terça-feira, 29 de junho de 2021

Impressões 82. A paisagem agreste

Albert Gleizes, Paisaje, 1914

De súbito a paisagem fende-se, o olhar geometriza-se e aquilo que o hábito dava a ver como a realidade torna-se agora numa impressão. Não numa mera impressão difusa, de contornos esbatidos como se fosse um esboço, mas uma impressão viva de arestas cortantes, agrestes, prontas para fazer sangrar o incauto que entre sem permissão pela paisagem dentro.

domingo, 27 de junho de 2021

Arqueologias do espírito 25

Alfons Mucha, El Abismo, 1897-1899
Antes de a queda se ter constituído como um topos, topos negativo e ameaçador, da vida do espírito, ter-se-á insinuado um outro e poderoso arquétipo, o do abismo. A experiência dos precipícios, dos buracos de onde não se regressa, dos despenhadeiros e das profundidades insondáveis, tudo isso se concentrou na figura do abismo. Do abismo físico transbordou para o abismo da alma e do espírito e tornou-se, como todos os símbolos, ambivalente. Repele o homem com o medo da queda e atrai ao esconder o insondável. Toda a queda no abismo é marcada pelo temor e pelo desejo de ali cair.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

À procura do lugar

August Sander, Courtyard Musicians, 1928
Os músicos vestiam-se com o esmero exigido pelas grandes salas e no pensamento havia ainda uma réstia de esperança, o desejo de um milagre, um sonho que teimava em persistir noite após noite. Traziam sobre os ombros o peso de uma vida, as ruas por onde vaguearam à procura de um lugar para a sua música. Pátios, praças, esquinas de rua, grandes avenidas, vielas de frequência duvidosa. Paravam e começavam o recital. Havia quem os olhasse de soslaio, quem parasse um instante, quem deixasse cair uma moeda, quem passasse indiferente. Então, retomavam o caminho à procura do lugar onde a sua arte seria sublime e a sua música se confundiria com a das esferas celestes. Quando o vislumbraram, entraram num labirinto e perderam-se no caminho.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Haikai urbano (68)

Paul Himmel, Brooklyn Bridge View, 1950

Da ponte, um anjo
vigia o fluir das águas.
 Cidade sombria.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

A Sarça Ardente - 84

Francisco Díaz de León, Canción de verano, Aguascalientes, 1955
O dia desenha uma elipse
ao envolver
de luz
o rumor das ruas.

Desbaratada, a sombra
esconde-se
sob a copa
verde das tílias.

Quem chega à janela
pensa ver
o mar
na cinza do horizonte.

Depois, tudo se funde –
a luz, a sombra,
as tílias –
o solstício de Verão.

Junho de 2021

 

sábado, 19 de junho de 2021

Biografias 20. A esperança que a move

Irving Penn, Vogue cover, 1950
Foi um longo e doloroso exercício. A partir do momento em que a beleza começou a decrescer, resolveu apagar-se. Como não era dada a gestos teatrais, recusou a ideia de suicídio. Concentrou-se apenas no seu corpo, meditando continuamente na invisibilidade. A primeira vitória foi alcançada quando descobriu a palidez que se apoosava dela. A segunda veio ao notar como estava translúcida. Se o corpo de tornasse transparente, a biografia haveria de desaparecer, pensou. Ainda é essa a esperança que a move.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

O sal do silêncio (62)

Andreas Feininger, Silhouette of the Statue of Liberty lit only by her torch, 1943
O mais intrigante dos mistérios humanos é o da liberdade. Como é que num universo regido pela estrita determinação emergiu um ser dotado de vontade livre? Nunca deixa de espantar como na escuridão silenciosa da necessidade emergiu o sal luminoso da liberdade.

sábado, 12 de junho de 2021

Meditação Breve (161) Auto-retrato

Florence Henri, Self portrait, 1928

Auto-retratar-se é pôr-se à distância, afastar-se e alienar-se de si mesmo. Pensa-se, por vezes, que o exercício do auto-retrato é um modo de conhecimento de si. Essa crença, porém, não passa de uma ilusão da consciência reflexiva. Procura-se a ignorância de si mesmo, pois o retrato não é a própria pessoa, nem dá dela a sua realidade. Pelo contrário, aniquila-lhe o corpo, prende-a no espaço, retira-a da duração e esconde-lhe o espírito. 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Diálogos morais 61. Um cavalheiro de indústria

Modesto Ciruelos González, Abstracción, 1975
- Olha, estás a ver o que se passa?
- Não estou e não quero ver.
- Apesar de tudo, nunca deixas de ser desagradável.
- De tudo, o quê?
- Do carro, do casaco, do dinheiro, enfim.
- Não te agrada? Podes despir o casaco e ires a pé.
- Tanto esforço e nem um vislumbre de cavalheirismo.
- E depois?
- Um pouco de gentileza e o mundo seria melhor.
- E achas que eu estaria aqui sentado, se fosse gentil?
- Nunca deixaste de ser um cavalheiro de indústria.

terça-feira, 8 de junho de 2021

A Sarça Ardente - 83

Edward Burne Jones, El Lamento, 1866
A música dos dias luminosos
ondula tocada
pelo vento.

