quarta-feira, 21 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (9)

León Kossoff, Dalston Lane, Monday Morning, Spring, 1974

os profetas da tarde irromperam

na ruína do sol matinal

 

as ruas juncadas de primaveras

rescendiam a incenso

 

sentado espero a profecia prometida

antes do advento da noite

 

Maio de 2025

segunda-feira, 19 de maio de 2025

O sal do silêncio (124)

Robert Liep, Gewittersturm, 1900

Uma tempestade assombra o silêncio, quebra-lhe as raízes, abre-o ao devir, como um amante intrépido se entrega ao cândido pavor de uma paixão. A terra treme e um trovão crava os dedos no ritmo errático do coração, onde o murmúrio da pulsação se oculta na glicínia da mudez.

sábado, 17 de maio de 2025

A memória do ar (40)

Todd Webb, Broadway at Wall Street, New York, 1959

O ar nocturno despe-se das memórias luminosas e paira sobre as suas presas como uma ave de rapina. Indiferentes ao perigo, homens e mulheres fendem o muro da escuridão, passam absortos sem olhar o próximo que com eles se cruza, entregando-se, não sem um secreto prazer, na tormentosa vertigem das trevas.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (8)

Benvenuto Benvenuti, Gli armenti - primavera, 1934

um ruído rude fere o rumor

no debrum da manhã

 

na lâmina do dia ergue-se

uma diáspora de aves

 

caminho de olhos postos

no silêncio da primavera

 

(Maio de 2025)

 

terça-feira, 13 de maio de 2025

A sombra da água (40)

Claude Monet, Water Lilies (The Clouds), 1903
Um vestígio do céu penetra nas águas, como uma sombra nublada feita de hábitos ancestrais. Também a natureza tem uma linhagem e uma herança. Por vezes, toma a forma de lei, outras é um jogo artístico, uma composição musical, onde a água que corre na Terra chama a que voa pelos céus.

domingo, 11 de maio de 2025

Geometrias de fogo (40)

Paula Rego, O Gigante de Minsky, 1958 (Gulbenkian)
O fogo é um animal selvagem: talvez um leão, talvez um leopardo, talvez um tigre. Tem garras afiadas para ferir aquilo em que toca, para queimar a pele da terra e incendiar os horizontes. Como o olhar de um grande felino, o fogo vibra na escuridão da noite. E, onde leva a luz, oferece também a escuridão das cinzas.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

O Espírito da Terra (40)

Jaime Morera y Galicia, Cabeza de Hierro. Guadarrama, 1891-97
Será nas montanhas que o espírito da Terra se refugia, quando a acção dos homens, tocados pela impiedade da dominação, abre, na frágil pele do planeta, escaras hediondas. O coração sangra. O corpo, rasgado pela dor, recolhe-se no alto. O espírito contempla então o desvario e entrega-se a uma terapia feita de distância e solidão.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (7)

Agnes Martin, Piedra Gris II, 1961

o que nos redimirá

do vazio aberto no coração

 

nem o pudor das orquídeas

nem a luz da manhã

 

apenas o silêncio nos salva

na incerteza deste dia

 

(Maio de 2025)

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Biografias 35. O pintor perdido

André Kertész, Piet Mondrian, Paris, 1926
O pintor oferece os seus olhos à câmara fotográfica para que esta, no fundo deles, encontre as linhas, as cores e as formas que o habitam. Ela, porém, teme o seu olhar, perde-se na rigidez da postura, no temor que o habita perante um mundo maquinal, e devolve-nos um artista sem a sua arte, um pintor sem a cor da sua pintura, um homem tomado no oceano da convenção.

sábado, 3 de maio de 2025

Diálogos morais 69. Mercado

Dorothea Lange, Consumer relations, San Francisco, 1952
- Não quero ir...
- Despacha-te, não podemos chegar atrasados.
- Dá-me colo.
- Os homens não andam ao colo.
- Sou uma criança e tu és a minha mãe.
- As crianças, também não. Estão à nossa espera.
- Não quero ir.
- Vamos...
- Vamos a onde?
- Vamos à loja comprar...
- Vamos, mesmo?
- Sim.
- E lá também se vendem mães?

