segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

A sombra da água (23)

Carl Rottmann, Santorini (Thira), c. 1843

Olha as águas e a luz fulminante cega-me, como se no fundo germinassem monstros luminosos ou fantasmas iridescentes, como se um enigma subisse à superfície e se entregasse a uma incansável cintilação. Fecho, então, os olhos e toda a luz aquática reflui para o centro sombrio do meu corpo. 

sábado, 16 de dezembro de 2023

Sonetos de Outono (12)

Jan Van Goyen (atrib.), Dirt Road with Farmhouse and Board Fence, 1629

Adeus, Outono, o aprazado tempo

chegou com folhas mortas, água fria,

vento de Norte e a saudade súbita

de quem partiu e não virá jamais.

 

Recolho a casa, deixo as ruas sujas,

praças vazias, a memória trémula

do verso esquivo e das sombras ténues,

onde escondia o ardor do fogo.

 

Ramos despidos clamam, vozes duras,

vozes de Inverno, flores, sal e lágrimas.

Os dias decrescem no rumor das nuvens.

 

Grande mistério é a noite escura

onde um deus aguarda a hora próxima

para lançar na terra o sol e a sombra.

 

Dezembro de 2023 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A memória do ar (22)

Carl Philipp Fohr, Cloud Study, c. 1816/17

A transumância das nuvens pinta de cinza e negro os grandes espaços onde o ar circula como uma sombra transparente e silenciosa. São um rebanho sem pastor nem cão de guarda. Vão, mas mas a memória lembrar-lhes-á o retorno, na hora aprazada, ao lugar de onde partiram para observarem, das aéreas alturas, vales e planícies ou as inquietantes montanhas.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Sonetos de Outono (11)

Antonio Tápies, A caída, 1982

Eis o tropel dos dias passando grave

pela diáspora da vida simples,

pela aurora doutro tempo a vir.

Eis o silêncio desta noite sôfrega.

 

Amargas dores, corações rasgados.

O abandono é semente ávida,

germina fácil no mortal terreiro

onde o ser em névoa fria se oculta.

 

Não veneremos o clamor dos deuses

sujos de sangue ou da cal da morte,

filhos de rosas sem o véu da cor.

 

Sim, é de ferro o anel de ouro.

Sim, é nocturna essa luz do dia.

Sim, é de sombra a alva nau de Outono.

 

Dezembro de 2023


domingo, 10 de dezembro de 2023

Pintura e haikus (36)

Gino Severini, Danseuses, 1912-13

A súbita música,

em ondulante esquadria,

gera corpo e dança.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Sonetos de Outono (10)

Alfred Sisley, Bank of the Seine in Autumn, 1876

Como um pássaro já ferido canto

uma canção feita silêncio e dor.

Oiço o ritmo ancestral na fímbria

das folhas secas, no vazio da alma.

 

Trago em mim cada Outono vivo,

cada Outono preso aos dias passados,

ao calendário feito de erva fresca

e de memórias para sempre mortas.

 

Deixo que o ser na luz se revele livre,

na liberdade do mistério aberto

como um livro de orações sagradas.

 

Vou pela estrada sem destino claro,

sem o fulgor dos dias de Estio, acesos

no esquecimento do ardor da noite.

 

Dezembro de 2023 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Meditação breve (192) Vibrações

Rafael Barradas, Paisaje vibracionista, 1918

A serenidade dos lugares, o calmo repouso que certas paisagens oferecem aos olhos mais incautos, o murmurante silêncio que se desprende da terra, tudo aquilo que sossega o pensamento e aquieta o coração emana de um intenso vibrar da natureza, da sua íntima inquietação que se transforma, à luz clara do dia, numa estância de aprazível tranquilidade.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Sonetos de Outono (9)

 
Vincent van Gogh, Camino con sauces podados, 1889

Nascem desejos em turvado céu.

As nuvens correm no silêncio vivo,

anunciam chuva entre os ramos secos.

Flores e frutos da memória caem.