Os acordes tremem,
são folhas
de árvores cobertas

pelo ouro nascido
da hesitação
entre som e silêncio.

Junho de 2021

domingo, 6 de junho de 2021

Micronarrativa (53) Encostado à parede

Dorothea Lange, Against the Wall, San Francisco, 1934
Exausto, virou o carro-de-mão e encostou-se à parede. Estou derrotado, disse. Também eu luto diariamente com o anjo. Também me deram o nome de Jacob, mas não foi a minha coxa tocada pelo adversário, foi todo o corpo. Por isso, não recebo a bênção, nem tomarei o nome de Israel, nem de mim sairá uma nação. Serei um grão de areia no deserto. O anjo que me calhou não era o anjo de Deus, mas aquele que se apodera dos homens para os encostar à parede e perdê-los.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Biografias 19. A mulher da máscara

Man Ray, Noire et Blanche (Black and White), 1926

Foi uma longa e vagarosa viagem. Não é fácil vir da periferia e chegar ao centro de si mesmo. Exausta, ela parece dormir, mas não é verdade. Apenas pensa como foi difícil arrancar a máscara que sempre trouxera para deixar que o rosto, o seu próprio rosto, se manifestasse e se abrisse para os olhos de quem o quisesse ver. Não há metamorfose, medita, que não deixe à porta da morte e da ressurreição.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Histórias sem nexo 26. Irina e Irene

Vincent Van Gogh, Duas mulheres no bosque, 1882
Irra, Irina, não ias à igreja e imaginavas hibernar em ímpia hierarquia ou em impávido império, ó infeliz idólatra. A Irene, impoluta irmã, imiscuiu-se na hipertrofia da irresponsável ilusão e, com ímpeto, idealizou o isco para te impedir a impiedade, a ida hílare para o hiante inferno. 

segunda-feira, 31 de maio de 2021

O sal do silêncio (61)

Marc Chagall, The Flying Carriage, 1913

A fantasia nasce por dentro do silêncio. Quando o espírito detém o torvelinho dos reflexos da vida quotidiana e deixa a mente apaziguar-se, então as mil imagens recebidas ao acaso começam a estabelecer estranhas relações, até que novas realidades, nascidas do secreto prazer da hibridação e da metamorfose, se tornam o sal da vida.

sábado, 29 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 82

Albert Bloch, Mountain, 1916
Maio é um Verão indeciso,
a escarpa benévola
por onde subo
a montanha para perscrutar
a linha do horizonte.

Chegado ao cimo, olho
a flora selvagem,
caminho ao acaso e colho
os frutos silvestres
do silêncio e da solidão.

Maio de 2021

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Haikai do Viandante (412)

Rolando Sá Nogueira, Chuva, 1960
Como a fria névoa
a chuva desce dos céus.
Dádiva dos deuses.



terça-feira, 25 de maio de 2021

Impressões 81. A presença encarnada

André Kertész, Soldier writing, Gorz, Austria (now Italy), 1915
Nesse acto de escrever uma carta, suspende-se a única realidade que assombra um soldado em tempo de guerra. Nesta, a morte não é uma abstracção que por vezes toma corpo em alguém conhecido. Ela é a presença encarnada de cada hora.

domingo, 23 de maio de 2021

Meditação Breve (160) O tempo em fuga

Paul Strand, Bombed Church, Hoste, Moselle, France, 1950
Sempre que pensam na imortalidade, os homens tentam, não sem desespero, matar o tempo, como se o maior inimigo dessa persistência que nunca acabaria fosse o saltitar inexorável dos ponteiros do relógio. Sucedem-se os ataques. Os atentados não têm fim. Os danos colaterais amontoam-se. O tempo, esse nunca pára, faz da fuga a arte da existência.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

O sal do silêncio (60)

Maria Helena Vieira da Silva, Casas, 1957

Casas são segredos a crescer entre os murmúrios da rua, são enigmas onde se escondem os ardores da noite, são mistérios que se abrem na luz e na sombra. Casas são o aroma do sal perdido no fogo do silêncio.
 

quarta-feira, 19 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 81

Paul Cézanne - As grandes banhistas (1900-1905)
De súbito, um som de água
fende o silêncio,
o coração estremece,
o vento dança nas folhas das tílias.

