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terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Meditação Breve (174) O trabalho do tempo

Aaron Siskind, Rome 5, 1967

A pedra erodida é uma marca da passagem do tempo. É também uma lição dos efeitos deste. Apagamento dos contornos, simplificação da figura no seu esboço, redução de cada coisa ao magma da pura indiferenciação. O tempo é o mais feroz agente igualitário. Apaga os vestígios de tudo o que se quer proeminente e transforma em poeira o que, por uns momentos, ganhou individualidade.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Meditação Breve (173) O insulto

Vespeira, Parque dos Insultos, 1949
Há em todo o insulto uma desfiguração. Não do insultado, mesmo que se vise através da injúria redescrever-lhe a figura com contornos ominosos, mas do insultante. A acção de atingir o outro recai sobre si mesmo, dilui a própria figura, abre uma fenda no seu ser pessoa, por onde entra o vitríolo que a haverá de corroer. Nunca um insulto é desprovido de consequências.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Meditação Breve (172) Cruzar os braços

George Platt Lynes, Crossed Arms, 1941

Um sintoma de cansaço, um sinal de expectativa, uma recusa de acção? Seja qual for o sentido que se dê ao gesto de cruzar os braços, ele nunca deixa de pertencer a uma fenomenologia dos actos ostensivos, daqueles que pelo seu acontecer querem indicar sempre uma outra coisa. É sempre um gesto que se liga àquilo que o transcende. 

domingo, 19 de dezembro de 2021

Meditação Breve (171) A alma da multidão

Alfred Eisenstaedt, Nightime view of crowds gathering outside the Steel Pier, 1941

Grandes querelas teológicas podem vir à luz quando se trata de saber se os indivíduos possuem ou não uma alma. Assunto obscuro e que dividirá, em qualquer credo, ortodoxos e heresiarcas. O que não será objecto de querela, pela sua evidência, é a existência de uma alma na multidão. É a alma de grupo que nasce mal os homens se juntam e cresce como um íman poderoso que, sem cessar, atrai novos membros. É essa alma que conduz as multidões em actos que só elas poderiam realizar, é ela que as leva para a casa que é a sua. Quando a alma, por motivo obscuro, perde a força ou desaparece, a multidão dissolve-se.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Meditação Breve (170) O enigma da esfinge

William Holman Hunt, The Sphinx, 1854

Não há qualquer enigma na esfinge. O enigma da esfinge reside naquele animal que, apesar de ainda ser uma animal, é portador de razão. É desta que nasce o enigma da esfinge, como todos os outros. O espanto, a perplexidade, o desejo e os limites da razão concorrem para que, de súbito, surja no pensamento do homem uma esfinge e, no terror do seu coração, o enigma.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Meditação Breve (169) A condição humana

Frank Horvat, Beggar, Calcutta, India, 1953
Eis a nossa condição. Somos todos, de um ou de outro modo, pedintes. Uns estendem a mão para a esmola, outros para o assalto, outros ainda para o fruto do esforço. Só por manifesta cegueira se poderá pensar que existe uma diferença essencial entre as diversas modalidades de estender a mão. São moralmente diferentes, mas ontologicamente todas elas são a manifestação da nossa radical finitude, da nossa nunca superada dependência, da nossa nunca conquistada autarquia. Ricos e pobres, reis e súbditos, todos são pobres pedintes.

domingo, 21 de novembro de 2021

Meditação Breve (168) A árvore da vida

Diane Arbus, Xmas tree in a living room, Levittown, Long Island, 1963
Quando se tenta perceber quando a árvore se imiscuiu na vivência do Natal, perde-se o essencial dessa associação. Simbolizar o nascimento de Cristo pela árvore é indicar que se a queda dos homens está associada a uma árvore, a da ciência do bem e do mal, então a sua salvação também depende de uma outra árvore, como se a criança nascida no presépio de Belém se enraizasse na terra, que é a carne, para se elevar ao alto e, desse modo, ser a nova árvore que supera a que foi motivo de queda para os homens. Para além da sabedoria do bem e do mal, diz-nos a árvore de Natal, existe uma outra, a da ciência da Vida, cuja interdição agora está levantada.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Meditação Breve (167) Cinema

Hiroshi Sugitomo, Cabot Street Cinema, Massachusetts, 1978

De modo bem diferente do teatro e da ópera, em que a luz tem um papel instrumental, o cinema não é outra coisa senão luz, em diferentes modulações, que chega aos olhos dos espectadores e é descodificada em imagens. Fazer cinema parece ser uma forma de esculpir a luz. Esta é de tal modo importante que, para que um filme seja verdadeiramente sentido como tal, o espectador tem de estar mergulhado na escuridão da sala. A luz que banha ecrã salva-o das trevas mais densas. Todo o filme é uma luta contra as trevas.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Meditação Breve (166) O terror

Lee Miller, SS Prison Guard, Buchenwald, 1945
Não é quando se pratica o terror que este se grava no rosto e emerge como o símbolo da presença do mal no mundo. É na hora em que se é atingido, em que um verdugo se ri ou uma vítima se vinga, que ao rosto chega, numa máscara de espanto e horror, o sinal da presença desse mal nunca compreendido, nunca suportado, mesmo por aqueles que o praticaram. O terror é sempre pessoal e intransmissível.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Meditação Breve (165) Inquietante estranheza

Bill Brandt, Deserted Street in Bloomsbury, 1942
Se uma paisagem natural se encontra despida da presença humana, nada de estranho emerge da sua contemplação. Se, porém, a paisagem é urbana, de imediato o espírito se deixa tomar por uma inquietante estranheza, como se o criador tivesse abandonado a sua criação, como se tudo fosse familiar e, nessa familiaridade, se escondesse, como bem o sabia Sigmund Freud, uma ameaça, uma terrível ameaça.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Meditação Breve (164) Adoradores da História