 

Os dias obscuros, uma fria tristeza,

pálido sol, rosas de cor amarga,

eis o Outono no lençol de linho

tecido em dia de tempestade e fúria.

 

Soltam-se ventos sobre as ruas vazias.

Olho a tarde em abrigo cálido,

deixo correr ao vento o sal do mar.

 

Pobres, os lábios exaltados sopram

velhas canções de vinho, luz e mágoa.

Eu oiço, oiço-te, ó voz silente.

 

Dezembro de 2023


sábado, 2 de dezembro de 2023

O sal do silêncio (107)

Aureliano de Beruete Y Moret, El Manzanares

As águas rompem o silêncio da tarde, deixam no ar o murmúrio do seu impetuoso passar e o sussurro de mil memórias perdidas nas orlas do rio. Como pássaros esquivos, os homens olham-nas e deixam-se tomar pelo desejo do oceano e o sal das grandes viagens.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (8)

Caspar David Friedrich, Autumn, 1826

 As cegas sombras do Outono pairam

sobre as ruas vazias da cidade velha.

O tempo corre entre folhas secas

presas nos ramos de cansadas árvores.

 

Ouvem-se gritos de amargura tensa,

rasgam a tarde como corvos tintos

pela tristeza de perdidas guerras,

velhos ardores dum império findo.

 

Deixo o espírito vogar nas sombras,

a tarde as traz presas ao corpo gélido,

ao abandono da memória breve.

 

Passo o cabo das tormentas, ergo

as mãos aos astros no licor amargo

dos dias de chuva, no frio mar da morte.


Novembro de 2023


terça-feira, 28 de novembro de 2023

Geometrias de fogo (22)

Hans Thoma, The War, 1907

O fogo é o pólen da guerra, fecunda o solo para que seja um pasto sem fim de chamas, um incêndio que atravessa dia e noite, rompe a muralha dos anos e se instala no coração com o ardor de um ódio tão persistente que nem o passar das gerações apagará. Nas planícies, os corpos calcinados são estátuas em honra da devastação trazida pela ira vulcânica dos homens.

domingo, 26 de novembro de 2023

Signo sinal 15. Suspensão

Rudolf Schlichter, O mundo inanimado, 1926

Suspender o movimento do mundo, abolir os efeitos do tempo, proibir a mobilização contínua dos homens. Então, pode-se contemplar a imagem diluída da eternidade, uma imagem sem vida, mas que é o signo que abre a porta ao que é sempre vivo, àquilo de onde a morte foi expulsa e a que não poderá retornar, pois ali não é a sua pátria, nem o poder dos seus exércitos pretorianos é suficiente para derrubar as invisíveis muralhas e conquistar uma praça que nunca lhe pertencerá.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (7)

Camille Pissarro, Outono, 1876

Sol de Outono, matinal promessa

de novos mundos, novas terras, nova

luz no orvalho da aurora pálida,

nos desavindos corações sombrios.

 

Traz o fulgor a estes dias cegos,

às noites frias onde o musgo verde

amadurece na memória muda

de um presépio esquecido, morto.

 

Oiço o silêncio da floresta viva.

Vejo-o dançar na cornucópia alegre

destas cidades de cristal e pedra.

 

Canto o devir vão da manhã de bruma,

o abandono do jardim perene

ao sal de fogo, aos sinais de Inverno.

 

Novembro de 2023


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

A sombra da água (22)

Karl Schmidt-Rottluff, Lua sobre a costa, 1956

Uma solidão construída com a minúcia das coisas vagarosas abre-se nas águas que se acolhem na fantasia da costa. Ilumina-a uma lua feita de promessas vagas e juras eternas. Então, a água move-se e rompe a linha do horizonte, onde o dia e a noite se tocam, e o céu e a terra se confundem.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Pintura e haikus (35)

Bodil Obberg Pettersson, Early Autumn, 1980 (aqui)

As cores de Outono
deslizam na tela fria.
São sombras sonâmbulas.


sábado, 18 de novembro de 2023

A memória do ar (21)

Thomas Cole, A tornado, 1835

O invisível ar faz-se vento e vendaval, coluna que se ergue ciclónica e arrasta consigo o sinal da destruição e o símbolo do terror. Os animais escondem-se em abrigos frágeis, as árvores, porém, entregam o seu corpo à carícia devastadora do deus irado.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (6)

Wassily Kandinsky, Autumn in Bavaria, 1908

Dança comigo esta valsa viva.

