quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (360)

Pere Ysern i Alié, Bois de Boulogne, 1921

Árvores de Outono
inclinam-se para o lago.
Cisnes, luz e água.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Meditação breve (82) Sombra

Thomaz Farkas, São Paulo, 1950

Sombra não é aquilo que um corpo, batido pela luz, projecta. Sombra é o lugar de onde os corpos nascem e para onde voltam depois de a luz, por um instante, os ter tocado.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Impressões 2. A cadeira vazia

Walde Huth, c. 1950-51

A cadeira vazia espera-te. E sentado poderás ouvir o murmúrio das águas, o repicar dos sinos, a cavalgada do vento sobre a copa das árvores, se um vendaval se aproxima e mortas as folhas esvoaçam ao teu redor.

domingo, 16 de setembro de 2018

Impressões 1. Esses lugares

Max Baur, Park Sanssouci, 1930s

Esses lugares onde o silêncio cresce, desenha paisagens de névoa e, de súbito, desaba sobre o segredo dos ciprestes. Esses lugares onde a solidão se abre para o mistério da sombra e solícita soletra o teu nome.

sábado, 15 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (686)

Elmer Bischoff, # 50, 1980

686. a cólera dos deuses

a cólera dos deuses
no tumulto
do sentimento
o vulcão expele
a lava
da angústia
na quimera coroada
pelo ardor da alegria

(21/12/2016)

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (359)

William Henry Fox Talbot, A Fruit Piece, 1845

Naturezas mortas
descansam sobre a mesa.
Frutos e silêncio.

domingo, 9 de setembro de 2018

Meditação breve (81) Passado

Roberto Rive, House of Marco Olconio, Pompeii, 1860s

Quando nos deparamos com aquilo a que se chama vestígios do passado nunca reparamos no equívoco que é ver nesses objectos algo que pertence ao passado. Eles são uma pura presença, um presente e dizem alguma coisa sobre nós e nada sobre aquilo que passou. É sobre este equívoco que se constrói uma disciplina a que se dá o nome de História, essa colecção de preconceitos com que disfarçamos o presente na imaginação de um passado que nunca existiu.

sábado, 8 de setembro de 2018

Naufrágios

Francis James Mortimor, Wreck of sailing ship Arden Craig, 1911

Quantas vezes nos salvamos de um naufrágio e, pensando estar a salvo, nos vemos náufragos sem colete de salvação nem barco salva-vidas? Há os naufrágios que nos acontecem e há o naufrágio que transportamos dentro de nós. Dos primeiro, por vezes, ainda podemos fugir. Do último, há que enfrentá-lo, pois ninguém pode fugir de si mesmo, do naufrágio que transporte em si. Aí começa a sabedoria.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Meditação breve (80) Fé

Ed van der Elsken, Prinsenhofsteeg, Amsterdam, 1949

A fé, essa que fé que leva um ser humano a ajoelhar perante o que o transcende, não nasce de um dogma ou de uma autoridade mas do espanto que sempre está presente no encantamento.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (685)

Elmer Bischoff - # 1 (1974)

685. nas grandes planicies

nas grandes planícies
de mármore
pássaros de erva
poisam
azuis e aluados
no  lacre da primavera

(21/12/2016)

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (358)

John Constable, Cloud Study, 1822

Nuvens são segredos
de sombra, sol e silêncio.
Vertigem e vento.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

A ruína

Deborah Turbeville, Vera Abrusova, Stroganov Palace, 1996

Sim, conheço-a muito bem. Pelo menos, o suficiente para trocar com ela, de quando em quando, algumas palavras. De circunstância? Não, ela nunca fala para preencher o vazio ou para matar a solidão. Vive só, claro, mas não é uma solitária. Quando herdou o palácio, ele já estava em ruínas. Um dia, disse-me que tinha hesitado muito sobre o destino a dar ao destroço que tinha recebido. Quando o filho, o único que tinha, morreu, abandonou o marido, o mundo, e veio viver para ali. Disse-me que, a partir de então, aquele seria o seu elemento natural. Também ela era uma ruína sem futuro. Pálida, sorriu, como se pedisse desculpa, e entrou pela porta decrépita que não procurou fechar.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Biografias 16. O homem do acordeão

Edith Tudor-Hart, London, c.1931

Lentamente, quase como se o tempo não existisse, o homem percorre as ruas. Não olho para o que se passa à sua volta, apenas faz deslizar os dedos e escuta a música que ele mesmo descobre no fundo da sua sombria solidão.

domingo, 2 de setembro de 2018

Meditação breve (79) Ocaso

Jaime Burguillos, Ocaso, 1976

No sol poente não paira apenas a ameaça das trevas a caírem inexoráveis sobre o mundo. Há ainda a promessa de um novo dia, como se tudo estivesse submetido ao império da morte e ressurreição, como se todo o ocaso fosse já o prenúncio da aurora.

sábado, 1 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (684)

Wassily Kandinsky - Curva Dominante (1936)

684. curva dominante

curva dominante
crua e cruel
a folha da tarde
na casa de adobe
uma réstia de sol
no solstício
separa o meu
do teu inverno

(20/12/2016)

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Haikai urbano (36)

Ed van der Elsken, Café “Chez Moineau”, Paris, 1954

Sombra e solidão.
Ele dorme, ela lê.
Vida de café.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Chegar a casa

Cecil Beaton, Dorian Leigh, Vogue, 1950

Apoiou os braços e nestes, a cabeça. Estava exausta. Tinha vindo de longe, de tão longe que esquecera o sítio de onde partira. Talvez fosse de uma casa na montanha ou de uma cidade perto do oceano. Todas as suas memórias tinham começado a dissipar-se. Era como se uma pedra dura, de repente, se desfizesse em grãos de areia microscópicos, e estes, quase um fluido, escorressem entre os dedos. Assim, perdia ela os pormenores da sua vida, o nome dos pais, a face dos homens que amara, o lugar onde nascera. Vívido, apenas o buraco negro por onde entrara e a luz que agora a iluminava. Uma voz sussurrou-lhe: chegaste a casa.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Biografias 15. A rapariga que sorri


Ela cruza os dedos, respira fundo e sorri. E no sorriso habita o silêncio que se esconde no fundo do seu coração. Esperam sempre qualquer coisa de mim, pensa, mas nada mais tenho a dar do que o meu sorriso. Pega numa garrafa, abre-a em silêncio e sorri.

