sábado, 29 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 82

Albert Bloch, Mountain, 1916
Maio é um Verão indeciso,
a escarpa benévola
por onde subo
a montanha para perscrutar
a linha do horizonte.

Chegado ao cimo, olho
a flora selvagem,
caminho ao acaso e colho
os frutos silvestres
do silêncio e da solidão.

Maio de 2021

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Haikai do Viandante (412)

Rolando Sá Nogueira, Chuva, 1960
Como a fria névoa
a chuva desce dos céus.
Dádiva dos deuses.



terça-feira, 25 de maio de 2021

Impressões 81. A presença encarnada

André Kertész, Soldier writing, Gorz, Austria (now Italy), 1915
Nesse acto de escrever uma carta, suspende-se a única realidade que assombra um soldado em tempo de guerra. Nesta, a morte não é uma abstracção que por vezes toma corpo em alguém conhecido. Ela é a presença encarnada de cada hora.

domingo, 23 de maio de 2021

Meditação Breve (160) O tempo em fuga

Paul Strand, Bombed Church, Hoste, Moselle, France, 1950
Sempre que pensam na imortalidade, os homens tentam, não sem desespero, matar o tempo, como se o maior inimigo dessa persistência que nunca acabaria fosse o saltitar inexorável dos ponteiros do relógio. Sucedem-se os ataques. Os atentados não têm fim. Os danos colaterais amontoam-se. O tempo, esse nunca pára, faz da fuga a arte da existência.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

O sal do silêncio (60)

Maria Helena Vieira da Silva, Casas, 1957

Casas são segredos a crescer entre os murmúrios da rua, são enigmas onde se escondem os ardores da noite, são mistérios que se abrem na luz e na sombra. Casas são o aroma do sal perdido no fogo do silêncio.
 

quarta-feira, 19 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 81

Paul Cézanne - As grandes banhistas (1900-1905)
De súbito, um som de água
fende o silêncio,
o coração estremece,
o vento dança nas folhas das tílias.

A Primavera abre-se ao fulgor,
os dias tocados pela aura
do sol
crescem por dentro da alma.

Oiço um violino e nele escuto
o vento, o sol
o cântico de alegria
das almas ébrias da madrugada. 

Maio de 2021

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Haikai do Viandante (411)

Max Baur, Im Nebel, 1930
 Névoa sobre névoa,
o mistério da manhã
nas águas do rio.

sábado, 15 de maio de 2021

A fronteira

Eugene Robert Richee, Betty Grable, 1930s
Da única coisa de que tenho a certeza é do seu nome. Encontrei-a sentada diante de um espelho. Entre ambos parecia haver uma estranha relação. Não aquela que, por preconceito e irreflexão, atribuímos às mulheres. Parecia antes uma barreira que ela tentava passar, como se quisesse entrar pelo vidro. Precisa de ajuda? Perguntei-lhe. Olhou-me e sorriu, mas não disse nada. Parecia deslocada. Não force o espelho com o corpo, ele pode partir-se. Disse-lhe. Deu-me uma resposta inusitada. As fronteiras servem para ser forçadas, quero ir para a casa. Posso levá-la. Como se chama? Não sabe o meu nome? Quando lhe ia responder, entrou por dentro do espelho e desapareceu. Claro que sabia o seu nome. Não me atrevi a segui-la.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Meditação Breve (159) Do arrependimento à inocência

Imogen Cunningham, Eve Repentant, 1910
O arrependimento insere-se, na cultura judaico-cristã que dá forma ao mundo ocidental, numa dialéctica de dissolução dos factos. Arrepender-se de algo que foi feito - isto é, tornado um facto -  é o primeiro passo para que uma outra figura espiritual - espiritual e não apenas moral - se manifeste, a figura do perdão. Do ponto de vista humano, o perdão é fazer como se o que foi feito não o tivesse sido. O perdão divino será muito mais radical. Será o dissolver o facto, fazer com o que foi feito não o tenha sido. O perdão humano inocenta, o divino devolve a inocência.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Impressões 80. Uma estranha realidade

Júlio Pomar, Campinos, 1963

O touro e o cavalo nunca deixam de exercer um estranho fascínio sobre o espírito dos homens. Talvez a leveza de um e força do outro sejam o segredo dessa atracção. Tudo isso se intensifica quando, numa largada, os campinos, presos às selas, conduzem uma manada de touros. Olha-se e não se vê nada mais que uma onda de poeira e de vultos, como se homens, terra e animais não fossem senão uma única realidade tomada pela vertigem do infinito e pelo desejo do absoluto.

domingo, 9 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 80

Jackson Pollock, White light, 1954
Deixo o silêncio cair sobre o dia,
ergo-o como uma vela
no altar.