Os corações tão desejosos cantam

os dias de Outono, a chegada alegre

do vinho novo, sangue, sol e água.

 

No céu, os pássaros desenham símbolos,

inscrevem letras na paisagem fria,

presos no voo entre terra e nuvens,

soltos no fogo que alastra trémulo.

 

Oiço o silêncio no rugir do vento

ou no rumor das tuas mãos abertas,

leves, na dádiva da noite escura.

 

Toco os teus lábios com o vinho novo,

bebo-te, casta, no deserto árido.

Viajamos ébrios na vertigem muda.


Novembro de 2023


terça-feira, 14 de novembro de 2023

Impressões 114. Lugares de dor

Mario Sironi, Paesaggio urbano, 1942

O olhar entristece perante a cinza sem nome da paisagem. O coração não canta as grandes fábricas do mundo, as chaminés erguidas aos céus como punhais de tijolo, os telhados que as nuvens evitam purificar com as suas águas lustrais. Os viandantes evitam esses lugares de dor e os peregrinos sabem que não é ali que passa o caminho para o santuário onde o divino os espera.

domingo, 12 de novembro de 2023

Geometrias de fogo (21)

Hans Baldung Grien, Two Witches, 1523
A ficção das feiticeiras nasce na ardência do fogo. Imagina-se no despudor do seu corpo poderes nascidos na fímbria dos infernos e trazidos por artes mágicas à superfície da terra, para incendiar imaginações e atear as labaredas onde os seus corpos arderão em nome da purificação das almas.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (5)

William B. Post, White Mountains, N. H. from Fryeburg Maine, 1900-1910

Folhas de Outono, caminhamos livres

na liberdade da floresta rude.

Vamos curvados no carril do tempo

e levantamos aos céus olhos lívidos.

 

Na cornucópia da abundância vemos

as velhas árvores caídas, mortas

no desmedido desejar dos dias.

Sinais do vento que passou silente.

 

Estreitas ruas levam do mar à morte,

onde os anjos te aguardam cegos

para a terrível luz das ervas secas.

 

Pela penumbra avistamos luas,

pequenos sóis de gelo e âmbar,

a cintilante flor de luz e fogo.


Novembro de 2023

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

No limiar (12)

Fernando Calhau, S/título #169, 1974 (Gulbenkian)

Todo o mundo começa com um trabalho de memória. Na viscosidade da penumbra, na porosa fronteira entre a vigília e o sonho, os tambores da recordação trabalham furiosamente, espalham memórias pelos campos a vir, pelos rios e lagos não nascidos, ordenam-se em batalhões impiedosos para que dessa crueldade nasça o poder da floresta sobre as encostas das grandes montanhas ou a esperança de um oceano que se deixe navegar pelos grandes veleiros da misericórdia. Então a memória flui e o mundo convocado por ela reúne-se sob o seu império e, submisso, dispõe-se a acolher a primeira luz e a semente sanguínea da vida.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

O sal do silêncio (106)

Emilio Sánchez Cayuella, Silencio, 1985
O abandono é o sal que abre o corpo ao silêncio, como a terra abre os sentidos ao murmúrio dos céus. As águas rumorejam na sua passagem, as árvores erguem os ramos, enquanto as raízes se afundam. Se um pássaro canta é porque chama pela nuvem onde um deus se esconde.

sábado, 4 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (4)

Camille Corot, Italian Landscape near Marino in Autumn, 1826 – 1827

Dias de Outubro. Uma ave canta

e eu medito na ruína próxima,

a casa pobre, o nome ferido

por entre sombras e silêncios secos.