Fotografia: Sergio Larrain-Magnum, Limón Soda, Valparaíso.

domingo, 19 de agosto de 2018

Poemas do Viandante (683)

Frantisek Kupka, Trazos negros enroscados, 1911-12

683. espirais volutas e fogo

espirais volutas e fogo
o suão vibra
no vitral
do meio-dia
na rosa-dos-ventos
nas asas da borboleta
coberta de sol
coberta de míngua

(20/12/2016)

sábado, 18 de agosto de 2018

Meditação breve (78) Mistério


O prazer que extraímos do mistério reside na derrota da razão. Não existe apenas a satisfação do triunfo, quando um enigma é decifrado. Aquilo que resiste aos avanços do nosso entendimento também provoca não pequena volúpia.

Pintura: Alphonse Osbert, El misterio de la noche, 1897

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Haikai do Viandante (357)


Nuvens sobre o lago.
Sombras deslizam nas águas.
Promessas de Outono.

Pintura: Nikolay Dubovskoy, Calm, 1890

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Biografias 14. A mulher do último café

Charles Hewitt, Night Time Coffee, London, 1952

Era sempre a última cliente. Chegava como uma sombra. Pedia um café, bebia-o em silêncio, enquanto olhava os jogos de luz que se desprendiam da iluminação pública. Passados minutos, sem que dissesse uma palavra, tirava umas moedas de uma bolsa velha e gasta e depositava-as distraída sobre o balcão. Então, partia num passo hesitante, como se não soubesse o caminho até que se fundia na escuridão da noite.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O deserto

Jean Dieuzaide, Sahara, vue aérienne, 1965

O deserto cresce. É tão tentador citar: 'O deserto cresce, ai daquele que oculta desertos.' Ninguém tem o poder de ocultar um deserto, nem tão pouco o deserto que traz dentro de si. Antigamente, havia quem fosse para o deserto para estar mais próximo de Deus ou para combater o demónio. Uma arena para grandes combates metafísicos. Aquele que traz o deserto em si, esse não precisa de nenhum deserto material. Senta-se na sua solidão e espera a hora em que o demónio se entrega nas suas mãos ou Deus, envolto numa sombra, se senta ao seu lado. O deserto cresce.

terça-feira, 19 de junho de 2018

Poemas do Viandante (682)

Amadeo de Souza Cardoso - Quadro (1912)

682. prímulas e margaridas

prímulas e margaridas
amadurecem
na paisagem pisada
pela luz venal
do verbo
cantam
perdidas no sonho
do jardineiro
preso à tesoura da morte

(20/12/2016)

sexta-feira, 8 de junho de 2018

A estátua

Nelly’s, Girl from Ipati, Greece, ca. 1930

Se o acontecimento é extraordinário, as razões que a levaram aquela decisão são misteriosas. Não lhe faltavam os dons que atrairiam sobre ela as maiores felicidades. Bela, poderia escolher o homem que quisesse e a vida que mais desejasse. Tinha uma índole jovial e não lhe faltavam amizades. Tão pouco nascera num lar sem fortuna. Quando viu, pela primeira vez, a estátua de pedra, gritou. Depois, silenciou-se. Uma noite, viram-na colocar-se ao lado da estátua, imitando-lhe a pose. Na manhã seguinte, continuava lá. Enlouquecera, pensaram. Quando no dia seguinte a avistaram, alguém foi ter com ela. Tocou-lhe. A sua carne, porém, era um mármore frio e pálido. 

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Haikai do Viandante (356)

William Henry Fox Talbot, The Pencil of Nature, London, 1844

O silêncio passa
pela escada do tempo.
Sombra e solidão.

sábado, 7 de abril de 2018

Haikai urbano (35)

Léonard Misonne, Reflets, c. 1935

Reflexos e sombras
são fantasmas na cidade.
Rituais de Inverno.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Poemas do Viandante (681)

Yves Klein - Peinture de feu sans titre (empreintes de corps) (F 88) (1962)

681. o fogo desce sobre

o fogo desce sobre
o corpo
                das águas
e silva e zumbe
e na combustão
da alma
devora o desejo
o ardor da aurora

(20/12/2016)

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Meditação breve (77) Innuendos

Edward Weston, Shell, 1927

Toda a arte assente na prática do innuendo. Não dizer ou não mostrar nada directamente. A arte é uma praxis de sugestão e um jogo de insinuações. Fora disso é um exercício fútil para alimentar egos ávidos de existência.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Biografias 13. A mulher caída

John Murphy, Cadere: Outside the Frame, 2008

Arrastou pelas ruas o peso dos sentimentos. Ardeu na fogueira das emoções. Arrojou pelo chão a mobília da vida. Tinha um nome e perdeu-o na praça pública. Exausta, seca e sem nome, deu uns passos, encostou-se à parede e deixou-se cair. Não há desejo que suporte o peso do mundo.