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Pulsar de Primavera (6)

José Pedro Croft, Et Sic In Infinitum, sd (Gulbenkian)

pelas ruelas sem nome

passa o vento da primavera

 

traz o aroma do oceano

ao portfolio vazio da cidade

 

preso na passagem sem saída

abro o coração à tempestade

 

Maio de 2025


terça-feira, 29 de abril de 2025

Câmara discreta (27)

Edward Steichen, On George Baher’s yacht, 1928

O mar coberto pela bruma fascina o olhar. Tudo se torna, então, um mistério. O balancear do barco, o ruído das águas, o bater apressado dos corações. Enquanto as mulheres se deixam enredar no silêncio da fantasia, nas mil possibilidades que aquela hora lhes apresenta à vertigem da vontade, o fotógrafo evita a indiscrição: esconde-lhes o olhar para não lhes prescrutar as almas. Respeita a imersão no sonho e a combustão do corpo. Evita desocultar as flores monstruosas do pensamento ou o latejar da vontade perdida na imensidão inominável do oceano.

domingo, 27 de abril de 2025

Arqueologias do espírito 32

Herbert Boeckl, Der Wörthersee, 1928

A vibração da cor e a sua multiplicidade e variabilidade sem fim são um indício do nascimento do espírito. A exuberância com que a paisagem se apresenta é o sinal de uma gravidez prestes a chegar ao fim. Então, nasce, na consciência do homem, um murmúrio, como se um vento suave lhe soprasse a face e o chamasse para dentro de si mesmo. Não, aquelas cores não são um fim, apenas a mediação entre aquele que olha a voz que o chama.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Haikai urbano (77)

Mac Adams, Mystery #17, 1976
 Negócios na rua
são a escura luz da noite:
sombra e solidão.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Pulsar de Primavera (5)

Umberto Boccioni, April Evening, 1908

o vento de abril trouxe

sobre a água o sangue solar

 

as ruas mancham-se de luz

as árvores sombreiam o chão

 

no murmúrio da cidade

sigo rente ao húmus da vida

 

Abril de 2024

domingo, 20 de abril de 2025

Impressões 127. Um coração terrível

Émile-René Ménard, La Bañista, 1913
Era como se um coração terrível sentisse, de repente, um torpor, a necessidade de oferecer o corpo è contemplação e esquecer a combustão de cada dia. No rumor matinal, a nudez é apenas a matéria friável do sossego, um desejo obscuro de pertença ao grande segredo da terra quando se abre ao silêncio do céu. 

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Histórias sem nexo 35. Fatalidades

Francisco Suñer, A la fiesta, 1981
Na fonte à fábrica dos fanqueiros, Felisberto e Feliciana falavam de Fernando, filho de faustosa família, ferrado em Fez. Falta, fez? O fungo do flagelo e o fogo das ferozes forças forraram a fidelidade da fábula. Ficou a famosa fé e a ferida funesta do fado. Foi-se, frisou Felisberto. Forte frente à falida fraqueza dos fregueses, fundamentou Feliciana. Fim fatal.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Meditação breve (204) O corpo nu

Robert Mapplethorpe, Patti Smith, 1976
Ao despir-se, a mulher oculta toda a sua nudez. Esta não nasce da exposição do corpo ao olhar, mas da fantasia que, na obscuridade do resguardo, ateia o fogo na visão de quem a deseja.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Pulsar de Primavera (4)

Léon Kossoff, Dalston Lane, Monday Morning, Spring, 1974

esculpo a sombra com o ritmo

da chuva ao cair nas ruas

 

um princípio de escândalo escande

o verso em que o dia se abre

 

os tempos estão estranhos

oiço na exaltação da tempestade

 

Abril de 2025

sábado, 12 de abril de 2025

Micronarrativa (74) Indistinção

Gustav Klimt, Schubert ao Piano, 1899
O que move aquelas mulheres? O amor da música ou o desejo do músico? Elas não o sabem, pois o seu ser é incapaz de distinguir o ritmo musical da gramática com que o ele se apresenta ao seu olhar. Conforme, os acordes irrompem, elas fecham os olhos e o que vêem é apenas aquela figura, que não é mais do que o desenrolar do ritmo com que o som vem à existência, paira por instantes e se desvanece no fundo dos seus corações.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Signo sinal 27. Sentido

Marc Chagall, Cain and Abel, 1911

A tragédia humana nasce não daquilo que meramente acontece, mas do poder que os homens trazem consigo de dar sentido ao que acontece. Se o assassinato de Abel por Caim fosse um mero evento, não haveria qualquer tragédia, apenas um facto no mundo natural. Mas é mais do que isso, pois foi transformado em signo que dá um sentido, que ilumina o acto e permite ver o que nele há de perverso.

terça-feira, 8 de abril de 2025

O sal do silêncio (123)

Benvenutu Benvenuti, Alba em Padule, 1926
Sobre o paul, a aurora desliza com a serenidade das coisas geradas no silêncio. Nem o tumulto do dia, nem a perturbação do ocaso, nem a insegurança da noite: nada toca a irrupção da luz, que, no sossego inefável do mistério onde habita, se prepara para dissolver as trevas e serenar os corações tolhidos pela inquietação.

