadura

translúcida do reconhecimento

 

Setembro de 2025

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

A memória do ar (42)

Dmitri Kessel, Venice, Italy, 1952

Há cidades que, como as plantas, surgem da terra, onde têm as suas raízes e de onde tiram a inspiração que as guia no seu destino. Outras, porém, mais raras, descem dos céus e poisam, ao de leve, cercadas de água, num solo que nunca deixa de lhes ser estranho. São cidades etéreas e o seu elemento é o ar. Dele se alimentam e aguardam a hora que, elevando-se , voltarão em silêncio ao céu.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (10)

William Blake, Every man also gave him a piece of money

sob o suplício de um sol sem piedade

distribuo pelo mundo os frutos

frescos da compaixão

 

tâmaras em vinho envelhecido

uvas no silêncio da noite

damascos a quem se perdeu no deserto

 

abro a mão da água que recebi

e deixo um rio deslizar

para as bocas cariadas pela sede

 

Setembro de 2025

domingo, 7 de setembro de 2025

A sombra da água (42)

Franz Goerke, Am Luganer See, 1903
Lagos são mistérios amparados na orografia da Terra, segredos vindos de tempos arcaicos que ninguém decifra. Durante o dia, as águas entregam-se à vigília, para que homens e animais possam encontrar uma fonte de vida. À noite, porém, o lago é o leito onde, ao adormecerem, as águas sonham os mundos de onde vieram e aqueles que as esperam. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (9)

John Ruskin, A River in the Highlands, 1847

pastoreio os dias de setembro

sentado no pacífico

prado da paciência

 

olho em silêncio as águas do rio

e mergulho na sombra

da tília da tarde

 

terminou o tempo de revolta

o fogo arde

na brandura do coração

 

Setembro de 2025
 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Geometrias de fogo (42)

Emil Nolde, Landscape in Red Light
O vermelho da paisagem é uma máscara onde o fogo se protege dos tormentos da água e se esconde dos devaneio do vento. Então, deixa pairar sobre a terra uma luz de bronze, onde a fantasia da tarde caminha irreverente para a lassidão apaziguada do crepúsculo.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (8)

Carlos Prado, Barredores de calle, 1935

soçobrar no vento que corre

humílima folha

caída sob o sol de agosto

 

de lado deixo o dardo de ferro

a água da presunção

o diadema no sal da altivez

 

virtuoso observo o horizonte

a crosta dos dias

a despenhar-se na poeira da terra

 

Agosto de 2025

domingo, 31 de agosto de 2025

O Espírito da Terra (42)

Otto Ehrhardt, Untitled Landscape with Birch Trees, 1903

O silêncio é o espírito velado da Terra. Quando o vento sopra e as árvores deixam partir das suas folhas um murmúrio, como se não soubessem se o que sentem é a anunciação da dor ou o prenúncio da felicidade; ou quando se ouve o canto de um pássaro, ou o silvar de um réptil, o que se escuta é o silêncio da Terra. 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Virtudes de Verão (7)

Gerhard Richter, Abstr. B., Raps, 1995

mantenho-me leal ao ethos

incendiado da origem

aos dias acesos na alvura da casa

 

as nuvens passam transportadas

por pássaros de vento

iluminadas pelo candelabro do céu

 

da fidelidade  fabrico o fogo do dia

a fortuna dos barcos

com que navego o oceano do tempo

 

Agosto de 2025

sábado, 2 de agosto de 2025

Virtudes de Verão (6)

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1995

faço do veludo do verão a bolsa

de onde generoso retiro

a esmola selvagem da vida

 

distribuo-a pelas dunas cerúleas

e aos pássaros perdidos

nas frágeis falésias do oceano

 

oiço tilintar o metal das moedas

nas mãos vazias

estendidas pela rainha do silêncio

 

Agosto de 2025

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Biografias 37. O escritor

Loomis Dean, William Burroughs, Paris, 1959

Todo o escritor existe no acto de escrever, na inclinação do corpo para o teclado, na precisão com que os dedos chocam com cada uma das teclas, provocando um terramoto na folha de papel. O escritor reside na folha branca que se cobre de sinais, numa combinação de palavras que formam o seu lar. Abre a porta e percorre a casa. Os quartos, as salas, o escritório, as casas de banho a cozinha. Enquanto as percorre, a casa cresce, aumenta o valor do imóvel, e ele, inclinado sobre a máquina de escrever, vai descobrindo quem é, para além do nome que lhe deram, pois o nome é apenas um enigma que a vida lhe pôs no horizonte para desvendar, enquanto as folhas brancas se enchem de letras pretas, e os dedos, sem descanso, batem e batem em fúria, como se um rio se precipitasse para uma foz que nunca encontra.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Diálogos morais 71. Indignação

Robert Doisneau, La Dame Indignée, 1948

 - Não é possível.

- Como?

- Olhe para ali. Não, o melhor é não olhar.