Tudo se ilumina na tarde,
as ervas presas ao chão,
os pássaros perdidos nos céus.

Uma voz canta na planície,
entra na casa onde
o silêncio se cala feito luz e sombra.

Maio de 2021

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Haikai do Viandante (410)

Edward Weston, Dunes, Oceano, 1936

Desertos de areia
são sonhos nunca sonhados,
são mares de mágoa.
 

terça-feira, 4 de maio de 2021

Meditação Breve (158) As pequenas vinganças

André Kertész, Between Paris and Deauville, 1927

O cómico nasce muitas vezes do entrelaçamento dos tempos. Quando o que passou e se tornou obsoleto é a solução para aquilo que o veio substituir, não se pode deixar de sorrir. As pequenas vinganças nunca deixam de ter qualquer coisa de sarcástico.

domingo, 2 de maio de 2021

Biografias 18. A serva do senhor

Nobuyoshi Araki, untitled, not dated

O súbito desejo da servidão. O meu corpo ofereceu-se às cordas que o submetem. O desejo do senhor, porém, faz dele escravo da sua escrava, torna-o submisso ao fogo devorador que dorme nos meus olhos, na minha boca, no meu ventre. Presa, sou a imperatriz e no meu império está toda a minha liberdade.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

O sal do silêncio (59)

Francesca Woodman, Untitled, Providence, Rhode Island, 1975
Primeiro chega o abandono, depois a realidade vai perdendo aquilo que a liga, as peças saem dos encaixes, anuncia-se a dissolução de tudo o que foi, até que reste apenas o silêncio e o sal que, desprendendo-se dele, salga com leveza a memória, para que ela se afaste do insuportável e seja recordação cada vez mais longínqua, cada vez mais feliz.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

A Sarça Ardente - 79

António Carneiro, sem título, 1915

A claridade vem, viaja
sobre o bosque.
Pássaro de luz,
fuga ao abismo
da noite.

O coração saúda-a.
Graça derramada
para iluminar
de súbito
a sombra da Terra.

Abril de 2021

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Haikai do Viandante (409)

Emérico Nunes, Neve sobre o cais (Paris), 1909

Sobre o cais, a neve.
Olhos param deslumbrados,
esperam sinais.

sábado, 24 de abril de 2021

Histórias sem nexo 25. Urgências, usurpações e usucapião

Júlio dos Reis Pereira, Tarde de Festa, 1925
Urgência, um urso sem humor urina nas urtigas. Úrsula e Urraca urgiam em Unhais e um urubu uivava na Urqueira. Hum! Hum! Ululam os últimos Huguenotes. Humildade, humildade, Ursulina. Humaniza-te. Na hulheira, Humberto usurpa a hulha. Usucapião, usucapião, urrou utópico o Hugo. Uau, ufanou-se a Umbelina.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Biografias 17. Um pai aos olhos do filho

 Wolfgang Suschitzky, Trafalgar Square, London, 1953
Um pai cresce nos olhos do filho. Como um mágico, tira da cartola invisível os pombos visíveis. O filho deixa-se tomar pelo espanto dos animais a voltear por cima deles e pensa que ninguém no mundo a não ser o pai conseguiria tal façanha. O pai alimenta-se do olhar do filho.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Meditação Breve (157) Encarnação

Ernst Haas, Herbert Von Karajan, Salzburg, 1978

Por vezes, embora nem sempre isso aconteça, a arte exige que o artista se desaposse de si. A entrega deverá ser de tal ordem que a pessoa desaparece de si mesma, para que o espírito que se manifesta na arte encarne e se torne realidade pura. Talvez a grande arte não seja outra coisa senão um exercício de encarnação.

sábado, 17 de abril de 2021

A Sarça Ardente - 78

Ianthe Ruthven, Giant Lilly Pads, Kew, 1996
O segredo dos dias de estiagem
sonha sonâmbulo
nos meus passos pela alvorada.

Murmura-me no coração
voa-me nos olhos
adormece-me na noite.

Sou o meu segredo,
enigma herdado
ao entrar no alvor do mundo.

