quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Arqueologias do espírito 30

Carlo Carra, Sera sul Lago, 1924 

Sobre as águas adormecidas do lago, o espírito, numa arqueologia sempre inacabada, rememora-se. Procura, na noite dos tempos, as faces com que se manifestou na terra, o primeiro momento em que um coração humano suspeitou da sua presença, o grito expectante que ouviu quando os homens começaram a procurar no invisível a sua face. Ofereceu-se em sonhos, deixou que a sua natureza etérea e imaterial ganhasse contornos e, por momentos, pudesse ser pensada como um ser dotado de solidez. Logo se metamorfoseava e cobria o mundo de perplexidade, pois o seu ser não tem corpo, nem cor, nem som. É apenas um rumor que sopra como uma brisa ou assalta como um vendaval.

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Pintura e haikus (43)

Piet Mondrian, Composition in Blue, Grey and Pink, 1913

um súbito azul

desce na cinza da terra -

rosas de inverno

domingo, 26 de janeiro de 2025

Impressões 125. Mundos invisíveis

Fernando Calhau, sem título #91 (Time - space) - Areia, 1977 (Gulbenkian)

Nesta areia, esconde-se uma outra areia. Mais fina, grãos microscópicos onde, se aumentados sob o desejo hiperbólico do microscópio, existem mundos, terras extasiadas, aquecidas por sóis invisíveis, banhadas por oceanos sem nome, habitadas por povos que caíram na insignificância e que sobrevivem na sombra da sua infinita pequenez.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Inclinação de Inverno (5)

Paul Cézanne, The Graden Terrace at Les Lauves, 1902-1906

o jardim silencia-se sob a luz

vesperal tocada pelo vento

 

a chuva compõe uma dança

na praça despovoada da melancolia

 

da janela oiço ecoar um sino

quebrado pela turquês do tempo

 

o súbito voo de um corvo abre

a mudez do  jardim à luz da palavra

 

Janeiro de 2025

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Meditação breve (202) Os que partem

Umberto Boccioni, Drawing after "States of Mind: Those Who Go", 1912

Aqueles que partem arrancam as raízes que os prendem ao lugar e, libertos da terra, entregam-se, no silêncio da perplexidade, à aventura de ir mais além, de descobrir caminhos por eles nunca pensados, de esquecer o zelo do sedentário pela vigilância do nómada. Partem, trocando a alma do lugar pelo espírito da viagem.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Micronarrativa (72) A personagem

John Yardley, A book on the terrace

Sentou-se, cruzou as pernas e abriu o livro. Lia com determinação, como se procurasse alguma coisa que tivesse perdido. O que a envolvia não a desviva do seu propósito, até que, a certa altura, alisou uma das páginas do livro e entrou dentro dela. Não me posso perder, foi aqui que saí, é aqui que tenho de entrar, exclamou.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Signo sinal 25. A morte dos signos

Max Ernst, sem título, 1920

Há um momento em que os signos deixam de ser sinal seja do que for. Proliferam num oceano de insignificância, como ilhas abandonadas pela exaustão dos solos. Para trás, ficam cemitérios onde jazem senhores e servos, símbolos potentes e indícios humildes, à espera que cheguem  os ladrões de túmulos.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Inclinação de Inverno (4)

Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895

os cristais da manhã resplandecem

sob o lírio solar nascido na aurora

 

durante a noite a vida coagulada

esconde-se no láudano da quietude

 

enquanto a melopeia da morte

se entrega ao relampejo do vento

 

vencida a provação das trevas

a vida ergue-se na levitação da luz

 

Janeiro de 2025 

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Haikai do Viandante (442)

Jean François Millet, Pastora com su rebaño, 1864

luz fria de inverno –

no campo restolho e erva

abrem-se ao rebanho

domingo, 12 de janeiro de 2025

O sal do silêncio (121)

Charles Job, Pulborough Bridge, 1907

Apenas o rumorejo das águas se ouve. Sob essa capa suave, o manto espesso do silêncio cresce sobre a paisagem, inunda-a com o sal do sonho, uma promessa de quietude a rasgar o horizonte, a erguer-se como a promessa de um jardim que procura o Éden para se instalar.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

