sábado, 1 de julho de 2017

Poemas do Viandante (635)

George Blacklock - Blue Pieta (1998)

635. ó blue pietà tão pura

ó blue pietà tão pura
e tão dorida
quanto do teu azul
são lágrimas
de portugal
para te bebermos
quanta água
correu na
                matermatriz
das mil noivas
                tão virgens
tão noivas 
                tão por casar

(11/12/2016)

quinta-feira, 29 de junho de 2017

A espera

Fred Stein - Three Chairs, Paris (1937)

Ainda hoje não creio no que me contaram quando vi, pela primeira vez, as cadeiras vazias. Não seriam eternas, entenda-se, mas durariam tanto quanto a própria humanidade. É difícil de aceitar. Também eu nunca vi ali ninguém sentado. Disseram-me, sem me abalarem o cepticismo, que nelas repousaram Tália, Eufrosina e Aglaia, as três Graças dos antigos gregos. Mais tarde foram o lugar da Fé, da Esperança e da Caridade. Sei pouco de teologia e de mitologia para lhe responder se as Graças e as Virtudes Teologais não seriam a mesma coisa olhadas com outros olhos. Talvez. O que sei é o que vejo e o que vejo é que as cadeiras estão vazias. Esperam.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Meditação breve (33) - O céu estrelado

H. Hirsch - Girl, gazing to the stars (1880)

Olhar as estrelas é a grande experiência humana do confronto com o incomensurável, com o infinto. Este confronto com o desmesurado não nos indica apenas a nossa finitude. Dá-nos a dimensão do desejo que nos habita.

terça-feira, 27 de junho de 2017

A visão pura

Jing Huang - Pure Sight

O olhar sempre me fascinou. Não porque ele permitia discernir uma quantidade sem fim de coisas e de pormenores. Não, pelo contrário. O seu fascínio resultava da frustração, pode crer. Era impossível que, ao olhar fosse o que fosse, não se intrometesse uma espécie de ruído. Claro que treinem longamente os olhos, mas nunca conseguia evitar surpresas. A visão pura foi o graal da minha vida. Encontrei-o? É isso que deseja saber? Foi por acaso. Um dia, estando a olhar o horizonte em busca desse ver puro, fechei os olhos. Talvez estivesse cansado, e persisti nesse fechamento. De súbito, compreendi, tinha encontrado o graal, a visão pura. O que vi de olhos fechados? Nada. Descobri que não havia nada para ver.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Poemas do Viandante (634)

Lee Krasner - Between Two Appearances (1981)

634. de aparência em aparência

de aparência em aparência
visto o avental
de loucura
e componho a gravata
em torno da perfídia
do pescoço
se a voz vozeia
aperto o nó
e espero sentado
o grande veleiro do silêncio

(11/12/2016)

domingo, 25 de junho de 2017

Haikai urbano (15)

Kurt Hielscher - Salt Warehouses, Lübeck, 1931

armazéns de sal
adormecidos nas águas
o tempo flui e pára

sábado, 24 de junho de 2017

Fugas

Jackie Greene, Seminole Park. Model Sailboat Race (1974) 

Há uma tendência para perceber como compensação actividades como aquela que a fotografia nos dá a ver. Não podendo participar em regatas com veleiros a sério, compensa-se a inclinação com corridas de modelos. Se se pensar um pouco mais talvez se faça uma constatação surpreendente. Mais que uma compensação este tipo de actividades mostra-nos a natureza da actividade humana, de grande parte da actividade humana. Na verdade, esta não passa, na generalidade dos casos, de puro divertissement pascaliano, fuga à sua própria e insuportável realidade. A natureza e a dimensão dos modelos são irrelevantes.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

A sombra

Aart Klein - Skater, Holland, 1970s

Padeci desse mal que atormenta muita gente com propensão para a metafísica. Não, não se tratam desses sempre prontos para a arena da argumentação. Essa patologia tem origem diversa. A minha, como a de muitos outros, era fruto das variações sobre o tema quem sou eu? Tem razão, uma patologia musical. Música e metafísica são irmãs, embora já poucos o saibam. Tudo isso, porém, deixou de me interessar. Acertou. Curei-me. A cura? Nasceu da revelação da verdade. Patinava, como todos os anos no Inverno, sobre o lago gelado. De repente, olhei e vi a minha sombra no gelo. Tudo se iluminou. Eu não passava da emanação da minha sombra. Uma sombra de uma sombra, talvez.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Haikai urbano (14)