Max Dupain, High Tide. Newport,1975
Há quem tenha por objectivo ficar na História, nem que seja a pequena história da terra onde nasceu. Soubessem esses o quão precário tudo é e quão culpados todos somos, em vez de desejarem ser alguma coisa e, assim, terem um nome, desejariam que nunca a História, essa deusa traiçoeira, se lembrasse deles e que o seu nome fosse esquecido. Quanto mais depressa, melhor.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Meditação Breve (163) Um caminho único

Roberto Domingo, Camino de la Muerte, Encierro en San Fernando, 1913

Ao ouvir a designação caminho da morte, de imediato, a consciência, talvez em busca de uma tranquila serenidade, pensa, como oposto, o caminho da vida. A presunção serena é, porém, abalada pela incerteza. Uma voz vinda do fundo de si mesmo sopra que não existem opostos os caminhos da morte e da vida, mas que são sempre um e o mesmo caminho. Ao caminhante foi dado o caminho, mas a ele cabe escolher se faz dele a senda que conduz à morte ou a via que leva à vida.

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Meditação Breve (162) Viver na terra

August Sander, Peasant woman, 1914
A terra oferece a quem lhe dedica a vida um humor compassivo e uma funda sabedoria. Não aquela que nasce dos livros, mas uma outra que permite compreender o que neles está. Quando as mãos repousam, o olhar ri não sem uma leve ironia e o coração abre-se à serenidade da existência.

sábado, 12 de junho de 2021

Meditação Breve (161) Auto-retrato

Florence Henri, Self portrait, 1928

Auto-retratar-se é pôr-se à distância, afastar-se e alienar-se de si mesmo. Pensa-se, por vezes, que o exercício do auto-retrato é um modo de conhecimento de si. Essa crença, porém, não passa de uma ilusão da consciência reflexiva. Procura-se a ignorância de si mesmo, pois o retrato não é a própria pessoa, nem dá dela a sua realidade. Pelo contrário, aniquila-lhe o corpo, prende-a no espaço, retira-a da duração e esconde-lhe o espírito. 

domingo, 23 de maio de 2021

Meditação Breve (160) O tempo em fuga

Paul Strand, Bombed Church, Hoste, Moselle, France, 1950
Sempre que pensam na imortalidade, os homens tentam, não sem desespero, matar o tempo, como se o maior inimigo dessa persistência que nunca acabaria fosse o saltitar inexorável dos ponteiros do relógio. Sucedem-se os ataques. Os atentados não têm fim. Os danos colaterais amontoam-se. O tempo, esse nunca pára, faz da fuga a arte da existência.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Meditação Breve (159) Do arrependimento à inocência

Imogen Cunningham, Eve Repentant, 1910
O arrependimento insere-se, na cultura judaico-cristã que dá forma ao mundo ocidental, numa dialéctica de dissolução dos factos. Arrepender-se de algo que foi feito - isto é, tornado um facto -  é o primeiro passo para que uma outra figura espiritual - espiritual e não apenas moral - se manifeste, a figura do perdão. Do ponto de vista humano, o perdão é fazer como se o que foi feito não o tivesse sido. O perdão divino será muito mais radical. Será o dissolver o facto, fazer com o que foi feito não o tenha sido. O perdão humano inocenta, o divino devolve a inocência.

terça-feira, 4 de maio de 2021

Meditação Breve (158) As pequenas vinganças

André Kertész, Between Paris and Deauville, 1927

O cómico nasce muitas vezes do entrelaçamento dos tempos. Quando o que passou e se tornou obsoleto é a solução para aquilo que o veio substituir, não se pode deixar de sorrir. As pequenas vinganças nunca deixam de ter qualquer coisa de sarcástico.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Meditação Breve (157) Encarnação

Ernst Haas, Herbert Von Karajan, Salzburg, 1978

Por vezes, embora nem sempre isso aconteça, a arte exige que o artista se desaposse de si. A entrega deverá ser de tal ordem que a pessoa desaparece de si mesma, para que o espírito que se manifesta na arte encarne e se torne realidade pura. Talvez a grande arte não seja outra coisa senão um exercício de encarnação.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Meditação Breve (156) Metáforas práticas

René Burri, French artist Yves Klein directing a model in body art painting. 1961

Metaforizar, seguindo a intuição de Aristóteles, é aproximar coisas que pertencem a realidades diferentes. Camões, num célebre soneto, aproximou fogo e amor. É esta aproximação regida pela a analogia - entre essas realidades haveria, apesar da diferença, uma certa semelhança - que o século XX vai levar até ao paroxismo. O modelo nu desce do pedestal e o seu corpo não serve já para ser copiado, mas como utensílio da própria pintura. O corpo transita de instrumento da visão para instrumento da acção. É a semelhança instrumental que permite o exercício metafórico - uma metáfora prática - de pintar não o corpo, mas com o corpo. Não produzir uma imagem, mas deixar um vestígio.

domingo, 4 de abril de 2021

Meditação Breve (155) Constelações

Kazimir Malevich. Red Cavalry, 1928-32

O mundo compõe-se de linhas e manchas, de estratos onde aquilo a que se chama realidade se esconde, para ser encontrada, milénios depois, por arqueólogos dedicados. Do heteróclito que surge perante a visão, os olhos arqueológicos vão, a pouco e pouco, introduzindo separações arbitrárias, desenhando figuras como as que se descobrem no céu e a que dá o nome de constelações. Aquilo a que, apaixonadamente, chamamos realidade, ou seres individuais ou colectivos tem a verdade de uma constelação.