A memória do ar (37)

Fernando Calhau, sem título #384, 1980

Estranhas estruturas, nascidas no centro da Terra, irrompem no céu, fendem a muralha de nuvens e entregam-se ao sopro do vento, acumulando memórias do ar, recordações que serão sonhadas ora como novas catedrais onde a vida do alto se manifesta, ora, nos pesadelos mais inquietantes, como velhos espaços concentracionários, onde o espírito se dobra e o coração sangra.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Inclinação de Inverno (3)

Paul Gauguin, Village breton sous la neige, 1894

a pele de onça das tardes frias

estendeu-se como um véu sobre a rua

 

os corações descompassados tremem

esquecidos em metáforas mortas

 

uma invernia austera e sem nome

abre-se ao fogo-fátuo das lareiras

 

caminho pelo meu coração hesitante

sou o animal que vela o frio das ruas

 

Janeiro de 2025


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A sombra da água (37)

John Ruskin, A River in the Highlands, 1847

Ouvimos a expressão as terras altas e associamos de imediato a essas terras uma secreta sabedoria selvagem, a força motriz de uma vida pujante, o dínamo de tudo o que é impetuoso. Nelas, porém, a autêntica ciência reside na força tranquila das águas, que deslizam como uma sombra que cobre a terra do delírio vindo com as hipérboles do arrebatamento e as metáforas da agitação.

sábado, 4 de janeiro de 2025

Geometrias de fogo (37)

Modesto Urgell Inglada, Tempestad

O fogo trazido pela tempestade arde nos olhos dos incautos, aqueles que procuram o espectáculo do incêndio, a dança das labaredas, a cintilação do relâmpago antecedida pelo grito rouco do trovão, e esquecem o que nunca deveriam esquecer: o espírito humano não suporta muita realidade.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

O Espírito da Terra (37)

Domingo Ramos, Atardecer

Ao crepúsculo vindo com o entardecer, a terra, como um ser vivo, abre os poros da sua pele, para que os espíritos diurnos partam em viagem de descanso e o seu corpo se prepare para acolher a alma da noite, que trará o seu império aos que dormem e aos que vigiam.

domingo, 29 de dezembro de 2024

Inclinação de Inverno (2)

José Dominguez Alvarez, sem título

domingos de sol e frio são sinais

de uma invernia hesitante

 

como sombras passam pelas ruas

homens sem ofício sem destino

 

e nos ombros das mulheres poisam

aves de seda e cintilações de neve

 

enquanto a força mercurial do dia

se desvanece no tropo do crepúsculo

 

Dezembro de 2024



sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Haikai do Viandante (441)

Salvador Dali, Cadaqués, 1917

Paisagens de Inverno,

entre o silêncio do mar

e as sombras dos campos.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Impressões 124. O tempo da harmonia

Paul Signac, Au temps d'harmonie, 1894

Em tudo o tempo é o motor da dissonância, do desacordo e da oposição. Só a supressão do despotismo da duração pode trazer a seda suave da concórdia. Quando se pensa num tempo de harmonia, constrói-se uma impressão fantasiosa ou expressa-se a sombra de um desejo.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Inclinação de Inverno (1)

Camille Pissarro, Manhã de Inverno no Boulevard de Montmartre

de súbito o inverno germinou

no frio da terra desamparada

 

o deus dos campos recolheu-se

as aves cruzam os ares da cidade

 

vestígios do ouro dos dias quentes

ecoam no murmúrio do meio-dia

 

a desolação de campos e prados

resplandece no néon das avenidas

 

Dezembro de 2024


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Meditação breve (201) Suspender o tempo

Rolando Sá Nogueira, sem título, 1959 (Gulbenkian)

Suspender o tempo e fixar o instante não é um prenúncio de eternidade, mas a destruição da narrativa. Se vemos um homem e uma mulher num banco de jardim, podemos descrever essa imagem, mas jamais saberemos se se estão a aproximar ou a afastar. É imperioso o retorno do tempo para que a narrativa encontre o que contar e revele o mistério que toda a imagem oculta.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Micronarrativa (71) Viagem