Abril de 2021

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Meditação Breve (156) Metáforas práticas

René Burri, French artist Yves Klein directing a model in body art painting. 1961

Metaforizar, seguindo a intuição de Aristóteles, é aproximar coisas que pertencem a realidades diferentes. Camões, num célebre soneto, aproximou fogo e amor. É esta aproximação regida pela a analogia - entre essas realidades haveria, apesar da diferença, uma certa semelhança - que o século XX vai levar até ao paroxismo. O modelo nu desce do pedestal e o seu corpo não serve já para ser copiado, mas como utensílio da própria pintura. O corpo transita de instrumento da visão para instrumento da acção. É a semelhança instrumental que permite o exercício metafórico - uma metáfora prática - de pintar não o corpo, mas com o corpo. Não produzir uma imagem, mas deixar um vestígio.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Diálogos morais 60. Uma questão prática

Bert Hardy, A young woman talks to a boyfriend after her evening’s work as a cinema usherette, c. 1954
- Muito trabalho?
- Não, hoje havia poucos espectadores.
- Um mau filme.
- Oh não, apenas uma noite má na bilheteira.
- Isso é pior que um mau filme.
- Não, não é. Um mau filme suja a alma.
- Uma idealista, é o que és.
- Serei.
- A vida não se faz de idealidades.
- Não? Também sei ser uma mulher prática.
- Sabes?
- Sei. O mais prático é ires dormir para tua casa. 
- Como?
- Sem mim.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Micronarrativa (52) Pátria do silêncio

Rui Filipe, Fuencarral , 1953

Há lugares onde acontecem as coisas mais estranhas. Lentamente, quem neles vive vai moderando a vontade de falar, a voz perde o timbre e o ritmo e, por fim, emudece. Então, os contornos do corpo começam a dissolver-se, a figura dilui-se e a pessoa torna-se invisível. Na pátria do silêncio, todos os que a habitam são invisíveis.

sábado, 10 de abril de 2021

Impressões 79. Figuras insones

José Dominguez Alvarez, Casario e figuras de um sonho

Figuras insones e ao mesmo tempo perdidas dentro de um sonho erguem-se no silêncio da praça. Se caminham, fazem-no lentamente, como se o tempo se retraísse na sua marcha. Se param, olham para lado nenhum. Das suas bocas não nascem palavras. Dos seus olhos, não vem qualquer brilho. Reúnem-se e depois separam-se, sem que nenhuma perceba a razão de uma e de outra coisa. Todas pensam estar rodeada de fantasmas. Tremem, se um pássaro poisa no ramo nu das árvores.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

A Sarça Ardente - 77

Eduardo Nery, Estrutura Ambígua, 1969
Descem pela fímbria
dos dedos,
trazem metáforas
de âmbar e fogo.
Sombras e silêncios
de uma paixão
nascida na névoa
da memória,
no fogo da sarça ao arder.

Março de 2021

domingo, 4 de abril de 2021

Meditação Breve (155) Constelações

Kazimir Malevich. Red Cavalry, 1928-32

O mundo compõe-se de linhas e manchas, de estratos onde aquilo a que se chama realidade se esconde, para ser encontrada, milénios depois, por arqueólogos dedicados. Do heteróclito que surge perante a visão, os olhos arqueológicos vão, a pouco e pouco, introduzindo separações arbitrárias, desenhando figuras como as que se descobrem no céu e a que dá o nome de constelações. Aquilo a que, apaixonadamente, chamamos realidade, ou seres individuais ou colectivos tem a verdade de uma constelação.

sábado, 3 de abril de 2021

O sal do silêncio (58)

Eugene Robert Richee, Louise Brooks, 1928
Do alçapão da noite chega a vida. Onde tudo era trevas e silêncio, de súbito emerge um rosto, umas mãos e tudo aquilo que não tendo importância para ser o sal da vida. Não é, mas mesmo as aparência são já um sinal de emancipação da negra escuridão.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Arqueologias do espírito 24

Francisco Metrass, Pastores Guardando o Rebanho, Sec. XIX

Não será das mais arcaicas imagens, aquela que junta numa unidade o pastor e o seu rebanho. A pastorícia, na economia do desenvolvimento da espécie humana, é um acontecimento recente, demasiado recente. No entanto, a sua força é de tal ordem que se tornou metáfora e símbolo com que os homens pensam a relação de uma comunidade com os que têm a função de a dirigir e conduzir salva ao aprisco. No rebanho, simboliza-se a unidade do conjunto dos homens e também a sua necessidade de possuir um condutor. O pastor cedo emergiu como o símbolo daquele que tem por dever conduzir os homens. O bom pastor.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Haikai urbano (67)

Nikias Skapinakis, Quintais de Lisboa, 1956
Quintais de Lisboa,
sombras vindas do passado,
imagens que ecoam.