Robert Doisneau - Place de la Concorde, Paris, c. 1940

manhã de neblina
sobre a praça da concórdia
rumores de inverno

domingo, 11 de junho de 2017

Poemas do Viandante (633)

Manuel Viola - Batalla al amanecer (1979)

633. as labaredas da manhã

as labaredas da manhã
no labor da sombra
deslizam
pela púrpura da noite
e cambaleiam
em céu de cinza
tisnado de escuridão
e cântaros de luz

(11/12/2016)

sábado, 10 de junho de 2017

Haikai do Viandante (325)

Reuben Wu - Light Painting With A Drone

floresta de pedra
sobre o lago do silêncio
luz água e calcário

domingo, 28 de maio de 2017

Viagem para si

Will Faber- Buscándome a mí (1968)

Buscar-se a si mesmo é como a tarefa de retorno de Ulisses à pátria. Múltiplos são os obstáculos que, durante a vida, se interpõem no caminho daquele que empreende a viagem de regresso si. Muitos nem se apercebem que há uma viagem a fazer. Outros soçobram no caminho vítimas de ilusões. Por fim, há os que empreendem a viagem para Ítaca, sabendo-a sempre ali e sempre distante. Sabendo que a Ítaca que encontram, sendo real, ainda é uma imagem e um símbolo da Ítaca a devem chegar. Descobrem que a viagem é infinita.

sábado, 27 de maio de 2017

Poemas do Viandante (632)

Eduardo Gruber - Bajos Fondos (1990)

632. o fundo salitrado da noite

o fundo salitrado da noite
ruge-me nos dedos
se toco a parede
e grãos de areia
e cal deslizam
pelas horas
na praia de poeira
na simetria de salitre

(11/12/2016)

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Mundos voláteis

Toni Schneiders - Karussell, Dom von Hamburg, sd

Mundos voláteis manifestam-se, por breves instantes, e logo desaparecem. Aquilo a que chamamos mundo talvez seja apenas esta volatilidade. Instantes de manifestação, como se fosse uma hierofania, para logo soçobrar no não manifestado.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Haikai urbano (13)

Alfred Ehrhardt, Lauben am altstädter Ring, Prag, Böhmen und Mähren, 1941

na cidade velha
arcadas, sombras, segredos
homens em silêncio

terça-feira, 23 de maio de 2017

Caminho

Hiroshi Sugitomo - Strait of Gibraltar, 1996

A linha que separa é também a que une. Quando se diz a linha do horizonte, o pensamento abre-se a uma dupla experiência, a do discernimento das diferenças ou a da fusão na identidade. Nestas duas experiências encontram-se três caminhos para o homem. A da especialização numa diferença, a da imersão muda no idêntico, a da tensão contínua entre o diferente e o idêntico. A cada um o seu caminho.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Poemas do Viandante (631)

Yves Klein - Vent Paris-Nice (COS 10) (1960)

631. o vendaval de neve

o vendaval de neve
desliza
nas escamas
da memória
murmúrio de sedas
no veludo
do tempo
água-forte que traça
figuras enlouquecidas
                no bronze
das estátuas
                               ou das estrelas

(10/12/2016)

domingo, 21 de maio de 2017

Pobres e ricos em espírito

Jill Freedman, Richest man in the world, 1970s

Na vida material, aquele que move a generalidade dos seres humanos, a riqueza reside no acumular. Na vida espiritual, pelo contrário, a verdadeira riqueza é pobreza. Reside no abandonar. Abandonar inclusive aquilo de que o espírito se apropriou e toma como propriedade sua. Um espírito que é proprietário, mesmo que seja apenas e só de bens espirituais, é um espírito submetido à lógica do mundo material, às regras do mercado. Só se tornará efectivamente rico quando se despir de tudo isso e se tornar um pobre de espírito, um sem-abrigo que não espera nada e vive para cada instante que a vida lhe concede, .

sábado, 20 de maio de 2017

O sonho

René Burri - Town of Shanghai, China, 1989

Era um sonho recorrente, daqueles que persistem ao longo da vida. Um quarto, um televisor e nele um rosto, parte de um rosto, para ser mais preciso, onde se abria um olho. Observava-me e seguia os meus passos dentro do quarto. Sentia incómodo, mas não medo. Não sei se o sonho era demorado, parecia-me que durava uma eternidade, até que acordava e não havia olho, rosto ou sequer um televisor. Nunca tive uma televisão. Até hoje, até agora que acordei e você está aí a olhar-me. Reconheço bem o olho que me espiou, o corte de cabelo que eu percebia no sonho e nada explica o que faz um televisor de ecrã estilhaçado no meu quarto.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Meditação breve (32) - Esperança