Querubim Lapa, sem título, 1947

Não tinham destinam, mas caminhavam. A terra queimava-lhes os pés nus. O coração, porém, era um monte de cinzas, o resto de pequenos fogaréus que o tempo ateou e, de imediato, apagou. Não é a ira, nem a alegria ou a resignação que lhes alimenta a viagem, mas o não saber o que os espera. A sabedoria conduz à imobilidade. A ignorância ao nomadismo selvagem, como se fugissem de um inimigo mudo e sem rosto.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Signo sinal 24. Línguas de fogo

Raimundo de Oliveira, Pentecostes, 1964 (Gulbenkian)

A súbita irrupção de línguas de fogo abriu os homens ao incêndio de uma revolução vocabular. Das planícies dos céus caíram palavras em forma de labaredas sobre o lago das águas silenciosas. A mudez foi rasgada, e a fala brotou em todas as línguas conhecidas e desconhecidas, em todos os idiomas vivos, mortos e por nascer. Ouviram-se palavras que nunca poderiam ser ditas, pois a sua existência pertencia ao grande império do impossível.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (12)

Claude Monet, A ponte de Waterloo, 1903

os dias cederam à tentação

do frio agreste

sem a graça do tempo brando

 

a paisagem é um retalho

de cinza e brancura

um horizonte de sombras hostis

 

nas pontes os homens passam

leva-os a água

do cansaço e o vinho da solidão

 

Dezembro de 2024


quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Haikai urbano (76)

William Klane, Big face, front of Macy's, New York, 1955

Estranhos na noite

caminham pela cidade.

Sombras e ciladas.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

O sal do silêncio (120)

Benvenuto Benvenuti, Cipressi e colombe, 1906-7

São árvores silenciosas, os ciprestes. Ao seu redor, geram-se clareiras de onde brota o silêncio que, como um sal arcaico, salga a terra, de onde brotará a palavra que, ao emudecer, diz a verdade, essa verdade com o peso de uma promessa e a leveza da eternidade.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (11)

Amadeo Souza-Cardoso, Étude A [Gëmalde A / Quadro A], 1913 (Gulbenkian) 

a gramática outonal dissolve-se

o caos instala-se

no fraseado da estação

 

colheitas e vindimas esquecidas

cheios de silêncio

dormem adegas e celeiros

 

na cidade incandescente

ouve-se a voz do frio

ecoa nas janelas fechadas

 

Dezembro de 2024


quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A memória do ar (36)

Pietro Sarto, Bassin Lemanique, 1981 (Gulbenkian)

Rarefeito, o ar é apenas uma memória longínqua, o lírio esquecido na encosta da montanha, a vagem da inocência desprendida da terra. Vindo do vazio, emerge em turbilhão, desconcerta a ordem do mundo, para logo se encerrar nas cavernas rasgadas nos cumes mais altos, onde adormece no silêncio das estrelas mortas.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A sombra da água (36)

Francis Smith, Le Port à Honfleur, 1958 (Gulbenkian)

Portos são grandes armazéns de segredos e mistérios. Neles, se conjuga a sombra oceânica da água e a assombração dos navegadores. O marulhar da ondulação no cais é a música encantatória por onde se perdem, em noites sem mácula, a virgindade dos segredos e a textura dos mistérios.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (10)

Alfred Sisley, Bank of the Seine in Autumn, 1876

despido chegou dezembro

um dia de cinza

no declínio do outono

 

o ano tece a sua rede

a caligrafia incerta

no palácio da desordem

 

um rumor rasga as ruas

abre-as ao fulgor

da penúria e à luz da morte

 

Dezembro de 2024

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Geometrias de fogo (36)

Hugo Canoilas, Formas de vida simples que regressam ao mar, 2020-2023 (Gulbenkian)

Um fogo terrestre, selvagem como uma estrela do mar, transborda da dureza da rocha e inclina-se para o oceano. É um fogo incansável, desejoso de metamorfose, lava feita animal. Um grito fulgurante da Terra; um trovão ecoa na esfera celeste.