- Decida-se. Olho ou não olho?

- Uma imoralidade.

- Uma imoralidade olhar?

- Não aquilo. Não olhe.

- Será que olhar me fará assim tão mal?

- Muito pior do que imagina.

- Então, porque não despega os olhos dali?

- Sinto-me mal.

- Olhou tanto… Chamo um médico?

- Morro.

- Morre, só por olhar?

- Não, morro de inveja.

domingo, 27 de julho de 2025

Câmara discreta (29)

Constantine Manos, Russia. USSR, 1965

Retratadas ficaram apenas a tristeza e a melancolia nostálgica de um sonho de juventude. Ciosamente escondidos pela arte do fotógrafa, a raiva e o desespero de viver ali, naquele lugar sem nome, onde tudo parecia já uma ruína vinda de um lugar há muito morto e esquecido. A pose de quem espera - e nesse esperar entrega o corpo à fotografia - é o contraponto de uma esperança que habitou, um dia, aquela mulher quando jovem. Os sonhos dos verdes anos feneceram rapidamente, num mundo onde o verde é já o amarelo das plantas estioladas e secas pelo calor do desencanto.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Virtudes de Verão (5)

Ando Hiroshige, A Great Wave by the Cost, 1832

procuro nas veredas do vento

a virtude da verdade

o cristal aceso da crença

 

as ondas deslizam na areia

batalhões de gaivotas

esperam o troar dos tambores

 

os meus olhos são um espelho

onde o voo das aves

derrama a verruma da vida

 

Julho de 2025

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Arqueologias do espírito 34

Dante Gabriel Rossetti, Ecce Ancilla Domini, 1850
A descoberta do espírito é, ao mesmo tempo, a descoberta de uma diferença radical entre aquele que é espírito num corpo e o que é puro espírito. A este, uma tradição antiquíssima deu-lhe o nome de senhor; aquele, a mesma tradição colocou-o no lugar de escravo. Não porque o senhor exija a escravatura, mas porque o corpo, com a sua subjugação ao império da necessidade, inclina o espírito encarnado à servidão~: não do senhor, mas de si mesmo, dos seus desejos, dos limites que lhe prescrevem a finitude. Quando o espírito finito se reconhece na sua finitude e se oferece como servo do senhor, nesse momento, começa a sua emancipação e o caminho da liberdade.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Haikai urbano (79)

Claude Monet, Charing Cross Bridge, 1899
 Névoa sobre névoa,
sombras são barcos no rio.
Secreta cidade.

sábado, 19 de julho de 2025

Impressões 129. Dança

Ana Hatherly, sem título, 1972 (Gulbenkian)
É indefinida a matéria do mundo, sem contornos nem ordem, apenas um conjunto de potencialidades que se actualizam conforme aprendemos a olhar para ela. É o reino do caos. O cosmos ordenado é a pura aparência que dança no nosso olhar.
 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Virtudes de Verão (4)

Max Pechstein, Verano en Nidden, 1920

temperar as paixões de cada dia

na água do mar

ou na erva-doce do esquecimento

 

um infinito desejo habita

a morada azul

de um corpo sem açaime

 

os córregos do pensamento

desenham mapas

de luz na geografia da vontade


(Julho de 2025)

 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Histórias sem nexo 37. Dores

Hendrick Ter Brugghen, Demócrito, 1628
Demócrito demonizava Doroteia. Desejava-a no dédalo da demência. Demandava-a deitada no divã. Dominava-o a dor do desdém, o duro desprezo da dulcíssima diva. Demónio, dizia, destroçado pelo desafecto. Doido, dardejou-a, destruindo-lhe o decoro no doce e divino domicílio.

domingo, 13 de julho de 2025

Meditação breve (206) Cantar

Constant Puyo, Chant Sacré, 1899

Não é porque tenha por motivo o sagrado que um canto se torna sagrado. É o próprio acto de cantar que é em si mesmo sagrado. Eleva a voz para uma realidade que transcende o uso quotidiano, o qual, sujeito aos imperativos do hábito, tornou a fala numa manifestação da queda dos homens no reino da trivialidade.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Micronarrativa (76) Deslizar

Bill Jacklin, The Rink, 1996

Deslizam sombras na brancura do rinque. Fantasmas vindos de mil passados encontram-se ali, para em silêncio rememorarem os tempos em que a vida lhes pertencia. Não festejam nem lamentam. Limitam-se a deslizar, pois a uma sombra nada mais é permitido do que uma colecção infinita de deslizes. 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Virtudes de Verão (3)

George Inness, Mañana, 1878

enfrento estes dias esculpidos

no vidro solar do mundo

com a coragem de um guerreiro

 

lanço às águas do mar o temor

do trevo azul do ocaso

e a incúria da exaltação

 

sou o prudente pastor e guio

o rebanho dos sonhos

por entre a erva crua da morte

 

Julho de 2025