Pete Turner - New Dawn, Heimaey, 1973

O momento em que o dia irrompe é sempre o símbolo de uma esperança. A exuberância da luz rasga o véu da escuridão e anuncia aos homens um novo começo, e a esperança não é mais do que isso, o desejo de um novo começo, a possibilidade do inédito a redenção pelo retorno à inocência.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

As mãos

Stephan Vanfleteren

Eis as minhas mãos. São assim, já não me lembro como foram. Como eram pequenas e cresceram acompanhando o ritmo do corpo, não o sei. Tornaram-se poderosos, diz-me a memória que resta. Pegaram no mundo e ergueram-no, tocaram em corpos que enlouqueceram, imagino. Agora são um mar de rugas, a pele gasta, uma vontade de inércia. Dantes, guiavam-me, iam sempre à minha frente. Hoje não sei o que fazer com elas. Olho-as, mas não sinto nostalgia. Dizem-me que elas teriam muito a contar. Talvez, mas a verdade é que quase não me lembro. São apenas umas mãos escavadas pela enxada do tempo.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Poemas do Viandante (630)

Yves Klein - Anthropométrie suaire sans titre  (ANT SU 3) (1960)

630. a borboleta desce

a borboleta desce
miraculada
de cores
no alvéolo branco
do ciúme
e estende a teia
aos amantes
no vinho ébrio
borboletado
de janeiro a janeiro

(10/12/2016)

terça-feira, 16 de maio de 2017

Haikai urbano (12)

John Atkinson Grimshaw - Liverpool Docks, 1880s

navios do passado
chegam na luz do futuro
cidade de sombra

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Olhares

Unknown Photographer - The first day of school, Portugal, 1936

A escola é, muitas vezes, um treino sistemático para aprender olhar para baixo, como se todo o interesse dos homens estivesse na terra. Por vezes, alguém ousa olhar para cima e é nesse momento e nesse gesto que o homem adquire rosto, onde se manifesta o espírito, e um outro sentido para a vida se torna manifesto.

domingo, 14 de maio de 2017

Meditação breve (31) - Ser

Barbara Brändli - Untitled, from Sistema Nervioso (1974-5)

Não basta ser, é preciso querer ser. Não basta querer ser, é necessário afirmá-lo e inscrevê-lo na realidade. Um facto que se torna projecto para se tornar ser.

sábado, 13 de maio de 2017

Os caminhos do espírito

 Francis Wu - Shellfish Catching at Dawn, undated

Basta uma simples fotografia de uma actividade material para se perceber que a vida do espírito possui múltiplos caminhos. Antes das sendas singulares, estão vias mais gerais, a que se dá o nome de culturas. Estas conferem enquadramento e sentido para a aventura individual. O caminho espiritual, seja em que área for, é sempre um processo de singularização. As culturas mais do que dispositivos de diferenciação são meios de intermediação entre o universal e o singular.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Poemas do Viandante (629)

Lucio Muñoz - 7-86 (1986)

629. o pó da penumbra

o pó da penumbra
levanta-se
e trémulo deixa
entrever
o açafrão da paisagem
na rota rasgada
pelo tímido tremor
da chuva de novembro

(10/12/2016)

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Haikai do Viandante (324)

Gustave Le Gray - Groupe de Navires - Cette, Mediterranée (1857)

silêncio no porto
são águas da primavera
os navios parados

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Sombras

Loomis Dean: Women modeling apres-ski fashions designed by Fred Spillman cast long shadows on the Palace Hotel’s ice rink. St. Moritz, Switzerland, 1958

Acha curiosa a fotografia? Tem razão, claro. Ela merece o nosso olhar atento, mas não é por aquilo que somos levados a pensar. A beleza das mulheres, a luz e a projecção de grandes sombras sobre a superfície gelada. Em tudo isso, há um estranho equívoco. Os nossos hábitos não nos deixam perceber a realidade. Estas sombras já estavam impressa no gelo há muito. Sempre que a havia luz, eram visíveis. Até que um dia, juro que o vi, começaram a formar-se estranhas estátuas de gelo, quando estavam completamente formadas, ouvi vozes. Falavam entre si. No dia seguinte, quando a luz voltou, elas lá estavam. De carne e osso. Aquelas mulheres, tão vivas, são sombras das próprias sombras.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Haikai urbano (11)

Alexey Titarenko - Untitled, (White Dresses), St. Petersburg, Russia (1995)

no vazio da rua
passeiam dois anjos brancos
os homens esperam