A Primavera abre-se ao fulgor,
os dias tocados pela aura
do sol
crescem por dentro da alma.

Oiço um violino e nele escuto
o vento, o sol
o cântico de alegria
das almas ébrias da madrugada. 

Maio de 2021

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Haikai do Viandante (411)

Max Baur, Im Nebel, 1930
 Névoa sobre névoa,
o mistério da manhã
nas águas do rio.

sábado, 15 de maio de 2021

A fronteira

Eugene Robert Richee, Betty Grable, 1930s
Da única coisa de que tenho a certeza é do seu nome. Encontrei-a sentada diante de um espelho. Entre ambos parecia haver uma estranha relação. Não aquela que, por preconceito e irreflexão, atribuímos às mulheres. Parecia antes uma barreira que ela tentava passar, como se quisesse entrar pelo vidro. Precisa de ajuda? Perguntei-lhe. Olhou-me e sorriu, mas não disse nada. Parecia deslocada. Não force o espelho com o corpo, ele pode partir-se. Disse-lhe. Deu-me uma resposta inusitada. As fronteiras servem para ser forçadas, quero ir para a casa. Posso levá-la. Como se chama? Não sabe o meu nome? Quando lhe ia responder, entrou por dentro do espelho e desapareceu. Claro que sabia o seu nome. Não me atrevi a segui-la.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Meditação Breve (159) Do arrependimento à inocência

Imogen Cunningham, Eve Repentant, 1910
O arrependimento insere-se, na cultura judaico-cristã que dá forma ao mundo ocidental, numa dialéctica de dissolução dos factos. Arrepender-se de algo que foi feito - isto é, tornado um facto -  é o primeiro passo para que uma outra figura espiritual - espiritual e não apenas moral - se manifeste, a figura do perdão. Do ponto de vista humano, o perdão é fazer como se o que foi feito não o tivesse sido. O perdão divino será muito mais radical. Será o dissolver o facto, fazer com o que foi feito não o tenha sido. O perdão humano inocenta, o divino devolve a inocência.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Impressões 80. Uma estranha realidade

Júlio Pomar, Campinos, 1963

O touro e o cavalo nunca deixam de exercer um estranho fascínio sobre o espírito dos homens. Talvez a leveza de um e força do outro sejam o segredo dessa atracção. Tudo isso se intensifica quando, numa largada, os campinos, presos às selas, conduzem uma manada de touros. Olha-se e não se vê nada mais que uma onda de poeira e de vultos, como se homens, terra e animais não fossem senão uma única realidade tomada pela vertigem do infinito e pelo desejo do absoluto.

domingo, 9 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 80

Jackson Pollock, White light, 1954
Deixo o silêncio cair sobre o dia,
ergo-o como uma vela
no altar.

Tudo se ilumina na tarde,
as ervas presas ao chão,
os pássaros perdidos nos céus.

Uma voz canta na planície,
entra na casa onde
o silêncio se cala feito luz e sombra.

Maio de 2021

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Haikai do Viandante (410)

Edward Weston, Dunes, Oceano, 1936

Desertos de areia
são sonhos nunca sonhados,
são mares de mágoa.
 

terça-feira, 4 de maio de 2021

Meditação Breve (158) As pequenas vinganças

André Kertész, Between Paris and Deauville, 1927

O cómico nasce muitas vezes do entrelaçamento dos tempos. Quando o que passou e se tornou obsoleto é a solução para aquilo que o veio substituir, não se pode deixar de sorrir. As pequenas vinganças nunca deixam de ter qualquer coisa de sarcástico.

domingo, 2 de maio de 2021

Biografias 18. A serva do senhor

Nobuyoshi Araki, untitled, not dated

O súbito desejo da servidão. O meu corpo ofereceu-se às cordas que o submetem. O desejo do senhor, porém, faz dele escravo da sua escrava, torna-o submisso ao fogo devorador que dorme nos meus olhos, na minha boca, no meu ventre. Presa, sou a imperatriz e no meu império está toda a minha liberdade.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

O sal do silêncio (59)

Francesca Woodman, Untitled, Providence, Rhode Island, 1975
Primeiro chega o abandono, depois a realidade vai perdendo aquilo que a liga, as peças saem dos encaixes, anuncia-se a dissolução de tudo o que foi, até que reste apenas o silêncio e o sal que, desprendendo-se dele, salga com leveza a memória, para que ela se afaste do insuportável e seja recordação cada vez mais longínqua, cada vez mais feliz.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

A Sarça Ardente - 79

António Carneiro, sem título, 1915

A claridade vem, viaja
sobre o bosque.
Pássaro de luz,
fuga ao abismo
da noite.

O coração saúda-a.
Graça derramada
para iluminar
de súbito
a sombra da Terra.

Abril de 2021