 

Erguem-se pássaros de luz e trevas.

Os rios deslizam devagar, sem rumo.

Subitamente, o mar cala a voz

nas ondas frias, no vagar do vento.

 

Não tenho herança a deixar na morte,

nem a memória reterá o nome

por mim herdado ou talvez roubado.

 

Oiço-te, pássaro da noite a vir.

És a renúncia ao fulgor dos dias.

És os escombros duma vida vã.

 

Outubro de 2023


domingo, 22 de outubro de 2023

Sine die

 Por motivos profissionais, a actualização deste blogue está adiada sine die.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Impressões 113. Pela janela

Fritz von Uhde, By the Window, 1890 – 1891
Olhar o lado de lá pela janela é uma libertação do trabalho que a vida quotidiana impõe. A banalidade das tarefas é desafiada pelas impressões que o mundo manifesta para olhos cansados, ávidos de trazer para dentro de casa o bulício da vida e o encanto do desconhecido.

sábado, 14 de outubro de 2023

A sombra da água (21)

Paul Signac, Venice, Grand Canal, 1904

Os canais abrem-se lentamente para que a água deslize, fecunde a terra e proteja a cidade dos grandes calores e do desvario da severidade dos tempos. Os barcos são cavalos de silêncio. Passam como se fossem chamados de um outro mundo, de uma outra terra feita de sombras, sal e silêncio.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Sonetos de Outono (3)

Dórdio Guimarães, Casas de Malakoff - Paris, 1923

Chegou a hora de dobar o fio

das tardes calmas pela luz cobertas,

das noites ébrias no cruel temor

escrito a negro em coração cansado.

 

Rompem as árvores a linha da sombra,

abrem os ramos outonais ao vento,

as aves poisam, são crianças de água

abandonadas no desvão das ruas.

 

Atravessei maravilhado o bosque,

ouvi o fogo crepitar nos campos,

vi uma cruz de dor na terra rude.

 

Escuto os lobos murmurar ao longe,

dentro da minha carne crua e fria.

As folhas caem, e eu caio com elas.


2023

 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Signo sinal 14. Mêlée

Júlio Pomar, Mêlée, 1968

Os corpos incautos perdem-se no combate, misturando-se braços e pernas, o sangue que escorre das feridas abertas pelo desejo de superação. Antes de suplantar o adversário ou de vencer o inimigo, há que defrontar-se a si mesmo, fazer um pacto e estabelecer um longo armistício. Nessa hora, o adversário desaparece e o inimigo, descobre-se, não passa da figuração do medo que há dentro de si. 

domingo, 8 de outubro de 2023

No limiar (11)

José Manuel Espiga Pinto, Mapa marcado com rasgão para entrada na sala de projecções simultâneas, 1973 (aqui)

O mundo coagulado oferece-se, como uma vítima no holocausto, ao cutelo do mapa. Este suspende a realidade do território, mantém-na num estado onírico, roubando-lhe a consistência, despindo-o dos acidentes e das linhas de fractura ou dos pontos de encontro, onde se reúnem a água de rios e lagos, a terra de lezírias e charnecas, os ares vindos das montanhas ou fugidos das tempestades oceânicas. Um mapa é como uma droga alucinogénica, cria imagens a que nada corresponde, apaga o que existe na quimera cintilante do que não existe. Espera a benevolência do fogo para, reduzido a cinzas, deixar emergir do nada a realidade viva.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Espírito da Terra (27)

Louis Eysen, The Earth Pillars by the Schalderer Bach near Vahrn, 1878

Também a Terra assenta em poderosos pilares, não de cimento ou nascidos na rocha dura, mas mais fortes e resistentes que o diamante. O espírito, na sua constância inconstante, é a matéria de dos pilares da Terra. Invisíveis na sua presença, invisíveis no seu ser, eles erguem a Terra e não a deixam afundar no abismo eterno. São o espírito da Terra.