domingo, 6 de abril de 2025

Pulsar de Primavera (3)

Mark Tobey, Coming and Going, 1970

a solidão dos domingos é caruma

caída no pinhal da primavera

 

seca e quebradiça cobre o chão

com o lençol agudo do tédio

 

a sangrar os pés põem-se a caminho

sobre o grito das agulhas dos pinheiros

 

Abril de 2025

sexta-feira, 4 de abril de 2025

A memória do ar (39)

Charles Lapicque, Lagune Bretonne, 1959
Não há dedos que se cravem no ar, nem mãos que nele peguem e o transportem para outro lado. Fica onde quer, move-se invisível, mas nada nele é errático. Acidentais, são os nossos pensamentos sobre ele, não percebendo que o ir e vir, ora cobrindo a lagoa, ora procurando a floresta, é a sua forma de dançar. E dançar é a imobilidade daqueles cuja natureza é mover-se.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

A sombra da água (39)

Gustav Klimt, Moving Water, 1898

Os corpos são sombras de água na água do rio. Vão e vêm ao sabor do desejo, pois desejar é entrar numa corrente. Deixar-se balançar pelo ímpeto do caudal, que muda conforme as estações do ano, o poder da meteorologia e um segredo nunca desvendável. Em tudo, também na água do desejo, há um desconhecido a que olhos e ouvidos humanos estão, por um decreto inviolável, proibidos de aceder.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Geometrias de fogo (39)

Mário Cesariny, Figuras de sopro, 1947 (Gulbenkian)
Ao fogo, trouxe-o o vento, numa tarde azul. Um sopro violento, saído da boca de um gigante, fá-lo rodopiar e desenhar estranhas figuras geométricas cujas nomes ninguém sabe. Então, ébrio, dança sobre a planície, enraíza-se na terra como uma árvore e estende a ramada das suas chamas para o céu. Das labaredas ergue-se fumo. Os corações tremem. Se for branco, é tempo de paz. Se for vermelho, os cavalos da guerra entregam-se à dor do galope.

sábado, 29 de março de 2025

Pulsar de Primavera (2)

Bernardo Marques, Primavera (Gulbenkian)

nas ruas repletas de gente

queima o sol quaresmal

 

despidas as árvores floriram

num acesso de ânimo

 

espero a luz da ressurreição

na manhã do domingo de páscoa

 

Março de 2025

quinta-feira, 27 de março de 2025

O Espírito da Terra (39)

Gustav E. B. Trinks, Farbige Schatten, 1902

Sombras rasgam a brancura da terra. Ali, onde a neve se depositou, trazendo, no revérbero do sol, a cintilação ao dia, também a escuridão da noite se anuncia, como se as sombras fossem mensageiras do Reino da Noite. Mudas, dizem: o dia, sobre a terra, não é eterno. Também as trevas têm o seu lugar e a noite nunca, neste mundo, pode ser esquecida.

terça-feira, 25 de março de 2025

Biografias 34. O profeta

James Van Der Zee, Barefoot Prophet: Elder Clayhorn Martin, Prophet Martin, 1929

Tem o futuro guardado dentro dos olhos e o passado oculto no coração. Alimenta-se de palavras e passa os dias em serena meditação. Como explicar os sinais e que sentidos infinitos se ocultam nos símbolos? Que presságios inscreve a ave, com o seu voo misterioso, no tecido transparente dos ares? Quando chega a hora, o profeta, descalço, sai de casa e procura a multidão que o aguarda. Então, a sua voz troa e os corações tremem. O mundo e os seus males infinitos são despidos sem pudor nem inocência. A arrogância dos grandes e a inveja dos pequenos recebem na miséria da sua pele a visite rude do chicote das palavras. Rendida a multidão, o profeta exausto volta para casa. Espera-o o calor do lar, as longas meditações sobre o futuro que dará um sentido ao passado.

domingo, 23 de março de 2025

Diálogos morais 68. Fantasia

Eugene Robert Richee, Betty Grable, 1930s

- Encosto-me a ti e sinto o teu corpo, quente e suave. 
- Eu, pelo contrário, sinto a tua imagem fria e metálica.
- É uma conquista.
- Uma conquista?
- Pensava que, qualquer imagem, apenas fosse visível, afinal também me sentes.
- E...
- Terei também um corpo, ainda que frio e metálico.
- Não, não passas de uma imagem no espelho, uma fantasia.
- Estás enganada.
- Eu...?
- Sim, tu. Sou uma fantasia, mas...
- As fantasias não têm realidade, não há lugar para qualquer mas.
- Pelo contrário, sou uma fantasia e sonho-te.
- A mim.
- Sim, a ti. Sonho-te para te possas ver no espelho e eu possa existir.